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A “expansão marítima portuguesa” compreendida por Olívio Jekupê: “o maior azar que nós tivemos”

Neste mês em que se comemora o Dia Internacional dos Povos Indígenas (9 de agosto), o Gerador publica uma conversa com o escritor Olívio Jekupê sobre a colonização portuguesa numa perspetiva da história do povo Guarani: quais as terminologias adotadas, os conceitos desenvolvidos e as palavras escolhidas. A reflexão do escritor participa do repensar das diferentes práticas educativas que envolvem a história escolar.

Texto de Redação

Fotografia da cortesia de Olívio Jekupê

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Olívio Jekupê é um escritor guarani de 57 anos, da aldeia Kakane Porã, localizada no estado brasileiro do Paraná. Com 26 livros publicados de literatura nativa, como ele define, contribui ativamente para fazer conhecer, dentro e fora do Brasil, a versão dos povos originários sobre diferentes temas, como o chamado de “expansão marítima portuguesa”. Segundo Olívio, a escrita é uma ferramenta nessa “guerra de narrativas”, instrumento de luta pela preservação da memória dos povos indígenas. Ex-professor do Ensino Fundamental no Brasil (Ensino Básico em Portugal), pai de cinco filhos - incluindo o rapper @owera.oficial e o @dj.tupan - Olívio realiza uma reflexão histórica sob a perspectiva do seu povo. O escritor contesta a abordagem corrente sobre a chegada dos portugueses ao Brasil, ainda descrita como Descobrimento em alguns manuais escolares. Aos 18 anos, quando começou a escrever, acreditava que “poderíamos mudar muita coisa no Brasil”. O momento era de reorganização dos movimentos sociais no período de transição democrática que antecedeu a Constituição Brasileira de 1988. Para Olívio, era preciso contar a História “verdadeira” nos livros didáticos: “sofremos muitos preconceitos por causa das histórias contadas que falam ao contrário”. Este projeto, iniciado há quase quatro décadas, inclui atualmente a Jekupê Editora, que conta com apoio dos leitores para editar novos títulos.

Para compreender uma outra perspectiva histórico-educativa, ouvimos Olívio e sua lógica que se afirma como diferente da eurocêntrica (a que perpetua a versão dos colonizadores europeus).

Numa entrevista feita por áudio, perguntamos a ele como, na narrativa do povo Guarani, é discutida a relação com os portugueses colonizadores. Queríamos saber, por exemplo, quais as terminologias adotadas, os conceitos desenvolvidos e as palavras escolhidas para contar essa História. Olívio Jekupê nos respondeu a partir da sua trajetória, que se fez em coletivo. Optamos por manter o registro oral das suas respostas:

“Comecei a escrever em 1984, era garoto. Comecei a escrever porque eu acreditava que nós, indígenas, temos que escrever História, Literatura, para que a gente possa mostrar a verdadeira História no Brasil. Eu era pequeno e ficava assustado de ver tanto problema que acontece no Brasil. Porque, na verdade, a chegada dos portugueses, para nós, foi o maior azar que nós tivemos e temos até o dia de hoje. Porque fomos enganados, porque nossos parentes naquela época estavam sendo enganados.

Entre nós indígenas, no Brasil, a gente não tem costume de falar colonização, os colonizadores. Na verdade, aqui, a gente tem o costume de falar “os invasores”, porque eles não colonizaram o Brasil, eles invadiram. Por isso a gente usa muito esse termo. Já na palavra Guarani - porque no Brasil são várias as línguas indígenas - nós temos o costume de chamar o invasor de Juruá. Quando nossos parentes viram os portugueses, naquela época, quando chegaram aqui, a gente viu pela primeira vez homens com barba. Naquela época, para o indígena não existia barba, não tinha cabelo no sovaco, nem cabelo nas pernas, tanto o homem, quanto a mulher. “Juru” quer dizer boca e “a” quer dizer cabelo: o homem que tem cabelo na boca”.

Olívio destaca o Direito ao Território como uma das mais trágicas consequências da chegada dos portugueses, que os povos indígenas ainda cotidianamente enfrentam. Tantos séculos de colonização deixaram um lastro de desfavorecimento e vácuo de direitos, como na luta pela titulação dos territórios como Terra Indígena, um processo demorado e difícil, que expõe essas populações a ataques e problemas de várias ordens (o mais recente é a tese do Marco Temporal, que está em votação simultaneamente no Judiciário e no Legislativo brasileiro).

