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A “Crónica dos Feitos da Guiné”: os primórdios do racismo antinegro?

Em 1460, o cronista régio Gomes Eanes de Zurara terá concluído a escrita da Crónica dos Feitos da Guiné. O texto tem sido objeto de estudo por parte de diversos académicos portugueses e internacionais dada a sua relevância histórica. Numa obra publicada em 2016, o historiador norte-americano Ibram X. Kendi defendeu que a crónica do português assinala a inauguração do registo de ideias racistas antinegras. Porém, a afirmação é contestada.

Texto de Débora Cruz

Gomes Eanes de Zurara no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa. Fotografia via Flickr

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Há cerca de seis séculos, nos inícios da década de 1450, D. Afonso V encarregou o cronista régio Gomes Eanes de Zurara de escrever uma crónica. O autor deveria enaltecer o tio do monarca, o Infante D. Henrique, e as viagens e expedições militares impulsionadas por ele ao longo da costa atlântica de África, na então designada costa da Guiné, entre a década de 1430 e finais da década seguinte. A Crónica dos Feitos da Guiné é o fruto desse pedido régio: constitui o primeiro texto português sobre a África a sul de Marrocos.

As cinco razões que motivaram o Infante D. Henrique a promover as viagens na costa ocidental africana são apresentadas por Zurara no sétimo capítulo da crónica: a vontade de explorar os territórios além do Cabo Bojador; a procura de povoações cristãs, de portos seguros e de mercados onde os portugueses pudessem comerciar; o desejo de saber qual era a verdadeira extensão do “poderio dos mouros” na costa de África; saber se existiam, na costa africana, povos cristãos que estavam dispostos a lutar contra os mouros, descritos como os “inimigos da fé”; e, por fim, o “desejo” de promover a “salvação de todas as almas que se quisessem salvar” e, assim, trazê-las ao “verdadeiro caminho”.

Através das viagens promovidas pelo Infante D. Henrique, os portugueses vão pilhar os territórios africanos e capturar os homens, mulheres e crianças que encontram ao longo da costa ocidental. A “salvação das almas” torna-se numa justificação para a escravização destas pessoas, que o cronista designa de “cativos”. No final da obra, Zurara estima que 927 pessoas tenham sido capturadas nas viagens realizadas pelos portugueses, entre meados da década de 1430 e finais da década de 1440. 

A Crónica dos Feitos da Guiné tem sido objeto de estudo de inúmeros artigos científicos e o tema de múltiplos debates e reflexões. Em 2016, o historiador norte-americano, Ibram X. Kendi, publicou o livro Stamped From The Beginning: The Definitive History of Racist Ideas in America e o nome “Gomes Eanes de Zurara” pode ser encontrado, pela primeira vez, no segundo capítulo, intitulado Origins of Racist Ideas

Kendi argumenta que o cronista régio foi o autor do primeiro texto de teor racista antinegro de que há registo. “A Crónica da Descoberta e Conquista da Guiné inicia a história registada de ideias racistas antinegras. As ideias racistas inaugurais de Zurara, por outras palavras, foram um produto das, não produtoras das, políticas racistas do Infante D. Henrique em relação ao tráfico de pessoas escravizadas africanas.” O historiador norte-americano sustenta que, apesar das diferentes etnias e tons de pele das pessoas africanas capturadas, Zurara classifica-os de “um só povo — um povo inferior”, ao mesmo tempo que cria o conceito de negritude e o associa a algo negativo.

Não existe um consenso sobre a veracidade destas afirmações e as opiniões em torno da Crónica dos Feitos da Guiné são diversas: vários investigadores defendem que antes de Zurara já circulavam em Portugal e na Europa ideias racistas; por outro lado, diversos académicos defendem a existência de um pensamento eurocêntrico no cronista, negando a presença de racismo. Mas, quem foi Gomes Eanes de Zurara?

