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Opinião de Andreia Monteiro

Ensaio sobre a descultura

I A silhueta verde ganhou vida. Por alguns segundos, a agitação da metrópole congelou dando…

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I

A silhueta verde ganhou vida. Por alguns segundos, a agitação da metrópole congelou dando lugar aos passos errantes. Ao seu lado estava a mulher do casaco de peles, o jovem de camisa de linho folgada e a rapariga do casaco largo e geometricamente multicolor. O avô e a neta trocaram um olhar e avançaram também. O Teatro encarava-os, com as luzes refletidas nos bilhetes que seguravam. Ao longo da silhueta do edifício juntava-se um aglomerado de vozes inquietas. Junto à porta dos artistas, o diretor do Teatro bracejava impaciente enquanto segurava o telemóvel cuja luz lhe tingia o rosto. O avô aproximou-se da entrada principal. Dentro do edifício, o relógio apontava as nove horas da noite, mas não havia ninguém para receber os espectadores.

O diretor desaparece. A neta chama o avô para perto de si e confessa-lhe que sente um formigueiro na barriga. Um instinto nefasto. Ambos se toldam pelo desconforto da incerteza. O diretor interrompe os burburinhos amplificados, surgindo na porta principal. Não haverá espetáculo. Desculpe? Como assim não haverá espetáculo? Houve algum problema com o edifício? Os artistas? Não. O Teatro fechou. Como fecha um teatro em dia de estreia? Todos os estabelecimentos culturais encerraram. Até quando? Para sempre.

II

O despertador emitiu um ruído de interferência. A neta não acordou com a habitual pergunta daquela voz quente – “Qual é a ideia?”1 Empunhou o telemóvel que repousava na mesa de cabeceira. Desligou o despertador e acedeu às suas definições. Onde antes se inscrevia o nome da música, apareciam caracteres aleatórios. Foi ao Spotify e as suas playlists tinham sido apagadas. Foi ao YouTube e qualquer vídeo musical ou performativo dizia estar indisponível no seu país. O seu tronco ergueu-se assustado. Em frente, a estante habitualmente recheada por livros empilhados estava vazia. A aparelhagem estava partida. A prateleira dos discos, mais leve do que alguma vez a conhecera. A sua coleção de DVDs dissipara-se. Apressou-se para a cozinha onde costumava encontrar o avô a preparar ovos mexidos para a primeira refeição do dia. Encontrou-o com um olhar lunar, vazio, sentado à mesa. À sua frente, no lugar que costumava ser ocupado por um prato gastronomicamente venturoso, havia um comprimido que dizia pequeno almoço. No lugar da neta, o mesmo. 

III

A cantora acordou e, como reflexo, abriu a boca para entoar uma nota, garantindo que continuava a ser detentora de uma voz, de um timbre, de uma história. Ao contrário das outras manhãs, não ecoou qualquer som. De olhos, agora, arregalados, voltou a abrir a boca e a recriar o movimento abdominal e bocal que conhecia. Nada. Correu para a casa de banho, onde se encarou, pálida. Tentou cantar o tema que estivera a estudar no dia anterior. Os seus lábios mexiam contornando as palavras, mas nada se ouvia. Um grito. Ah! Eu tenho voz! Ouviu-se. Voltou a tentar cantar, mas qualquer nota emitida com uma intenção melodiosa era silenciada. Correu para o estúdio, onde o pianista já se encontrava. As teclas não emitiam qualquer som. Ocupou a bateria e o impacto das baquetas sobre os tambores era mudo.

As palavras da humorista eram travadas com a mesma assertividade da voz da cantora. Nas editoras, todos os ficheiros de livros por publicar haviam sido apagados. Os livros extintos. Os papéis, queimados. No quarto do escritor, o teclado do computador escrevia tudo, exceto se ele intencionasse edificar uma obra literária ou qualquer pensamento. A gaveta da artista visual já não tinha pincéis; lápis ou canetas não imprimiam resultados sobre qualquer superfície. As tintas estavam secas e comprovaram-se insolúveis. O programa de desenho digital estava bloqueado. Os videojogos davam lugar a ecrãs negros. As telenovelas, séries e filmes desapareceram da grelha das televisões.

As mercearias mostravam comprimidos multicolor, cada um recriando refeições ou alimentos que antes povoavam as cozinhas dos grandes chefs. Os menus dos restaurantes eram o reflexo dessa paisagem química.

As paredes grafitadas estavam virgens. Os edifícios da cidade foram convertidos em módulos uniformes, pintados de um branco gélido.

Ouviram-se alguns protestos combatentes. Os meses passaram, as respostas não surgiram. As asas deixaram de voar.

IV

A Cultura desapareceu. Primeiro, naquele país. Depois, em efeito dominó, pela Europa. Mais tarde, no mundo.

A economia perdeu mais de 28,1 mil milhões de euros em exportações de bens culturais. 7,6 milhões de pessoas perderam o emprego. O Produto Interno Bruto (PIB) da União Europeia (UE) caiu 4,4%, com uma quebra de receitas na ordem dos 643 mil milhões de euros. Verificou-se uma quebra na inovação tecnológica, diversidade de género e promoção de emprego para os jovens.2

Um a um, passo a passo, país a país, foi-se abandonando a democracia, entregando-se a governança a ditaduras cegas, discriminatórias, violentas, mortais. As torneiras deixaram de verter água. Os invernos tornaram-se quentes e os verões, vulcânicos. Havia mais refugiados do que lares habitados. Os ricos tornavam-se mais ricos. Os pobres extinguiam-se. O poder dirigia terras de ninguém, meia dúzia de corpos robóticos e um abundante vazio.

O avô zelava pelas memórias na intermitência da morte em vida, mas a neta perdera os sonhos. Declarou-se luto mundial pela suprimida empatia. As cidades tornaram-se acríticas, mutantes e estáticas.

V

Silêncio. Um fúnebre silêncio.


1 – “Nova Lisboa”, de Dino D’Santiago.

2 – Dados inspirados no resultado do estudo “Reconstruir a Europa: a economia cultural e criativa antes e depois da covid-19”, levado a cabo pela consultora internacional EY, encomendado pelo Grupo Europeu de Sociedades de Autores e Compositores (GESAC), e divulgado no dia 26 de janeiro, em Bruxelas.

-Sobre Andreia Monteiro-

Cresceu na terra que um dia alguém caracterizou como o “sítio onde são feitos os sonhos” e lá permanece, quer em residência, quer na constante busca por essa utopia. É licenciada em Comunicação Social e Cultural, na vertente de Jornalismo, pela Universidade Católica Portuguesa, e mestre em Ciências da Comunicação, na vertente de Jornalismo, pela mesma entidade. É, desde maio de 2019, a diretora editorial do Gerador, Associação Cultural a que se juntou no final da sua licenciatura. Apaixonada pelo mundo artístico, é uma leitora insaciável, a companheira constante de um lápis e papel, uma curiosa de pincel na mão, uma amante de teatro e cinema e está completamente comprometida com a beleza da música que tem vindo a descobrir. É, desde 2019, aluna na escola de jazz do Hot Clube de Portugal. Acima de tudo, é uma criatura com pouco mais de metro e meio cujo desassossego não deixa muito espaço para tempos mortos.

Texto de Andreia Monteiro
Fotografia de Joana Ferreira

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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