Lá do céu o azul foi transformado neblina laranja.
Laranja talvez não, fogo, fogo-chão, ferrugem,
maravilha que os meus olhos europeus não sabem reconhecer.
Assustei-me na minha ignorância - a partir dali tudo seria susto de não saber
O deserto da Argélia a afundar-me os olhos
E Accra a fazer-se maior com os seus telhados a gritar de cor:
olha Sara, isto é o verde, o azul vivo, o vermelho tinto, a terra.
Tudo como que cegueira reversa
Aterrar em São Tomé e sentir os músculos da cara a sorrir sozinhos!
um espanto imenso de quem finalmente enxerga
sair do avião e entender na carne o calor molhado a receber-nos
C. ao meu lado em tanta surpresa quanto eu
preenchendo papéis, sendo olhada,
E a cada olhar uma fotografia, um filme
Coisa de turista visitante
Estando em tudo de fora e nunca de dentro
O privilégio, palavra a aprender, de chegar com malas de viagem
com bilhete de avião, com passaporte, iPhone, óculo escuro
Estar e não acreditar que se está porque se pode sempre não permanecer
escolher em que realidade acreditar
Lá fora, de noite, no restaurante do pequeno hotel à beira-mar
perceber finalmente a temperatura do ar, criada de propósito para a nossa felicidade
Vontade de não ir dormir e só beber vinho tinto fresco
conversar sem fim, ficar só existindo.
Abacate, omelete generosa, banana, suco fresco pela manhã
“Já alguma vez tinhas cá estado?
Dizem mal de São Tomé mas não é assim
É pobre, claro. É África!”
Cães ao abandono, cães encostando-se uns aos outros, magros, mutilados
debaixo dos carros, entre as casas, comendo das lixeiras a céu aberto
Maltratados, malnutridos, morrendo de calor, de falta de amor
uivam de dor a meio da noite, uivam de dor a meio do dia
e os brancos nas piscinas dos hotéis, as crianças espreitando os brancos nas piscinas dos hotéis
Os cães batidos, empurrados, escorraçados, pisados no escuro
e os brancos a fazer monólogos, perguntando aos pretos
se os podem chamar de pretos, de negros, de blacks.
Os cães raivosos de pavor, de fome, de casa, de sítio no mundo
e os humanos cantando karaoke, fazendo piada
bebendo cerveja sem rótulo e caipirinha de maracujá
daquela que dá diarreia de três dias
E os cães cagando, chafurdando no passeio, olhando-nos à espera
Comemos cacau, bebemos café, fumamos cigarros de enrolar
vemos filmes na Netflix com o wi-fi do hotel
os galos cantam quando escurece e quando é tarde e antes, de novo, de ser manhã
Amanhã virá o Sol queimar tudo
O corpo sem acreditar que acordou aqui de novo
Os brancos nas piscinas dos hotéis com as crianças negras saindo das escolas
Espreitando pelas grades
Pepsi, banana frita, peixe, mar
O tempo estendendo a pele devagar, estendendo a cabeça por dentro
O calor agora já não tão paraíso, calor para lembrar de não esquecer
cada imagem de loucura, de abandono, de não-pertença.
Fosse noite mais dias seguidos - os brancos quietos no escuro sagrado
só olhos e ouvidos, só respiração e suor.
Misto de lixo queimado com borracha, tubo de escape, merda quente.
Ela tem nojo de quase tudo aqui
C. chama-a de florzinha desde que a viu desinfectar as mãos a meio de uma saída à noite
A verdade é que ela já sonha com estas ruas - sempre tudo nas ruas, a descoberto, aqui.
Os medicamentos vendidos na praça, estendidos ao sol todo o dia
As roupas lavadas à mão, espalhadas no alcatrão a secar todo o dia
Uma roda imunda de carro passando rente a uma saia leve
Um velório debaixo de uma chapa improvisada - só uma fotografia numa pequeníssima moldura, e nós sempre na estrada, olhando tudo
Tudo olhando de frente de volta para nós - quem és tu. que me queres. que me trazes.