Gomes Eanes de Zurara retratado no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa. Fotografia retirada do site Padrão dos Descobrimentos

Gomes Eanes de Zurara: um “homem da confiança da Coroa”

Gomes Eanes de Zurara terá nascido entre 1410 e 1420 e foi o segundo cronista oficial do reino de Portugal. Em Vida e Obras de Gomes Eanes de Zurara, António J. Dias Dinis escreve que pelo menos um dos pais do cronista deve ter pertencido a um estrato social superior. “Não se explicam, de outra maneira, os factos […] ocorridos em tempos em que tão rigorosamente se estremavam as classes sociais de clero, nobreza e povo.” 

Segundo o autor, Zurara diz ter vivido com o rei D. Duarte I e afirma ter sido criado e educado pelo rei D. Afonso V. O diretor do Centro de História da Universidade de Lisboa, José da Silva Horta, diz nunca se ter debruçado sobre a biografia de Zurara, mas admite que o que António Dinis hipotetiza faz sentido. “[Zurara] é um homem que claramente vive na corte ou que tem uma proximidade grande com a corte. Era aquilo que, muitas vezes, se chama um criado, não no sentido de um servo, mas um homem da ‘criação de’”, explica o historiador. 

Ao longo da sua vida, o cronista régio foi agraciado com vários títulos. Foi comendador da Ordem de Cristo, recebeu o encargo de guarda da Livraria Real e, em 1454, sucedeu a Fernão Lopes como guarda-mor da Torre do Tombo. É a sua condição social e a proximidade com a corte que justificam a atribuição destes encargos. “É um homem da confiança da coroa: alguém ser cronista significa que é uma pessoa de total confiança”, diz José da Silva Horta.

Para o investigador, o ponto mais destacável da biografia de Zurara é precisamente o facto de este ter sido um cronista régio. “É um homem que vai veicular os pontos de vista oficiais da Coroa portuguesa da dinastia de Avis”, explica, “e todo o seu discurso está marcado por essa visão oficial dos acontecimentos”. 

A Crónica da Tomada de Ceuta, encomendada por D. Afonso V, em 1449, é a sua primeira crónica e, entre 1452 e 1453, Zurara terá escrito a Crónica dos Feitos da Guiné, à qual acrescentou passagens, em 1460. Mais tarde, redige a Crónica de D. Pedro de Meneses e, posteriormente, a Crónica de D. Duarte de Meneses. “São obras laudatórias que têm uma tendência de panegírico e de elogio dos protagonistas da dinastia de Avis”, explica José da Silva Horta. O cronista régio terá morrido em 1474, em Lisboa.

A Crónica dos Feitos da Guiné

No livro Dicionário da Expansão Portuguesa (1415 - 1600), Luís Adão da Fonseca explica que a crónica tem sido o texto de Zurara ao qual a historiografia tem dedicado mais atenção. “Não há acordo no que diz respeito a vários pontos, como o título, a data de redação ou a própria genealogia do texto que chegou ao nosso conhecimento.” O historiador indica que vários autores apontam para a possibilidade de o texto ser, na realidade, o resultado da fusão de uma crónica sobre o Infante D. Henrique e de um relato das viagens ao longo da costa ocidental africana, “contendo este último trechos da autoria de um tal Afonso Cerveira (de quem não temos notícias mais esclarecedoras)”.

Para além de Afonso Cerveira, as testemunhas oculares dos acontecimentos narrados por Zurara foram umas das principais fontes utilizadas pelo cronista. “A noção que tenho, e penso que será consensual, é que Zurara falou com os interlocutores vivos dos acontecimentos e, claramente, privou com o Infante D. Henrique. Mas aquilo que a crónica tem de extraordinário, do ponto de vista dos acontecimentos que são relatados, é, de facto, o detalhe: ele só poderia ter escrito o que escreveu, ouvindo as pessoas”, explica José da Silva Horta.

Gravura do Infante D. Henrique na Crónica dos Feitos da Guiné

“[A Crónica dos Feitos da Guiné] é um texto fundamental, porque é realmente o primeiro texto português sobre a África a sul de Marrocos. É um texto fundador de um discurso, chamemos-lhe assim, antropológico, antes de existir antropologia: um discurso sobre o homem e as sociedades africanas”, conta o investigador da Universidade de Lisboa. Apesar do título da obra, Luís Adão da Fonseca argumenta que é questionável caracterizar a crónica como uma narrativa de conquista. “Trata-se naturalmente de um texto descritivo de expedições militares”, esclarece, “em nenhum capítulo do relato se descreve conquista alguma. É antes uma descrição de explorações marítimas acompanhadas de desembarques corsários”.