“A gente tem que passar a vida lutando para não perder o pedacinho de terra que tem, para que o governo assine uma demarcação de terra indígena, para que o “índio” tenha garantia e direito de viver no local onde ele sobrevive. Muitas aldeias no Brasil não são demarcadas. A sociedade luta contra a gente porque acha que “o índio é vagabundo”, que “o índio não vai fazer nada com essa terra”. Então, para nós, a chegada dos portugueses foi uma das maiores tristezas…”.

Tantos séculos de colonização repercutiram em deslocamentos forçados para essas populações. A delimitação de territórios indígenas foi introduzida como uma garantia mínima de direitos. Nesse processo de expulsão e violência tributário da colonização, foram criadas fronteiras artificiais que ignoraram os grupos que ali viviam e suas migrações sazonais.  

“Nós, Guarani, estamos localizados no Brasil - entre Sul e Sudeste -, Paraguai, Bolívia e Argentina. Nós somos um povo que vive há séculos nessas regiões. Os guaranis andaram muito por várias regiões. Inclusive na região do Paraguai, onde houve um grande massacre. Temos problemas, por exemplo, porque há guaranis no Brasil e no Paraguai. Aí há pessoas que dizem: “ah, mas vocês não são do Brasil, são do Paraguai”. Mas, para nós indígenas, não existe fronteira, somos guaranis em qualquer região onde estamos. Os invasores pegam a região da Bolívia, pegam a região do Paraguai, pegam a região da Argentina e cria-se o Brasil. Dividem as fronteiras, criam-se países. Mas o Guarani estava espalhado por várias regiões. Então, não somos dos países, somos desse território. Por isso que às vezes há problemas. As pessoas dizem: ah, mas é da Argentina. Não, para nós, guaranis na Argentina, Bolívia e Paraguai, Brasil, somos um povo só. Mas, por causa dessas invasões, que criam países, nós somos separados. [Criam as invasões] para dizer que somos de um país e nós outros de outro. Mas tudo bem, a gente tem que saber sobreviver no meio dessas coisas de países”.

A História Guarani não se apresenta de forma linear, como uma sucessão de eventos com marcos cronológicos. Quando questionado sobre a narrativa dos episódios dessa História, o escritor chama atenção para a atualização das formas de luta e resistência:

“De 1990 para cá, começaram a surgir indígenas escritores, fazendo universidade. As coisas começaram a mudar e estamos lutando muito. Existem muitas formas de luta. Eu comecei a escrever acreditando nessa Literatura. Porque, com a Literatura, podemos lutar contra essa opressão que existe desde 1500. A Literatura tem esse grande valor para nós. Hoje, no Brasil, surgiram indígenas cantando rap como uma forma de defesa também. Há um cantor guarani que canta rap tanto em português quanto em guarani. Ficou famoso na abertura da Copa do Mundo [de futebol] quando ia soltar uma pomba branca e saiu com uma faixa pedindo demarcação” [refere a seu filho Werá Jeguaka Mirim, com o nome artístico de Owerá].

Onde estão os indígenas na História Escolar? Olívio reflete sobre um longo percurso de escravização e violência, incluindo a violência sexual, que marcaram o modo como compreende a formação do povo brasileiro: “São séculos que se passaram e, com a chegada dos portugueses aqui, há algo que os livros de História não mostram. Antes da chegada dos povos negros no Brasil, os indígenas foram escravizados pelos portugueses. Dominavam o território, escravizavam indígenas, foram matando e alguns pegavam mulheres, homens, que levavam para as pequenas vilas. O povo brasileiro surge com isso”.

Para ele, após mais de 500 anos da invasão colonial, a retratação se faz no apoio às demandas e lutas dos povos indígenas brasileiros: “Portugal tem uma dívida conosco. E não é criticar, mas os portugueses têm que apoiar a nossa luta. Cobrar do governo brasileiro para que haja demarcação nas terras indígenas. Se o brasileiro está aqui hoje, se deve a essa invasão. Então, pelo menos que a gente seja respeitado. A gente quer apenas demarcação das terras indígenas, para que haja saúde, respeito às nossas religiões e nossos costumes, sempre. Porque nós não invadimos território nenhum. Estamos aqui antes da invasão”. Para Olívio, “as pessoas têm que conhecer o indígena através da visão dele mesmo”.

Texto de Gisella Amorim Serrano e Débora Dias

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