A ideia de mérito está presente nas nossas vidas desde muito cedo. A angústia da resposta à velha questão “Já sabes o que vais ser quando fores grande?” vem, essencialmente, do início da nossa consciencialização sobre o que representa o mérito.
Por um lado, para conseguirmos ter solução para essa pergunta, recorre-se a essa abstração que é a vocação “vê-se que tem muito jeito para isto, desde pequeno que se nota que nasceu para aquilo”. Por outro, acode-se a essa lógica que é a habilidade “tem boas notas a isto, é melhor que os outros naquilo”.
O mérito parece vir desta mescla entre talento e competência. A partir daqui o destino anuncia-se como traçado: se fores mau nestas duas variáveis, preocupa-te seriamente, se fores bom em pelo menos uma delas, talvez te safes, se fores um exemplo nas duas, o sucesso está ao virar da esquina.
E assim, em cima destas leis não escritas, estruturamos a nossa sociedade. Assumimos que todos partimos, no início, da mesma base, todos temos iguais condições, todos dependemos, apenas, de demonstrar se temos um talento nato e se nos esforçamos para sermos competentes.
Na escola, enquanto estudantes, temos a inocente e doce ilusão na qual dispomos das mesmas ferramentas para poder desenvolver as nossas capacidades. Nas universidades, aos poucos que as alcançam, contam-nos a história que basta chegar ao fim para iniciarmos a nossa vida independente. No trabalho, dizem-nos que há semelhantes oportunidades para toda a gente, que depende apenas da nossa aptidão para acedermos à desejada promoção.
Só que os conceitos de talento e competência são subjetivos e fantasiosos. Eles só funcionariam se tivéssemos a capacidade de nos compararmos literalmente entre todos, o que é impossível. Mesmo se tal comparação fosse concretizável, teríamos de alargar a avaliação a outros fatores que tendemos a pôr de parte. Fundamentalmente um, o contexto.
Nesta viagem que determina as nossas possibilidades de futuro esquecemo-nos, sempre, de dar valor ao contexto. Qual é a importância do local onde nascemos e somos criados? Qual a relevância da história educacional dos nossos familiares? Como é a nossa rede de amigos e contactos?
A desigualdade é o grande factor, praticamente o único, tal a sua magnitude, que verdadeiramente sentencia o nosso fado. Se eu nascer numa zona pobre e rural tenho menos probabilidade de sucesso do que quem nasça numa zona urbana e rica. Se a minha família só tiver o ensino básico, provavelmente não terei tanta sorte como quem tenha familiares com um histórico de ensino superior. Se a minha rede de contactos não ocupar lugares de decisão, então dificilmente terei acesso a um bom emprego.
O mérito não depende da vocação e habilidade. Depende, sobretudo, do acesso a dinheiro e poder.
Quer isto dizer que o percurso das nossas vidas está decretado no momento em que nascemos? Não, claro. É possível partir de um lugar sem privilégio e chegar ao topo, mas é extraordinariamente improvável. Essa lucidez da dificuldade devia mandatar-nos para mudarmos as regras. Prestar maior atenção ao contexto e desvalorizar a benevolência do mérito.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Tiago Sigorelho-
Tiago Sigorelho é um inventor de ideias. Formado em comunicação empresarial, esteve muito ligado à gestão de marcas, tanto na Vodafone, onde começou a trabalhar aos 22 anos, como na PT, onde chegou a Diretor de Estratégia de Marca, com responsabilidades nas marcas nacionais e internacionais e nos estudos de mercado do grupo. Despediu-se em 2013 para criar o Gerador.
É fundador do Gerador e presidente da direção desde a sua criação. Nos últimos anos tem dedicado uma parte importante do seu tempo ao estreitamento das ligações entre cultura e educação, bem como ao desenvolvimento de sistemas de recolha de informação sistemática sobre cultura que permitam apoiar os artistas, agentes culturais e decisores políticos e empresariais.