“Este projeto é para o peito, que está apertado e apartado dos outros”. Este projeto é PARApeito, um festival de arte na rua, vista da janela, que surge pelas mãos do Lugar Específico. de uma ideia de Susana Alves, a sua fundadora. PARApeito surge para ajudar a combater o isolamento, para apoiar artistas em situação de fragilidade financeira, para incentivar a continuidade da criação artística e para lembrar que a arte e a saúde mental andam de mãos dadas.
“A ideia do PARApeito surgiu-me em abril de 2020, em pleno confinamento, quando, fechados em casa, nos sentíamos de peito apertado pela distância, pela ausência, pela incerteza, pelo receio. Como vai ser agora? Até quando ficaremos assim?”, conta no site do Lugar Específico a fundadora do projeto. Depois de uma primeira edição que serviu para confirmar que, de facto, o contacto com a arte pode mudar vidas, já está marcada a próxima: decorrerá na primavera de 2021, em maio.
Após ter feito uma Open Call para selecionar os artistas da próxima edição, o Lugar Específico já está a olhar para maio, enquanto aproveita para (se) refletir. O Gerador conversou com Susana Alves neste preâmbulo; falou-se sobre o papel transformador da arte, o valor da cultura e, claro, a próxima edição do PARApeito.
Gerador (G.) - A ideia para o PARApeito surge em pleno confinamento, quando só podíamos ver cenários diferentes dos que tínhamos em casa, olhando pela janela. Podemos dizer que PARA peito surgiu de uma urgência por ver mais e querer dar a ver mais, também?
Susana Alves (S.A.) - Começamos bem, porque é muito interessante a tua forma de colocar esta questão. O PARApeito surgiu da vontade de continuar a fazer chegar a cultura e a arte à comunidade. O desafio, desde o início do confinamento, foi procurar soluções alternativas que tornassem possível o encontro e a partilha ao vivo, dentro das condições necessárias de segurança impostas. A ideia partiu da imensa oferta e exponencial crescimento das entregas ao domicílio. Pensei que se se entrega tudo, porque não entregar arte onde as pessoas estão recolhidas, confinadas. A ideia foi crescendo em mim, mas faltava a forma de a financiar. E eis que surge a oportunidade lançada pela Câmara Municipal de Lisboa com o fundo de emergência social — cultura. Reformulei ou compus a ideia de forma que encaixou que nem uma luva.
As pessoas vivem em sociedade por uma razão, somos seres sociais, precisamos do contacto, do toque, do estar próximos.
O PARApeito surgiu dessa necessidade de estar em contacto com outras pessoas e de levar um pouco de acolhimento ao peito daqueles que estavam isolados por questões mais sérias, para além da precaução. Por isso, decidimos por um formato de apresentação que pudesse ser visto da janela, do parapeito, para alcançar as pessoas que não podem sair dos seus quartos.
Temos duas premissas com o PARApeito, uma é levar arte até às pessoas em isolamento e incentivar que essas pessoas possam experimentar espetáculos ao vivo e em proximidade apesar da condição de distanciamento; a outra é dar oportunidade aos artistas em fragilidade financeira de continuarem a criar e apresentar as suas criações ao público — e serem remunerados por isso. Portanto, unimos dois cenários frágeis com intenção de os fortalecer ao menos um pouco.
Quisemos, principalmente, levar a arte até onde ninguém ia. E sim, queremos incentivar a ver e a pensar além dos padrões convencionais que se encaixam nessa janela onde, por vezes, ficamos presos.
G. - Tendo com conta os constrangimentos gerados pela pandemia, o festival será apresentado em lares, hospitais e “outros contextos de fragilidade e isolamento”. Quando a urgência é tratar da saúde ou lidar com a velhice, sentem que a cultura passa para segundo plano? Como se a cultura e a arte não fossem alimentos para o espírito — para o peito.
S.A. - Exatamente. A arte acaba, de certo modo, por ser deixada em segundo plano quando se fala em prioridades. Neste contexto, principalmente, vimos o quanto a cultura pode sofrer cortes sem nenhuma chance de figurar entre os tópicos de grande importância.
Por outro lado, depende aqui do tipo de arte de que estamos a falar, uma vez que há um certo tipo (mais comercial) em que as pessoas continuam a investir. Infelizmente, a grande maioria dessas produções não têm o poder transformador da sociedade, o seu papel é meramente de entretenimento. Penso que o que estamos a viver hoje é consequência da ausência de investimento, ou até do desinvestimento na educação, principalmente na educação cultural. A questão é sobre atribuição e reconhecimento de valor. As pessoas passam a cultura para segundo plano e não priorizam, porque não se apercebem do valor e do benefício que lhes traz, quando, por vezes, nem percebem a presença constante que tem nas suas vidas: a música, o cinema, por exemplo... Muitas vezes, não é a falta de dinheiro, porque haverá sempre um esforço extra para o iPhone novo, o problema é a falta de ferramentas para compreender os benefícios desse investimento. Penso que esta poderia ser uma oportunidade de ouro para repensar o sistema cultural português.
