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O Bairro

Naquele bairro, as pessoas cumprimentavam-se quando se cruzavam na rua: “Bom dia, Dona Maria, como…

Opinião de Marta Crawford

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Naquele bairro, as pessoas cumprimentavam-se quando se cruzavam na rua: “Bom dia, Dona Maria, como está a sua filha?”, “muita saúde, Senhor Raul”, “precisa de alguma coisa, Isabelinha?”, eram expressões comuns. O bairro tinha uma população idosa, mas, desde o princípio do novo século, tinha começado a transformar-se, acolhendo gente mais jovem, crianças e muitos animais. Algumas pessoas que tinham mudado para aquele bairro procuravam uma vida mais pacata e mais arejada, mas dentro da cidade. Composto por pequenas casinhas com jardins, o bairro, visto do céu, parecia formar um coração. Sempre que a Teresa regressava de Bruxelas e o avião sobrevoava o seu bairro comovia-se, pois, independentemente de ter ou não alguém à sua espera em casa, aquele coração dava-lhe sempre as boas-vindas, cheio de amor.

Foi num desses regressos a casa, depois de uma viagem complexa e tensa, que a Teresa acabou por tropeçar numa história que, em breve, também seria a sua.

Um homem alto, de cabelos negros e barba em forma de pêra seguia à sua frente. Talvez estivessem no mesmo voo. Não tinha reparado. De gabardine amarela mostarda, parecia uma personagem saída de um filme. Observou-o por detrás dos seus grandes óculos escuros e sentiu uma certa estranheza e um tremor que a fez ficar ofegante.

Estava mesmo contente por chegar a casa, desejosa de tomar banho, vestir o pijama e de se lançar para cima do sofá.

Já deitada, voltou a pensar naquele encontro no aeroporto. Continuava incomodada. Havia qualquer coisa naquele homem que a fazia lembrar de algo, como se de um déjà-vu se tratasse. Nessa noite, adormeceu ali, na sala, enrolada no edredom de penas e com o copo ainda cheio de vinho.

Adorava ouvir ópera ao acordar e já sabia de cor as letras das grandes sopranos. Naquela manhã, ao som de “Um bel di Vedremo”, na voz da Callas, sentiu-se arrepiada e com uma motivação adicional para o dia. Puccini tinha sempre esse efeito.

Quando saiu de casa para passear, encontrou a Dona Perseverança que cuidava das flores do seu quintal. Esta senhora era especialmente delicada com o seu jardim e, às vezes, até parecia sussurrar confidências às plantas. A Dona Perseverança, de 80 anos, era muito bonita, sempre muito bem arranjada, com um sorriso generoso e um coração terno. Tinha sempre uma atitude de quem se esforça constantemente, ultrapassando todos os obstáculos, fazendo jus ao nome com que tinha sido batizada.

O seu bairro era circundado por uma mata verdejante com árvores centenárias e um pequeno riacho que fazia a alegria das rãs e das libélulas. Nesse bosque existiam vários equipamentos e havia um que era especialmente curioso: o parque dos cães.

Teresa costumava sentar-se no banco do jardim, estrategicamente colocado por debaixo de uma cerejeira, a observar os cães e a escutar os seus donos. Adorava ouvir as conversas do rapaz de boné, sempre acompanhado de Noire, um rafeiro magrinho e dócil; da rapariga ruiva com a sua Chocolate; da senhora da cadela cinzenta chamada Angie… Estes eram os habitues, mas havia mais.

O rapaz de boné e o seu cão enterneciam-na. Parecia ser especialmente doce e amigo dos animais, cuidadoso com os demais, atencioso, sempre com um “bom dia” vigoroso, de cada vez que alguém entrava no parque. Era um bom conversador e preocupava-se genuinamente com o bem-estar de todos. Tinha sempre assunto para falar, quer fosse do tempo, do bolo de bolacha que tinha acabado de fazer ou da falta de limpeza do parque.

Já começava a congeminar uma história entre o rapaz do boné e a rapariga. Afinal, os cães pareciam entender-se bem e esse era, para já, um bom prenúncio.

Sentada por debaixo da cerejeira em flor, sentiu o vento fresco do Norte a abanar os ramos, ficando coberta de centenas de pequenas flores perfumadas. A primavera estava finalmente a chegar e, tal como as flores se tinham libertado das suas amarras, também ela se sentia preparada para despertar.

E foi nesse precioso momento que sentiu o olhar de um homem alto, de cabelos negros e barba em forma de pêra, numa gabardine amarela mostarda...

-Sobre a Marta Crawford-

É psicóloga, sexóloga e terapeuta familiar. Apresentou programas televisivos como o AB Sexo e 100Tabus. Escreveu crónicas e publicou os livros: Sexo sem TabusViver o Sexo com Prazer e Diário sexual e conjugal de um casal. Criou o MUSEX — Museu Pedagógico do Sexo — e é autora da crónica «Preliminares» na Revista Gerador.

Texto de Marta Crawford
Fotografia de Diana Mendes

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