Sobre a costa atlântica de África para lá do Cabo Bojador, que representava então o limite do que se conhecia, havia “todas as dúvidas”, diz José da Silva Horta. “Considerava-se tudo como possível: que fosse uma terra habitada por monstros; o mar não era conhecido e, portanto, havia muitas dúvidas sobre a sua natureza e um enorme medo do mar. No fundo, estas viagens vencem esse medo”. O historiador explica ainda que Zurara apresenta um “conceito muito lato” de Guiné: “as terras de Guiné começavam no Cabo Bojador, que era realmente uma espécie de limite do conhecimento das navegações antes de os portugueses terem começado a descer a costa”. 

Mas sendo manifestos do perigo, e fora da esperança da honra nem proveito, cessaram de o fazer. Isto é claro, diziam os mareantes, que depois deste cabo não há gente nem povoação alguma; a terra não é menos areosa que os desertos de Libya , onde não há água, nem árvore, nem erva verde; e o mar é tão baixo, que a uma légua de terra não há de fundo mais que uma braça. As correntes são tamanhas, que navio que lá passe, jamais nunca poderá tornar. E por tanto os nossos antecessores nunca se atreveram de o passar.”

Crónica dos Feitos da Guiné, Capítulo VIII: Porque razão não ousavam os navios passar a além do cabo do Bojador

José da Silva Horta explica que existe, nesta fase, uma ideia difusa de África. “Há uma imagem de um continente essencialmente dividido entre a terra dos mouros, a terra muçulmana, e uma terra cristã, não se sabendo se no intervalo havia ou não povos gentios, ou seja, povos que não eram nem cristãos, nem muçulmanos, nem judeus”. O historiador dá conta de que um dos objetivos políticos das viagens era saber até onde se estendia o domínio dos povos muçulmanos. “No fundo, [queria] saber-se se podiam ser aliados dos mouros de Marrocos, porque o grande projeto do Infante D. Henrique e da dinastia de Avis era, inicialmente, ter o controlo de Marrocos. Mas, sobretudo, [queria] saber-se onde é que começavam os reinos do Preste João e os domínios dos reinos cristãos, que se sabia haver em África, mas não se sabia onde começavam”.

A Crónica dos Feitos da Guiné retrata uma fase bélica da Expansão portuguesa. “É uma fase relativamente curta, mas nem por isso menos traumática. No fundo, a partir de finais dos anos 30 do século XV, mas sobretudo nos anos 40, até 1447, sucessivos navios autorizados pelo Infante” foram enviados para a costa atlântica de África, explica José da Silva Horta. “Naquelas terras além do Cabo Bojador, há sucessivas viagens que são feitas com o objetivo de encontrar o ouro. Mas, na verdade, essas viagens vão também reproduzir as práticas belicistas e escravizadoras que já eram utilizadas nas Ilhas Canárias, antes de se fazerem essas viagens à Guiné. Portanto, faziam-se assaltos, capturavam-se pessoas, pilhavam-se [os territórios] e vendiam-se as pessoas como escravas.”

O primeiro texto racista antinegro?

Em Stamped from the Beginning: The Definitive History of Racista Ideas in America, Ibram X. Kendi considera Gomes Eanes de Zurara como o primeiro articulador de ideias racistas antinegras. “Zurara reduziu as pessoas cativas a bárbaros que necessitavam desesperadamente, não apenas de salvação religiosa, mas civil”, escreve. O autor norte-americano argumenta que o conceito de negritude nasce com a Crónica dos Feitos da Guiné.

“E assim que onde antes viviam em perdição das almas e dos corpos, vinham de todo receber o contrário; das almas, enquanto eram pagãos, sem claridade e sem lume da santa fé; e dos corpos, por viverem assim como bestas, sem alguma ordenança de criaturas razoáveis, ca eles não sabiam que era pão nem vinho, nem cobertura de pano, nem alojamento de casa, e o que pior era, a grande ignorância que em eles havia , pela qual não tinham algum conhecimento de bem, somente viver em sua ociosidade bestial.”

