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A canção ontem, a canção hoje

No filme Yesterday, de 2019, um jovem músico inglês chamado Jack Malik torna-se de repente…

Opinião de Luca Argel

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No filme Yesterday, de 2019, um jovem músico inglês chamado Jack Malik torna-se de repente a única pessoa do planeta que se lembra das canções dos Beatles. Malik aproveita-se da situação para apresentar as canções como se fossem suas, e assim realizar o sonho de tornar-se uma grande estrela da música, deixando o mundo inteiro a seus pés. Como em todo filme de ficção, é necessário uma certa dose de suspensão da descrença para aceitar a premissa de uma amnésia coletiva global tão específica. Mas confesso que com esta parte do argumento não tive qualquer problema. A luta para manter a minha suspensão da descrença foi com outro aspecto fundamental da trama: será que nos dias de hoje a canção ainda possui tanto poder? Não a publicidade, o marketing, o branding, as hashtags, feats, streams, e toda a panóplia de ferramentas que hoje a indústria musical exige que o artista mais ambicioso domine. Malik não foi abençoado com nenhuma aptidão para elas. Bem pelo contrário, aliás. Tudo o que ele tinha era a boa e velha canção, pura e dura, e nada mais. Mas nos dias que correm isto ainda será suficiente?

Para alcançar o nível delirante de popularidade que o filme retrata, e que os verdadeiros Beatles chegaram a alcançar no passado, suspeito que não. Lembra-me uma entrevista que Chico Buarque deu em 2004, logo após o lançamento do livro Budapeste, enquanto preparava-se para voltar a compor depois de alguns anos praticamente sem fazer nenhuma música: “Como a ópera foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. (...) Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou.”

Ouvir um dos maiores cancionistas da língua portuguesa dar uma declaração destas deve ter soado, aos ouvidos dos compositores e amantes de canções, como as trombetas do apocalipse. Mas cá estamos, 17 anos depois, e a canção continua aí, muito bem, obrigado. O mundo, é claro, mudou, e por isso a chave para compreender a declaração de Chico talvez esteja não no anúncio de uma possível extinção, mas na expressão que ele por duas vezes repete quando se refere à canção: tal como a conhecemos.

Por um lado, temos a agressividade de uma indústria cultural submetida à lógica de consumo capitalista, elevada à máxima potência por um desenvolvimento tecnológico igualmente veloz e agressivo, que impõem ao compositor de hoje uma série de demandas criativas absolutamente inimagináveis no século passado, e que inevitavelmente terão um grande impacto na forma de produzir canções tal como as conhecíamos. Por outro lado, o núcleo duro de que são feitas as canções ainda conserva todo o seu poder de comunicação, mobilização e comoção que sempre teve sobre nós: uma voz a entoar palavras. Reduzida ao mínimo, a canção é tão simples quanto isso. É mesmo possível que a nossa espécie tenha aprendido a cantar antes mesmo de começar a falar, e desde tempos imemoriais usamos a canção para embalar o sono dos nossos filhos, para suportar nossas jornadas de trabalho mais duro, ou para louvar as nossas entidades sagradas (estejam elas no altar, no palco ou no relvado). Antes de se refugiar nos livros, toda a nossa poesia vivia na voz de rapsodos, aedos, trovadores, xamãs, griots. A história de nossos povos foi preservada através de canções. Passamos por guerras, epidemias, revoluções, viajamos para o espaço, e continuamos criando e nos emocionando com canções. O tempo da canção está longe de passar.

A forma dela, isto sim, é que está sempre em transformação (ópera, rock, hip hop), mas uma vez que a matéria prima mantém-se a mesma — a palavra e a voz — é razoável pensarmos que há certos mecanismos constantes que as regem. Práticas consagradas pelo tempo, caminhos expectáveis e regras intrínsecas com as quais o compositor está em permanente diálogo, seja para segui-las ou para quebrá-las. E é nesta parte mais “sistemática” do processo de criação de canções onde iremos mergulhar este verão no curso Oficina da Canção, na Academia Gerador. Desmontá-la, analisar suas peças, experimentar com suas infinitas possibilidades de combinação. Jogar, enfim, com este eterno objeto de fascínio, ora brinquedo, ora arma, que é a canção.

-Sobre Luca Argel-

Luca Argel é um cantautor carioca, residente em Portugal desde 2012. Licenciado em música pela UNIRIO e mestre em literatura pela Universidade do Porto, tem trabalhado como vocalista e compositor de canções e bandas sonoras para bailado e cinema, e como apresentador de rádio. Tem livros de poesia publicados no Brasil, em Espanha e em Portugal, um dos quais foi semifinalista do Prémio Oceanos 2017. Tem quatro álbuns lançados, o último dos quais, Samba de Guerrilha, é dedicado à história política do género.
Luca Argel é formador do curso "Oficina da Canção" que decorre nos dias 17, 18 e 19 de agosto na Academia de Verão Gerador 2021.

Texto de Luca Argel
Fotografia cortesia de Luca Argel

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