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A alvorada de tudo

Nas Gargantas Soltas de hoje, Jorge Pinto, baseando-se na opinião de diferentes autores, mostra-nos como o passado (real ou manipulado) influencia o presente das sociedades.

Opinião de Jorge Pinto

©Luís Catarino

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É famosa a passagem do livro “1984” onde o seu autor, George Orwell, escreve que quem controla o passado controla o futuro e que quem controla o presente controla o passado. Não surpreende, pois, que o presente se faça também, quando não sobretudo, de mitos, ilusões e mentiras que se tornaram verdades de estado. Mantendo estes mitos vivos, controla-se o passado e prepara-se um futuro à medida do presente, definido pelas forças políticas e ideologias dominantes.

Sendo um projeto político, é essencial que estes mitos sejam constantemente alimentados. De forma voluntária ou não, são muitas as publicações mais ou (quase sempre) menos científicas que vão alimentando visões daquilo que se acha que foi obrigatoriamente o passado comum. A ciência, forçosamente politizada como todas as atividades humanas, não é neutra nesta definição do passado, servindo-se dela, de acordo com as suas necessidades, aqueles que controlam o presente.

Mas é também graças à ciência que podemos renovar o nosso conhecimento sobre as origens da humanidade e, fazendo-o, acabar com uma série de mitos que limitam o modo como conseguimos imaginar o futuro. É precisamente esse esforço que fazem David Graeber e David Wengrow no seu livro de 2021 “The dawn of everything – a new history of humanity” (A alvorada de tudo – uma nova história da humanidade, não traduzido em português). Graeber, falecido em 2020, foi um antropólogo reconhecido pelo seu trabalho sobre a teoria de valor e o conceito de dívida ao longo da história, bem como pela sua análise dos bullshit jobs (empregos da treta). Foi também um intelectual ativista, tendo um papel destacado no movimento Occupy Wall Street, sendo um dos anarquistas de maior importância no século XXI. Wengrow é arqueólogo, especialista em arqueologia comparada e com trabalho de campo em várias partes do planeta. A combinação das suas duas especialidades, bem como as descobertas arqueológicas das últimas décadas, permitiram a escrita deste portentoso livro de mais de quinhentas páginas que nos leva numa viagem à volta do globo e ao longo de milénios.

Para escrever esta nova história da humanidade, os autores vão à procura de respostas para alguns dos mais antigos e persistentes mitos, tais como o do “bom selvagem” de Rousseau e o seu oposto humano egoísta por definição no seu “estado de natureza” segundo Hobbes, mitos sobre a fundação dos estados, sobre a ideia de propriedade, sobre a “revolução” da agricultura e de como isso nos afastou de uma sociedade igualitária ou ainda mitos sobre a obrigatória criação de hierarquias com a complexificação de uma sociedade. A conclusão é a desconstrução de todas estas certeza mitificadas e a rejeição de uma espécie de determinismo histórico que se aplicaria a toda a humanidade, independentemente da localização e da época em que uma determinada sociedade se situe.

Há muito a destacar neste livro mas tentemos focar-nos nos pontos essenciais. Uma das principais conclusões é a de que a humanidade, historicamente, se construiu a partir de múltiplas experiências, de contacto e difusão cultural mas também por cismogénese, isto é, o processo de afastamento e diferenciação (intencional) de uma comunidade em relação a outra com a qual tenha contacto. Não houve apenas uma maneira de fazer e ser-se humano com expressão semelhante em diferentes partes do globo. Pensando bem, como poderia ter sido assim com uma espécie como a nossa onde a curiosidade é talvez o principal traço comum ao longo do tempo e das latitudes.

Assim, temos exemplos históricos de sociedades pequenas mas altamente hierárquicas - refutando assim a ideia de um igualitarismo em todas as sociedades pré-agricultura e pré-propriedade privada -, mas também exemplos de sociedades complexas e compostas por um grande número de indivíduos onde as hierarquias parecem estar ausentes – refutando a visão hobbesiana do estado da natureza. São-nos também apresentados vários exemplos de sociedades que experimentaram formas de agricultura ao longo de séculos e de forma mais ou menos lúdica, tendo optado pelo seu abandono, desafiando assim a ideia mitológica de uma rápida e global revolução agrícola. Graeber e Wengrow realçam também como a crítica indígena americana à sociedade europeia de então terá influenciado, de modo mais ou menos forte, o iluminismo. Em resumo, “não houve um verdadeiro estado de coisas original (…) [tendo] os seres humanos tido dezenas de milhares de anos para experimentar diferentes modos de vida antes de se virarem para a agricultura” (p. 140).

É evidente que uma série de afirmações como as feitas neste livro – e pese embora as repetidas advertências de que o tipo de análise feito obriga sempre a alguma especulação – traria críticas. Exemplos incluem David Bell que rejeita a ideia de que o iluminismo tenha sido grandemente influenciado pela crítica indígena da sociedade europeia ou ainda a crítica do filósofo Kwame Anthony Appiah que acusa os autores de tentarem “desenterrar utopias” para justificar a sua orientação ideológica.

Ironicamente, é precisamente disso que se trata. Como escreve David Wengrow na resposta a Appiah, a arqueologia, apesar de ser sempre um exercício de alguma imaginação é “limitada pelas provas e guiada pelos princípios científicos de descoberta, interpretação e refutação.” Deste modo, prossegue Wengrow, a arqueologia pode, ocasionalmente, “desafiar mitos e derrubar dogmas”, residindo aí a força do passado, na sua “imprevisibilidade, capacidade de surpreender e desafiar a sabedoria convencional”.  Se nesse passado se desenterram utopias, então só se prova a versatilidade do ser humano e a sua capacidade para, coletivamente, construir uma sociedade em que ninguém fica para trás.

O livro, escrevem os autores, é sobretudo sobre liberdade e “explora a possibilidade de os seres humanos terem mais capacidade coletiva de definir o seu destino do que aquilo que usualmente assumimos” (p.206). Olhando para exemplos passados, um dos ensinamentos principais deste livro é o de que não somos obrigados a sacrificar a nossa liberdade para nos organizarmos numa sociedade complexa. E esse, sim, é um mito do qual nos precisamos de livrar. Com este renovado conhecimento do nosso passado temos ao nosso dispor todas as ferramentas para continuarmos a fazer aquilo em que sempre fomos bons: experimentar, experimentar, experimentar. Como dizia David Graeber numa entrevista de 2014:

“Libertar-nos dessas restrições mentais é libertar um novo imaginário utópico. É possível que estejamos num momento crucial na história da nossa civilização, do tipo que só acontece a cada quinhentos anos. Viver este período sem ideais utópicos seria um erro grave.”

-Sobre Jorge Pinto-

Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem Digo (no prelo). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.

Texto de Jorge Pinto
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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