Crónica dos Feitos da Guiné, Capítulo XXVI: Como o Infante Dom Henrique fez Lançarote cavaleiro

“Este assunto não é totalmente consensual”, diz Víctor Barros, investigador do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa (NOVA FCSH). “Antes de Zurara, já circulavam, tanto em Portugal como na Europa, ideias que evocavam de forma depreciativa e preconceituosa os corpos negros, desvalorizando a sua estrutura física, assim como os aspetos somáticos, associando negativamente a cor da pele como sinónimo de imperfeição congénita e de inferioridade natural.” O investigador refere também que as percepções inferiorizantes acerca das populações invadidas pelos exploradores portugueses e europeus, não podem ser desassociadas dos respetivos projetos de expansão imperial. 

O investigador e professor na Ohio State University, nos EUA, Pedro Schacht Pereira, realça que Zurara possuía uma formação intelectual e teológica particular e, por isso, as ideias que norteiam a obra precederam-no, tendo sido construídas ao longo do tempo. “Algumas [ideias] remontam aos textos bíblicos e é neles, no Antigo Testamento, que encontramos sinais de um olhar que podemos considerar como discriminatório. Quando estamos a pensar na história cultural, nunca podemos pensar numa pessoa como sendo a primeira: quando Zurara escreveu a Crónica da Guiné não estava a escrever num vácuo.”

Ainda assim, o professor acredita que Ibram X. Kendi está correto quando considera que a Crónica dos Feitos da Guiné representa um momento importante. “A crónica é escrita num momento particular: quando os portugueses, no resultado de várias navegações ao longo da costa ocidental africana, entram em contacto com povos subsarianos.” 

O docente explica que Zurara se depara com a ausência de “categorias estáveis” para designar as pessoas que os portugueses encontram a partir do rio Senegal. “Até aí [rio], os povos encontrados eram conhecidos dos portugueses: eram muçulmanos e existiam categorias para designar essas pessoas. Do rio Senegal para baixo, essas categorias começam a faltar e começamos a encontrar algumas variações na adoção de terminologia nos textos portugueses dessa época.”

José da Silva Horta sustenta que o cronista sentiu necessidade de traçar diferenças entre os povos da terra dos mouros, localizada a norte do rio Senegal, e os povos que se encontravam a sul. “Zurara vai chamar a uns mouros e a outros guinéus. O termo ‘guinéu’ é um termo de origem berbere (aguinaw) que significa negro, ter cor escura ou cor negra: é uma visão herdada dos contactos com o Magrebe e o conhecimento que lá havia dos povos do sul.” 

No entanto, o diretor do Centro de História da Universidade de Lisboa argumenta que as diferenças e semelhanças traçadas entre os povos estão primordialmente relacionadas com os seus modos de viver. “Nada tem que ver com a cor negra, toda essa descrição é uma descrição que nós chamaríamos ‘civilizacional’ e a que ele chama o ‘modo de viver’”. O historiador reitera que existe em Zurara um quadro de pensamento eurocêntrico sobre os povos extra-europeus. “Todo o discurso ocidental é eurocêntrico e o discurso das fontes europeias sobre os africanos é, de forma geral,  eurocêntrico, [mas] não quer dizer que seja racista”.

Por outro lado, Pedro Schacht Pereira destaca uma passagem da crónica, no capítulo XXV, em que é descrito o desembarque, em Lagos, de pessoas capturadas ao longo da costa ocidental africana. “Inicialmente, as primeiras pessoas que [Zurara] descreve são já conhecidas dos portugueses, são pessoas com tom de pele não necessariamente branco, portanto, pessoas provenientes daquilo que é hoje a Mauritânia, e do norte de África. Mas, entretanto, chegam pessoas que são oriundas da África subsariana e, por isso, com um tom de pele escuro, e a terminologia a que Zurara recorre é muito curiosa”, refere.