No que diz respeito à saúde, aqui em Portugal estamos ainda longe do que seria ideal, pois ainda se pensa, em primeiro lugar, na saúde física e não se leva em conta que a saúde mental é de extrema relevância para a cura do corpo como um todo. Ainda se tem vergonha, ainda se pensa que “isso é para malucos” e ainda se corre atrás do prejuízo, em vez de trabalhar na prevenção. Podemos ver em diversos estudos científicos que a arte está diretamente ligada ao bem estar mental e que a exposição a obras de arte pode contribuir para a melhoria, também, de questões físicas. Corpo e mente fazem parte do mesmo sistema. Foi a escola que os separou e a arte é o lugar privilegiado para os juntar de novo.
O trabalho de mediação cultural realizado no Lugar Específico procura, entre outras coisas, mostrar a relação direta entre a fruição artística e o bem estar, levando as pessoas a experimentar a arte em diversos contextos da vida cotidiana, como uma forma de ver e estar no mundo. Vemos nas pessoas a necessidade de criar uma conexão real com a vida e com o que as rodeia e entendemos a arte como um facilitador deste processo. É já notório que a 3ª vaga que aí vem é a vaga da doença mental, porque andámos a descurá-la. É urgente começar a agir!




G. - Um dos vossos objetivos, expresso na Open Call, é dar a artistas a oportunidade de se apresentarem a público. Como é que está a funcionar o processo de seleção? O que é que procuram nesses projetos?
S.A. - Fechou recentemente a fase de acolhimento de propostas, no dia 15 de dezembro, portanto não demos início ao processo de seleção. Agora que terminou a 1ª edição do festival, estamos mais cientes do que resulta. O importante é a simplicidade e a flexibilidade de adaptação necessária para podermos apresentar em qualquer tipo de lugar: rua, pátio, jardim, sítios pequenos ou grandes, seguramente fora dos espaços convencionais. Uma vez que este projeto depende de instituições acolhedoras, não sabemos, ainda, onde vão acontecer as apresentações, então é importante não excluir especificidades à partida. Tudo isto faz parte do desafio das criações para este festival. O segundo é a mensagem, é fundamental que se passe uma emoção, uma magia, uma semente de pensamento, de sentimento, de transformação, de imaginação. Ao fim de tantos meses condicionados, chegámos a um lugar onde estamos fechados em bolhas de proteção que nos afastam do outro, porque o outro passou a ser uma ameaça. E é aqui que reside a questão, quando se confunde a forma com o conteúdo, ou seja, na verdade, o facto do outro poder transportar uma ameaça não faz com que o outro, em si, seja a ameaça. A bem do futuro da sociedade temos, aos poucos, de ir rebentando essas bolhas reativando as pontes e as relações entre as pessoas.
G. - O júri é composto pela equipa do Lugar Específico e por um grupo de jovens em acolhimento na casa da associação ACREDITAR. Em que sentido é que era importante, para vocês, incluí-los neste processo?
S.A. - O Lugar Específico é um espaço dedicado à mediação cultural e à arte-educação, que se assume como independente, alternativo e fora do sistema convencional. Enquanto responsável por este espaço cultural, não me considero programadora nem tenho essa ambição. O foco principal deste projeto é o de aproximar a comunidade não artística da arte contemporânea. Vejo-o como um projeto de mediação cultural e procurei fazê-lo da forma mais completa. Para mim, é importante que a comunidade se envolva nas várias fases do projeto e que tenha oportunidade de compreender como acontecem estes trâmites normalmente encerrados, secretos e inacessíveis ao público. Acredito que, depois de participarmos numa experiência que nos envolve, passamos a olhar para ela de forma diferente, passamos a conseguir valorizá-la, porque nos identificamos com ela. É também objetivo do Lugar Específico contribuir para o desenvolvimento de públicos e de um público que sabe a importância do seu papel, sabe escolher e pensar sobre o que viveu. Esta iniciativa visa cumprir esse objetivo.
Estes meninos que aqui vamos envolver foram público da primeira edição, o que faz com que tenham tido uma experiência complementar à nossa. Queremos aproveitar isso e incorporar essa experiência na nova escolha, pois isto permite termos um horizonte mais alargado. Por mais incrível que pareça, uma vez que toda a atividade artística depende do público, a experiência do espectador continua a ser negligenciada e está afastado dos processos de escolha, financiamento, etc.