Ela evitando os buracos no passeio, evitando pisar os cães aninhados no escuro, por todo o lado,
evitando o vómito do cheiro a merda, a gasóleo, tudo secando ao sol todo o dia.
Ela evitando beber vinho, evitando beber cerveja, evitando as caipirinhas
Ela olhando pelo canto do olho um gato esperneando até morrer, atropelado
E tanto que demorou aquela morte
H. pôs-lhe a mão no ombro enquanto ela murmurava “que horror” e tapava os olhos.
H. disse-lhe “he's gone”, ainda que pudesse estar a mentir.
Ela tenta achar o bonito bonito mas ela tem nojo de quase tudo aqui.
E não consegue esquecer o asco de si mesma também
A que vive protegida, enriquecida no seu apartamento de cidade
Ela põe o seu lixo nos contentores de Lisboa e ele aparece aqui à sua frente, descarnado
Ela empurra para o vácuo os seus dejectos em Lisboa e cheira-os aqui, brilhantíssimos, ao lado dos seus ténis brancos
Ela desperdiça lá os ossos que furam aqui as barrigas dos vira-latas
Ela aluga apartamento, compra roupa que acaba por dar, tem dois carros na garagem, chora quando está cansada e diz que quer viajar mais
São Tomé ri-se de boca escancarada, os dentes reluzindo
São Tomé vai à Igreja aos domingos rezar por ela, dar o dízimo, fazer concentrações em torno da cruz, vestir a sua melhor roupa só para ela
A doçura, malgré tout, ela vê,
a felicidade simples
O riso entre amigos acabados de o ser
A areia colada à pele também feliz
A bola azul forte lançada ao ar
C., M., G. e M.C. no mar conversando sem fim
Disparatando de alegria
H. todo vestido, recuado, olhando o horizonte
Todos crianças outra vez, que bom
Longe de casa, longe também da pressão estúpida dos dias
Personagens estendendo a ficção o mais que possível
Seis actores passeando-se numa ilha
Dava um filme
Abril, 2022
São Tomé
-Sobre Sara Carinhas-
Nasceu em Lisboa, em 1987. Estuda com a Professora Polina Klimovitskaya, desde 2009, entre Lisboa, Nova Iorque e Paris. É licenciada em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreando-se como actriz em 2003 trabalhou em Teatro com Adriano Luz, Ana Tamen, Beatriz Batarda, Cristina Carvalhal, Fernanda Lapa, Isabel Medina, João Mota, Luís Castro, Marco Martins, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Nuno Carinhas, Olga Roriz, Ricardo Aibéo, e Ricardo Pais. Em 2015 é premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores de melhor actriz de teatro, recebe a Menção Honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de teatro e o Globo de Ouro de melhor actriz pela sua interpretação em A farsa de Luís Castro (2015). Em cinema trabalhou com os realizados Alberto Seixas Santos, Manoel de Oliveira, Pedro Marques, Rui Simões, Tiago Guedes e Frederico Serra, Valeria Sarmiento, Manuel Mozos, Patrícia Sequeira, João Mário Grilo, entre outros. Foi responsável pela dramaturgia, direcção de casting e direcção de actores do filme Snu de Patrícia Sequeira. Foi distinguida com o prémio Jovem Talento L’Oreal Paris, do Estoril Film Festival, pela sua interpretação no filme Coisa Ruim (2008). Em televisão participou em séries como Mulheres Assim, Madre Paula e 3 Mulheres, tendo sido directora de actores, junto com Cristina Carvalhal, de Terapia, realizada por Patrícia Sequeira. Como encenadora destaca “As Ondas” (2013) a partir da obra homónima de Virginia Woolf, autora a que regressa em “Orlando” (2015), uma co-criação com Victor Hugo Pontes. Em 2019 estreia “Limbo” com sua encenação, espectáculo ainda em digressão pelo país, tendo sido recentemente apresentado em Londres. Assina pela segunda vez o “Ciclo de Leituras Encenadas” no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal.