Ao escrever uma lista de coisas vistas pelos europeus como bizarrias estadunidenses, seremos certamente tentados a incluir o negacionismo de uma boa parte da população do país em relação às alterações climáticas e, de modo ainda mais abrangente, negacionismo em relação ao impacto das atividades humanas no meio natural em que se situa. Apesar de tudo, pensaremos enquanto escrevemos essa lista, nós, os europeus, acreditamos na ciência e no que ela nos diz; acreditamos que, em maior ou menor escala, os governos podem agir de modo a tentar consertar os impactos da ação humana. De caneta na mão e num acesso de otimismo, poderíamos ainda acrescentar com uma ponta de orgulho que há na maioria dos países europeus, apesar de grandes clivagens noutros temas, um certo acordo em relação ao ponto de partida – i.e. temos um problema ao qual é preciso dar resposta – permitindo assim uma discussão sobre as diferentes propostas de resposta a esse problema.
Terá, portanto, sido sem grande surpresa que vimos uma Comissão Europeia presidida por uma política alemã de direita a apresentar um plano a que chamou “Pacto Verde Europeu”, onde se contemplam propostas numa ampla gama de setores, dos transportes à agricultura, de modo a tornar o continente europeu o “primeiro neutro climaticamente”. (Certo, para um ecologista como eu, este Pacto está não apenas longe daquilo que poderia ser, como também longe de dar respostas à altura dos desafios que enfrentamos, mas deixemos essa discussão para um outro texto.) Ora, as notícias dos últimos dias não são as melhores para quem acredita que o centro-direita europeu aceita o diagnóstico sobre o estado do continente e do planeta e que está disposto a pelo menos não bloquear as necessárias respostas.
Foi há uns dias que o comitê AGRI do Parlamento Europeu, onde se discutem os temas relacionados com a agricultura e o desenvolvimento rural, votou pela rejeição da proposta da Comissão Europeia de uma lei para a Recuperação da Natureza. Esta proposta de lei emana do Pacto Verde Europeu e pretende, através de políticas de renaturalização e de restauro dos ecossistemas, promover o aumento da biodiversidade, ajudar à captura de carbono da atmosfera, bem como a promoção da resiliência e autonomia estratégica, prevenindo desastres naturais e reduzindo os riscos associados à segurança alimentar. E não só no Parlamento Europeu se ouviram vozes contra esta proposta da Comissão: também o primeiro-ministro belga, liberal, declarou a sua oposição a uma série de propostas que serviriam para proteger a saúde humana e o planeta, alegando o custo acrescido sobre as empresas. Também em Espanha, e apesar da seca que assola o Sul do país, o centro-direita alia-se à extrema direita para legalizar a utilização de água em locais do Parque de Doñana onde os aquíferos já estão em níveis historicamente baixos.
A liderar a oposição a esta proposta para a Recuperação da Natureza está o Partido Popular Europeu que arrasta consigo os grupos de extrema-direita, no que pode até vir a servir de antecâmara para futuros acordos ou coligações. As razões apresentadas pelo grupo de centro-direita para se oporem a este pacote de medidas é o impacto que terá sobre o setor agrícola. A esta decisão não será alheio o resultado obtido nas eleições regionais dos Países Baixos do passado mês de março e onde o BBB (“Movimento Agricultor-Cidadão”) conseguiu ficar em primeiro lugar com uma campanha alicerçada na oposição à regulamentação ambiental, em particular no que diz respeito aos limites para as emissões de azoto. Depois de anos de políticas de concentração das explorações agrícolas e de destruição da agricultura familiar, os decisores políticos estão agora confrontados com o monstro que criaram. Não será portanto de estranhar um extremar de posições ao longo do próximo ano, tendo em vista as eleições europeias, com as políticas ecológicas e agrícolas a saltar para o centro do debate.
Olhando novamente para a nossa lista, se é verdade que ainda não podemos falar negacionismo climático por parte da direita europeia, é igualmente claro que podemos falar de “atrasismo”, ou seja, uma política assente no atrasar das necessárias medidas de defesa do planeta e da saúde humana. Se riscarmos da nossa lista as políticas da direita em relação ao ambiente, não risquemos as alternativas. Até porque, como não poderia deixar de ser, elas existem e merecem ser apoiadas. Provando a clivagem existente em relação ao tema do crescimento económico, uns dias antes da já referida votação no comitê AGRI, tinha lugar no Parlamento Europeu uma conferência intitulada “Para lá do Crescimento”. Durante três dias, dezenas de especialistas de várias origens académicas e geográficas deram conta do atual estado do planeta e da economia e, para além disso, propuseram uma visão radicalmente diferente daquilo que pode ser o nosso futuro comum.
Já em 1974, num artigo que tinha como título o mesmo que utilizo para esta crónica, o pensador da ecologia política André Gorz, cujo centenário de nascimento se assinala neste ano de 2023, deixava as perguntas:
“É por isso que temos de colocar desde já a questão: o que é que queremos? Queremos um capitalismo que se acomode aos constrangimentos ecológicos, ou queremos uma revolução económica, social e cultural que elimine os constrangimentos do capitalismo e estabeleça assim uma nova relação entre as pessoas e a sociedade, o seu ambiente e a natureza?”
A um ano das eleições europeias é essencial que comecemos então a pensar nas respostas a estas perguntas e no futuro queremos. Queremos a ecologia deles ou a nossa?
-Sobre Jorge Pinto-
Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.