[…] posto juntamente naquele campo, era uma maravilhosa coisa de ver, entre eles havia alguns de razoada brancura, formosos e apostos; outros menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como etíopes, tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quase parecia, aos homens que os guardavam, que viam as imagens do hemisfério mais baixo.

Crónica dos Feitos da Guiné, Capítulo XXV: Como o autor aqui reflete um pouco sobre a piedade que há daquelas gentes, e como foi feita a partilha 

O investigador da Ohio State University defende que o excerto estabelece uma associação direta da cor da pele negra a algo negativo. “[Zurara] refere-se a essas pessoas com um tom de pele mais escuro, quase como se tivessem vindo de um hemisfério austral, que tinha, obviamente, conotações de inferno, de acordo com uma visão do mundo teológica”, explica, “a negritude é, naquele momento, naquele texto, associada a algo de negativo”.

José da Silva Horta concorda que é feita uma hierarquização que inferioriza as populações negras. “É [estabelecida] uma escala de estética em que o negro está na base, porque, em geral, o branco é tido como o padrão da beleza [à época].”

A escravização: condição necessária para a “salvação das almas”

Na Crónica dos Feitos da Guiné, Zurara perspetiva a evangelização como uma forma de justificar a escravização das pessoas capturadas ao longo da costa ocidental de África. No capítulo XXVI, o cronista escreve: “E assim que onde antes viviam em perdição das almas e dos corpos, vinham de todo receber o contrário [em Portugal].”

Em Zurara: A Crônica da Guiné e os Primórdios do Racismo Anti-Negro, o historiador brasileiro-italiano, Mário Maestri, escreve que o cronista vê “o pagamento, com o cativeiro do corpo, durante a breve vida terrena, o imposto necessário para a aquisição da libertação da alma, na vida eterna espiritual. Um argumento válido tanto para o berbere islamizado como para o negro-africano pagão.”

O fervor religioso do cronista régio torna-se claro em vários momentos do texto, nomeadamente através da centralidade que o batismo assume para a “salvação” das pessoas capturadas. “Zurara reconhece a existência de alma nessas populações e acaba por dizer que, simplesmente, não estão salvas e, para o serem, têm de ser batizadas, portanto, não é o chegar a Portugal, não é o viver no meio dos portugueses, a condição [para a salvação] é serem batizadas”, explica Roger Lee de Jesus, investigador no Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, e do CHAM – Centro de Humanidades.

Ouço as preces das almas inocentes daquelas bárbaras nações , em número quase infindo, cuja antiga geração desde o começo do mundo nunca viu luz divinal, e pelo teu engenho , pelas tuas despesas infindas, pelos teus grandes trabalhos, são trazidas ao verdadeiro caminho da salvação, as quais lavadas na água do batismo, e ungidas com o santo óleo, soltas desta miserável casa, conhecem quantas trevas jazem sob a semelhança da claridade dos dias de seus antecessores.” 

Crónica dos Feitos da Guiné, Capítulo II: Invocação do autor

Sobre a possibilidade de “salvação das almas”, Zurara traça distinções entre as pessoas capturadas na “terra dos mouros”, que se estende até ao rio Senegal, e as capturadas na “terra dos negros”, localizada a sul do mesmo rio. “Na ocasião que explica a escravidão como necessária à liberdade da alma, [Zurara] propõe que ela era imprescindível para que o cativo – nesse caso negro-africano – se elevasse do estado próximo à barbárie no qual se encontrava empantanado, devido a sua humanidade imperfeita ou parcial. Esse argumento é dirigido essencialmente ao negro-africano”, afirma Mário Maestri. 

No capítulo XVI, o cronista escreve que “estes negros não vinham da linhagem de mouros, mas de gentios, pelo que seriam melhores de trazer ao caminho da salvação”. Para Zurara, os povos mouros (muçulmanos) de Marrocos ou da Península Ibérica estariam mais "endurentados" nas suas crenças do que os gentios ou os mouros negros, as populações a sul.

“Os negros são conotados com a gentilidade, portanto, como são negros, são descendentes de uma linhagem, ou de uma geração, como se dizia na época, dos gentios, dos quais há que esperar a conversão. Este é um ponto muito importante, porque o investimento da expansão portuguesa vai ser feito nos povos negros, naqueles povos que se consideraram, do ponto de vista da missionação, que se podiam converter”, elucida José da Silva Horta. 