Por outro lado, não quero encerrar em nós a decisão da escolha, como se tivéssemos esse ascendente sobre o que é bom ou não. Aqui, é importante a excelência artística, o rigor, o profissionalismo, mas este tem de ser equilibrado com o humanismo, o respeito pelo outro e a vontade de chegar ao outro de forma positiva através do que fazemos, com o devido espaço para a experimentação e até para o erro. A nossa equipa vai fazer uma pré-seleção, pois há questões técnicas e práticas que excluem, à partida, certas propostas já que há características muito específicas que precisam ser tidas em conta para que resulte. Esta seleção será, depois, partilhada com os meninos para que eles nos ajudem a escolher, ao mesmo tempo que desenvolvem competências de pensamento crítico, argumentação, negociação, enquanto se ocupam com uma atividade que os pode ajudar a sair da bolha, onde foram obrigados a estar durante todo este tempo e que os fez viver a sua condição (doentes de cancro) de forma ainda mais intensa e dramática, pois estiveram todo este tempo sem escapes.
G. - Dentro da Open Call existem bolsas de apoio à criação que serão atribuídas por vós. Sendo o PARApeito apoiado pelo fundo de emergência da Câmara de Lisboa, sentiram que tinham também de dar a mão aos artistas dessa forma?
S.A. - Sim. Vimos de perto o que o confinamento causou aos artistas e instituições culturais, sentimos na pele a queda no consumo cultural nesse período e quisemos partilhar com artistas, como nós, a sensação de poder criar ou apresentar um espetáculo adaptado e ser remunerados por isso.
Entre os nossos objetivos principais está dar apoio financeiro aos artistas selecionados para que possam manter acesa a chama da criação e para que não seja somente uma apresentação num projeto, mas um respiro dentro desta "nova" realidade que nos apanhou a todos de surpresa. Infelizmente, não temos orçamento para fazer mais, mas estamos preparados para apoiar e acompanhar oito artistas no total do projeto. Era muito bom se pudéssemos obter mais apoio para podermos alargar este espectro, por um lado ter mais apresentações para cada artista selecionado, por outro, poder ter mais artistas envolvidos e, ainda, podermos ir para zonas fora da cidade de Lisboa.
Para nós, é importante saber que contribuímos, de alguma forma, para ajudar os artistas que viram o seu trabalho ser desvalorizado frente a outras prioridades que surgem numa situação de saúde pública. Vimos fecharem-se as portas dos espaços culturais e, com elas, as chances dos artistas se manterem através do seu trabalho artístico. Por isso, fizemos questão de oferecer bolsas para adaptação de espetáculos e também para criação.




G. - Em que medida é que o acesso à cultura e à arte pode, a vosso ver, contribuir para uma boa saúde mental?
S.A. - A minha formação de base é em Psicologia Educacional, nunca exerci a profissão de forma tradicional, porque tive a sorte de ter a oportunidade de experimentar, no contexto de um museu, tudo o que aprendi na faculdade, e assim compreendi que a Arte Contemporânea é o lugar ideal para realizar esse trabalho. A arte tem o papel transformador de nos permitir o diálogo connosco e a digestão do que nos acontece e do que acontece pelo mundo. E isso acontece de duas formas: na produção/criação e na fruição. Ambos com um potencial terapêutico, mas a diferentes níveis e, provavelmente, para diferentes pessoas. Para algumas, a criação é fundamental à manutenção do seu equilíbrio. Para outras, é na fruição que a magia acontece, não tanto no ato de criar, mas sim no de contemplar, sentir, apreciar, interpretar, experimentar.
No nosso percurso de vida escolar, o nosso corpo é separado da cabeça, funcionam como se de dois mundo independentes se tratassem, quando, na verdade, são um só. A arte e as suas múltiplas linguagens, acionam partes de nós que, para a maioria da população, estão adormecidas. Quando as ativamos, estamos a permitir a criação de um fluxo interno que nos ajuda a reorganizar os acontecimentos, as emoções e os sentimentos, e a libertar tensões, ansiedades, preocupações e dissipar dúvidas e angústias. Partilhar, pôr em comum, projetar, devolver, suspender, refletir, transformar, são alguns dos benefícios que a arte nos permite usufruir. Num mundo que rola a um ritmo desumano, é fundamental a manutenção desses momentos de pausa, de contemplação e de reflexão.
Podes saber mais sobre o Lugar Específico e o PARApeito, aqui.