Em 19 janeiro 1978 sai da linha de produção o último Volkswagen “carocha” da fábrica situada em Emden, na Alemanha. Desde 1933 foram produzidos cerca de 21 milhões e meio destes carros, record absoluto de veículos com a mesma plataforma.
Aqui em Portugal, nos tempos da minha infância e adolescência, a pobreza do país implicava que estas viaturas – na maior parte da Europa consideradas mesmo à letra o “carro do povo” – fossem mais elitistas e compradas pelos estratos mais altos da dita classe média. Que era pequena. Pequenina mesmo…
Nesta altura em que o frio se faz notar em todo o retângulo, recordo um episódio passado nesses tempos difíceis com um “carocha”, igualmente num inverno muito frio, e na terra dele, no sopé da Serra da Estrela.
Longe de mim – quando isto se passou – pensar que dentro de 4 anos iria casar ali perto.
Teria 21 anos, estávamos em 1976 (mais ou menos) e o meu pai tinha trocado o velho FIAT 124 que tinha servido a família longos anos, por um “carocha”, uma das consequências da melhoria de vida que o 25 de Abril nos veio dar.
Para fazer a rodagem tinha-se esperado pela Páscoa e combinado uma visita a Gouveia. E como se levavam cinco horas e meia para lá chegar, eu guiava parte do trajeto, com o “velho” ao lado a bramar com receio pelo carro novinho em folha.
Estávamos na altura em que o nosso “primo” Albertino Moreira tinha já regressado da tropa e tomava conta da taberna (antes mercearia) da família, em Folgosinho. E essa era uma das moradas que se levava na cabeça para visitar.
Entre a história verdadeira dessa casa notável – hoje um restaurante muito grande que continua a servir bem, conseguindo dar boa qualidade e comida caseira a muitas e desvairadas gentes – está o facto das autoridades que lá iam comer nos anos setenta do século passado terem de repente sabido que o dono da casa não tinha “papéis” oficiais para servir o público.
E foram eles próprios, com medo de perderem a mesa grada de todos os dias, que trataram de tudo nas Finanças (onde trabalhavam, segundo diz a lenda).
Era o Portugal velho, que muito de mau teria, mas também coisas engraçadas.
Retomando a história, chegados a Folgosinho lá demos com a Taberna do Senhor Albertino. Era Sexta-Feira Santa e obviamente que pedimos peixe. O que havia era bacalhau, como seria de esperar na serra.
A taberna em questão era já famosa pelos petiscos e pela fartura da mesa. De tal forma que notícias da coisa tinham chegado aos ouvidos do meu pai, então a trabalhar no Ministério das Obras Públicas e que vinha recomendado por um dos construtores civis com quem lidava na divisão de alvarás e que era da zona.
Normalmente o Sr. Albertino teria enchido a mesa de “enchidos” caseiros, à laia de aperitivos. Mas era a Semana Santa… por sorte, estávamos ainda na época dos míscaros, o que permitiu que o cozinheiro (era o dono mesmo) preparasse um bom prato deles salteados em azeite.
Mas na sua opinião aquilo não chegava, ainda por cima para uns senhores de Lisboa que vinham de Volkswagen e recomendados por um “notável” ali de Gouveia.
Espantados ficámos quando irrompe o proprietário pela sala com larga travessa de morcela torrada, farinheira e chouriço de carne igualmente grelhados.
Chegado à nossa mesa coloca um pano de cozinha aos ombros à laia de estola e faz menção de benzer a travessa com as palavras “eu te batizo sardinha”!
Meu pai, agradado pela ideia e já salivando, ainda perguntou para disfarçar se era sardinha assada ou frita. Contente com a resposta, atirou-se ele (e eu) à “sardinha assada”, perante o olhar fulminante de minha mãe.
Depois lá veio o bacalhau, esse sim, sem precisar de batismo.
Bons tempos.
-Sobre Manuel Luar-
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.