“Como são descendentes de gentios, têm outra possibilidade de se salvar e de se converter ao cristianismo, enquanto que os outros mouros são ‘endurentados’ nas suas crenças, [e] nunca poderão ser convertidos. [Zurara] espelha aquilo que é uma perspetiva da dinastia de Avis sobre a questão da conversão dos africanos”, explica.

O reconhecimento da humanidade e a escravização: a “ambivalência” do discurso de Zurara

No capítulo XXV, Zurara descreve a manhã do dia 8 de agosto de 1444, em Lagos, data do primeiro leilão conhecido de pessoas escravizadas em território nacional. O cronista escreve que, “muito cedo pela manhã”, os marinheiros foram buscar os “cativos” aos batéis que tinham chegado da costa africana.

Para colocarem os seus “quinhões em igualeza”, os responsáveis pela “partilha” começaram a separar as pessoas umas das outras. Zurara escreve: “onde convinha de necessidade de se apartarem [separarem] os filhos dos padres [pais], e as mulheres dos maridos e os irmãos uns dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde o a sorte levava!”

 O cronista descreve também como as pessoas resistiam à separação: “Que tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os padres [pais] na outra, levantavam-se rijamente e iam-se para eles; as madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados!”

Para além da organização da “partilha” e do sofrimento das pessoas capturadas, Zurara descreve os portugueses que assistiam ao leilão. “O campo era todo cheio de gente, assim do lugar, como das aldeias e comarcas d’arredor, os quais deixavam naquele dia folgar suas mãos, em que estava a força de seu ganho, somente por ver aquela novidade. E com estas coisas que viam, uns chorando, outros departindo, faziam tamanho alvoroço que punham em torvação os governadores daquela partilha.” 

A reação dos locais ao leilão revela, para Roger Lee de Jesus, que “apesar de a escravatura ser um fenómeno completamente normalizado à época, não deixa de haver essa noção de que é algo bastante controverso e violento”. Víctor Barros reforça também que “considerar que a escravidão e as práticas que lhe estavam associadas era algo aceite por todos ou que não chocava ninguém é um erro interpretativo”. O investigador argumenta que “basta ler o Capítulo XXV da crónica de Zurara para se perceber, a partir das palavras do próprio cronista, que exalta os feitos do Infante D. Henrique, o pranto que era em Lagos o ato público de desagregar famílias vindas de África”.

Por sua vez, Pedro Schacht Pereira afirma que este capítulo é demonstrativo da “ambivalência” de Zurara, visto que, em simultâneo, reconhece a humanidade das pessoas capturadas, mas justifica a sua escravização. “É interessante que, já em meados do século XV, há a consciência de que aquele espetáculo não é digno, e [Zurara] lamenta a sorte daquelas pessoas, mas imediatamente entra em cena o Infante D. Henrique [responsável pelo leilão], que é descrito como uma figura pragmática. Em poucos minutos, ele despacha a ‘partilha’ do que lhe coube de acordo com a lei dos quintos [um quinto das pessoas e produtos da costa da Guiné procedia para o Infante D. Henrique], e foi-se embora contente com o facto de que aquelas pessoas agora vão estar salvas, porque vão ser convertidas à verdadeira fé”, explica.

O Infante era ali em cima de seu poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês como homem que de sua parte queria fazer pouco tesouro, [...] 46 almas aconteceram no seu quinto, muito breve fez deles sua partilha, que toda a sua principal riqueza estava em sua vontade, considerando com grande prazer na salvação daquelas almas que antes eram perdidas

Crónica dos Feitos da Guiné, Capítulo XXV: Como o autor aqui reflete um pouco sobre a piedade que há daquelas gentes, e como foi feita a partilha 

O professor da Ohio State University conta que este episódio é frequentemente descrito como um exemplo de como, naquele momento, “os portugueses acedem à consciência de que a humanidade é algo global, isto é, de que não apenas os europeus são humanos, porque Zurara reconhece a humanidade dessas pessoas”. No entanto, o investigador adverte, mais uma vez, para a ambivalência do discurso: “É verdade que Zurara reconhece a humanidade dessas pessoas, mas, imediatamente, racionaliza aquele espetáculo pouco digno, porque o fim ulterior de tudo aquilo é a conversão daquelas pessoas ao cristianismo.”

