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A febre do reencontro após a clausura

Por motivos profissionais, e também familiares, vejo-me obrigada a ter de viajar para fora de Portugal, ou seja, passar por todo o cada vez mais complexo conjunto de acções que digam a quem me recebe que estou apta, sem qualquer motivo de preocupação, sem febre ou outros sintomas relacionados com a pandemia.

Falo, concretamente, para deslocações dentro da Europa. Mas o que vejo nesta Europa, ou pelo menos nas suas fronteiras, e após todo o cuidado e trabalho em obter e assinar documentos, são duas classes distintas de pessoas como, ao longo destes quase três anos, têm permanecido fiéis aos seus princípios: as que usam máscara por todas as razões e mais algumas e as que a não usam por todas as outras razões e mais algumas.

Só que ao passar pelas “fronteiras” em que se pode levar tudo excepto líquidos acima dos 100ml, o que vejo é uma cacofonia de pessoas provenientes de todo o mundo que convivem, como qualquer manada, entaladas (ou enlatadas, se preferirem) no meio de pessoas com ou sem máscara. E se isto me faz pensar em como as pessoas de um lado e do outro lado da trincheira se sentem, pensei em começar este breve estudo por mim mesma.

Sou das que não prevaricam. Usei a máscara sempre que a impuseram, tomei as vacinas, tive cuidados redobrados ao lavar as mãos sei lá quantas vezes ao dia, colocar um gel quase em papa ou extremamente líquido a cada entrada de estabelecimento, mesmo se o anterior fosse ao lado, e assisti a discussões violentas entre as facções do contra e a favor da máscara, como se a terra ainda fosse plana para alguns.

As conclusões são fáceis de retirar no final deste prolongado confinamento por fases: quem perdeu alguém é e está diferente de quem não perdeu. Canta-se vitória a cada activo sem problemas como se contam os amigos e familiares que se foram porque padeciam de outras mazelas e que facilitaram a vida à estirpe. Ou seja, a tal conclusão fácil é que ninguém se entende e poucos têm resposta.

Ao terceiro ano, continuamos dependentes de folhetos, formulários e deveres. Direitos, temos poucos, mas ainda nos podemos defender. E é isto que assusta a liberdade de muitos. Mas, e a verdade dói, só somos livres até um qualquer homem com muito poder declarar guerra ao vizinho.

Chego então ao título desta mensagem: a febre, tresloucada em alguns lugares ou acontecimentos, do reencontro. Da saudade do abraço. De sorrir para outro sorriso. De brindar à vida que ficou pausada entre máscaras e picas. Do 80 regressámos ao oito, com a urgência da vida, pois há que celebrar enquanto cá estamos, ao medo de quem o faz, pois há que repensar como nos damos fisicamente.

Isto vem a propósito tanto dos limites impostos nos aeroportos — como aguentar um voo de horas com máscara xpto — mas chegar a Lisboa e ser empurrado para uma camioneta de carga que deveria levar 1/5 das pessoas do total que abriga até chegar ao terminal.

Ou dos Rocks in Rios deste mundo em que se faz alarde porque se reuniram 70 mil almas num único vale quando a sexta vaga covid está em pleno fulgor. E sim, todos os dias morrem pessoas. E sim, todos os dias temos milhares de casos positivos. Dezenas de milhar.

E dei por mim, no meio de tanta viagem profissional em que só uma foi pessoal, a pensar nas razões que me levam a enfrentar este risco. Porque arrumo o racional na gaveta e parto sem olhar a medos? O que me leva a ser tão diferente do que fui?

E cheguei a uma simples conclusão: mudei.

Mudei de hábitos sem perceber. Tornei-me mais urgente porque me percebi mortal. Não vou deixar para amanhã o que deveria ter feito há dois anos. Não posso deixar, nem que o mundo acabe, de beijar quem amo e que vive a um dia de distância porque não tenho voo directo da minha para essa terra.

Mas também mudei porque tenho mais medos. Durmo mais ou menos. Sei que quando aqui faz sol, noutro lado qualquer a sombra não deixa entrar um raio de luz. E, por muito que tente compreender, não consigo, sem estas excepções, de negar dois anos nefastos para todos nós e correr sem medo para abraçar quem sempre me abraçou.

Talvez seja respeito. Talvez seja medo. Talvez seja o tal novo normal, algo que já se esqueceu em tão pouco tempo.

Fiz algum sentido? Pois nem isso já sei. Só apenas que mudei.

*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico

-Sobre Ana Pinto Coelho-

É a directora e curadora do Festival Mental – Cinema, Artes e Informação, também conselheira e terapeuta em dependências químicas e comportamentais com diploma da Universidade de Oxford nessa área. Anteriormente, a sua vida foi dedicada à comunicação, assessoria de imprensa, e criação de vários projectos na área cultural e empresarial. Começou a trabalhar muito cedo enquanto estudava ao mesmo tempo, licenciou-se em Marketing e Publicidade no IADE após deixar o curso de Direito que frequentou durante dois anos. Foi autora e coordenadora de uma série infanto-juvenil para televisão. É editora de livros e pesquisadora.  Aposta em ajudar os seus pacientes e famílias num consultório em Lisboa, local a que chama Safe Place.

Texto de Ana Pinto Coelho
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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