Continuando com a Lampreia recordo uma grande discussão sobre o melhor acompanhamento líquido para tão nobre animal (nobre para uns, repugnante para outros. O mundo é feito assim).
Para dar um pouco de enquadramento, a conversa começou amena e sobre o mesmo tema do casamento entre os sólidos e os líquidos à mesa, mas dedicada ao senhor bacalhau. Como passou depois para a lampreia e como descambou em discussão?
Passo a tentar explicar.
Porquê o bacalhau e a lampreia? Porque sendo aparentemente “peixes”, ou melhor, movendo-se em meio líquido, têm características organoléticas, sabores e aromas, muito intensos, que os distinguem da vulgar utilização dos peixes nobres na nossa gastronomia. A lampreia é um ciclóstomo, mas isso não interessa nada para esta conversa.
O bacalhau faz-se de mil maneiras, mas em quase todas elas – desde os pastéis de bacalhau com arroz de grelos até ao bacalhau espiritual das nossas tias velhinhas – os cânones recomendam vinhos tintos.
Afirmava eu de forma algo assertiva para o meu amigo, que atualmente tudo muda e será o gosto do freguês comensal que dará a ordem para esta harmonia.
Aqui começou a piorar a conversa.
Eu referia que tenho provado, e aprovado, em semelhantes namoros com o fiel amigo, vinhos brancos do Alentejo ou do Douro, estagiados, da herdade do Esporão e da casa Niepoort . Os grandes brancos de encruzado e as colheitas de várias castas em vinhas velhas do Dão também se batem galhardamente com a “múmia pisciforme” (Quitério dixit).
Todavia mantinha então a opinião que ainda hoje perfilho: a melhor escolha é e será um belo tinto. Novo e vibrante. Com a força da juventude e alguma acidez para combater a gordura do inevitável (e estimável) azeite. As alternativas são imensas, desde os Bairradas de baga, aos Ribatejanos de casta trincadeira, até aos vinhos da Península de Setúbal com a típica periquita (castelão francês).
O meu amigo teimoso nem admitia “brancos” nesta refrega. Era tinto e pronto. Mas como na prática ganharam os tintos, o assunto não descambou logo ali.
Quanto à lampreia, o caso fiou mais fino…
Diziam os antigos que era esta a decisão mais fácil do mundo: Para acompanhar a lampreia deviam ser servidos os vinhos com que foi confecionada: o Verde Tinto ou o Maduro Tinto, consoante os casos e as receitas que vão geograficamente do Rio Minho aos afluentes do Tejo, passando pelo Mondego.
Mundo mais simples, decisões mais fáceis e (digo eu...) talvez mais sensatas.
Mas hoje já não é bem assim. Partimos do princípio que os atuais homens e mulheres que fazem da gastronomia um palco de vaidades não entendem resolver o assunto com tanta facilidade e dele fazem contenda e demanda.
O meu amigo e eu, que éramos amadores confessos da senhora Lampreia, tínhamos experimentado beber de tudo (praticamente) com as várias declinações da dita. Desde o arroz de lampreia, à escabechada, passando pela bordalesa, pela lampreia fumada e recheada e até pela lampreia assada no forno. E nalgumas coisas estávamos de acordo, mas nem sempre.
Por exemplo, concordávamos em não apreciar os vinhos brancos com estes pratos. E achávamos que os tintos verdes eram bem-vindos, são os que menos conflituam com o sabor avinagrado do arroz ou do escabeche de lampreia. Sobretudo os da casta “vinhão”.
Foi quando chegámos aos tintos maduros que se acabou a unidade. Eu sempre achei que tintos maduros também são uma escolha (sobretudo para a lampreia assada no forno) e por vezes até os meus preferidos para as outras preparações. Existem grandes vinhos com suficiente adstringência que dá bem para aguentar o vinagre.
Enquanto que o meu amigo funcionava ao contrário: verde tinto, verde tinto, tinto verde, em não havendo, lá teria de ser o tinto maduro, depois água-pé e no fim da linha o branco.
Tanto barafustámos que, da próxima vez que se fez o petisco em casa dele, eu trouxe várias garrafas de espumante bruto tinto, para ver se alguma harmonia seria possível.
Resposta do meu Amigo:
- “Então onde está o leitão para acompanhar com isto?”
Estalou logo o verniz. Parecia a faixa de Gaza.
Mal comparado…
-Sobre Manuel Luar-
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.