Mas qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela campanha? Que uns tinham as caras baixas e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo muito dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos em eles, bradando altamente, como se pedissem socorro ao Padre da Natureza; outros feriam seu rosto com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quais, posto que as palavras da linguagem aos nossos não pudesse ser entendidas, bem correspondia ao grau da sua tristeza.” 

Crónica dos Feitos da Guiné, Capítulo XXV: Como o autor aqui reflete um pouco sobre a piedade que há daquelas gentes, e como foi feita a partilha 

Mesmo que Zurara reconheça humanidade nas pessoas capturadas, Pedro Schacht Pereira considera que a ambivalência instituída no texto não deve ser aceite sem uma crítica do século XXI. “Sabemos que, infelizmente, e sobretudo num país como Portugal, que é um país em profunda negação em relação à sua história colonial, há hoje uma tendência de, seguindo esse negacionismo, de racionalização dessa ambivalência, dizendo de forma perversamente anacrónica, que não podemos ler o passado com os olhos do presente”, explica, “isto é uma falácia tremenda, porque nós só temos os nossos olhos para ler, seja o presente, o passado ou o que pensarmos sobre o futuro”.

Ainda assim, o investigador menciona a necessidade de ter em conta o contexto histórico da obra. “Com certeza que devemos ter esse contexto em conta, sob pena de nem sequer entendermos aquilo que os textos propõem. Mas uma coisa é termos a obrigação de reconstituir, na medida do possível, esse contexto, e outra é usarmos esse contexto como desculpa para a nossa complacência para com essas ideias.”

A circulação, o impacto e a apropriação da Crónica dos Feitos da Guiné

Perceber o alcance das ideias que Zurara deixou escritas implica o estudo da circulação internacional da crónica régia. Aurora Almada e Santos, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, argumenta que para ter uma resposta definitiva sobre o contributo do cronista para a associação da negritude a algo negativo, é necessário responder a várias questões: “Quem leu essa crónica na Europa, por exemplo?”; “Quem é que a reproduziu?”; “As ideias de Zurara foram depois retomadas por quem?”

O historiador Roger Lee de Jesus sustenta que a obra do cronista teve uma “difusão bastante limitada”, pelo que é difícil avaliar o impacto do texto de forma definitiva. “À época, sabemos que, por exemplo, o cronista português, João de Barros, conheceu [a obra] e citou-a. Debate-se, por exemplo, se Damião de Góis a conhecesse, provavelmente não a conheceria, o que revela também que não seria um texto que circulasse tão facilmente nos meios cultos da época”.

Quando Zurara terminou a Crónica dos Feitos da Guiné, a imprensa ainda não havia sido inventada e, no século XV, o texto do cronista circulou apenas sob forma manuscrita. “Não temos assim tantos manuscritos [da obra] que nos dêem a ideia de que teve uma grande difusão”, explica José da Silva Horta. O historiador adverte que nunca se dedicou ao estudo da circulação das crónicas de Zurara, mas presume que a Crónica dos Feitos da Guiné tenha chegado ao papado. “Era o papado que dava aos portugueses as bulas que justificavam a expansão, era a legitimação da coroa que estava em causa”, explica.

No Dicionário da Expansão Portuguesa (1415 - 1600), Luís Adão da Fonseca defende que a crónica de Zurara terá sido “conhecida e utilizada até meados do século XVI”, até “cair no esquecimento”. O texto esteve perdido durante séculos, tendo sido descoberto, em 1837, na Biblioteca Nacional de Paris e utilizado depois como “uma das principais fontes para o estudo das primeiras viagens dos portugueses na costa atlântica de Marrocos”.

A partir do século XIX, a crónica de Zurara começa a ser apropriada em diferentes contextos históricos. “Na segunda metade do século XIX, no período imediatamente anterior e posterior à Conferência de Berlim, [a crónica] é usada como um argumento a favor da ideia da precedência histórica portuguesa”, explica Pedro Schacht Pereira, “[a ideia] de que os portugueses foram os primeiros europeus a chegar àquela região do continente da costa ocidental africana e, como tal, a sua presença e soberania sobre aqueles territórios é justificada”. 

Víctor Barros salienta também que, desde a segunda metade do século XIX, a crónica de Zurara foi usada para “fomentar o nacionalismo imperial português” e a “grandeza da expansão portuguesa”, assim como para celebrar a “suposta bondade da figura do Infante D. Henrique, desvinculando-o da história do tráfico de seres humanos transformados em escravos”. O investigador relembra ainda que, durante o Estado Novo, a crónica foi objeto de várias edições, nomeadamente em contexto de comemorações coloniais e imperiais.

O fim dos “feitos”

Após múltiplas viagens realizadas ao longo da costa subsariana, as populações locais começam a dificultar as capturas feitas pelos portugueses. “Como [as capturas] são sucessivas, [as populações] começam a estar de sobreaviso aos navios portugueses e fogem para o interior, e há cada vez menos possibilidade de captura. Muitas vezes, começam também a resistir e os portugueses começam a ser emboscados”, explica José da Silva Horta, “há uma fuga e uma resistência, e, portanto, o próprio empreendimento, do ponto de vista económico, começa a não dar resultado”.

A dificuldade das capturas faz com que os marinheiros comecem a negociar com as populações locais. “A partir da década de 1440, [os portugueses] começam a comprar as pessoas escravizadas que chegam diretamente à costa, ou seja, arranjam intermediários e o fornecimento de pessoas escravizadas é feito de forma comercial com as populações locais”, explica Roger Lee de Jesus. 

“Do ponto de vista ideológico, isto tem muito menos interesse para Zurara, porque o que ele pretende escrever, num espírito cavaleiresco, são os feitos militares dos portugueses que chegam, combatem e capturam”, esclarece o historiador. “A partir do momento em que há comércio e as coisas são mais ou menos ‘pacíficas’ — aqui sempre com muitas aspas — já não tem grande interesse [para Zurara] e é esse o momento em que a crónica acaba”.

E por nos parecer razoado o volume este que já temos escrito, fizemos aqui fim, como dito he, com intenção de fazermos outro livro que chegue até ao fim dos feitos do Infante, ainda que as coisas seguintes não foram tratadas com tanto trabalho e fortaleza como as passadas, que depois deste ano avante [1448], sempre os feitos daquelas partes se trataram mais por tratos e avenças de mercadaria, que por fortaleza nem trabalho das armas.

Crónica dos Feitos da Guiné, Capítulo LRVI: Como o autor declara quantas almas foram trazidas a este reino depois do começo desta conquista

O ano de 1453 é assinalado por Zurara como a data em que a escrita da Crónica dos Feitos da Guiné é concluída, apesar de ter acrescentado passagens, em 1460. Ainda que considere contestável que, através da obra, o cronista tenha sido o primeiro articulador de ideias racistas antinegras, Pedro Schacht Pereira reforça a necessidade de ser crítico do discurso que o português construiu. “Se a desumanização dessas pessoas [capturadas] é consciente ou inconsciente, para mim essa pergunta não é a mais importante. Ela pode ter sido feita de forma inconsciente, mas isso não desculpa o olhar crítico que possamos ter hoje sobre a forma como ela é racionalizada”, atesta o investigador.

Para Víctor Barros, há “ideias racistas que ainda persistem como herança desse período de Zurara e que não são combatidas pelo Estado e por outras instituições oficiais”. O investigador do Instituto de História Contemporânea da NOVA FCSH defende que “sem uma verdadeira educação antirracista nas escolas, nas ruas e em todas as instituições oficiais, a sociedade vai continuar a reproduzir, direta e indiretamente, os mesmos mecanismos de perpetuação do racismo ordinário, institucional e estrutural. Dito de outro modo: sem uma verdadeira educação antirracista, vamos continuar a reproduzir racistas e ideias racistas e, logo, uma sociedade estruturalmente racista”.

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