Ser-se moderado nos dias que correm é uma missão quase impossível. Desde logo, porque, como já aqui escrevi, o conceito de moderação não tem parado de encolher. Conscientemente, tem-se promovido uma cada vez mais limitada definição do que é a moderação e do que é ser-se moderado. O resultado é o de caracterizar todos os que fujam desta definição como extremistas, radicais ou contrários à boa prática democrática que a moderação promove.
Em segundo lugar, porque temos assistido a um aprofundar da procura de se agradar exclusivamente ao seu próprio campo ideológico, sendo essa necessidade cada vez mais traduzida numa obrigação de antagonizar quem pensa de maneira (ligeiramente) diferente. Esta procura do purismo de posicionamento leva, forçosamente, a um extremar das posições e ao apagamento de qualquer tipo de nuance. Quem se atreva a tentar uma posição mais colorida num mundo a preto e branco é tratado como “moderado”, leia-se, traidor do radicalismo do (cada vez mais pequeno) nicho que é suposto defender. Voluntária ou involuntariamente, também esta postura contribui para o perigoso estreitar do conceito de moderação.
Não surpreende o espanto, quando não o choque, com que as declarações sobre o conflito entre Israel e o Hamas do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, foram recebidas, também em Portugal. Guterres, talvez o político português que melhor representa a ideia de moderação, tornou-se subitamente num radical, em alguém que decidiu abdicar, lá está, de ser moderado. A razão? A sua condenação inequívoca dos ataques terroristas do Hamas enquanto relembrava o óbvio: que estes ataques não surgiram do vácuo.
Embora muitos dos que imediatamente saltaram dos seus sofás para atacar as declarações de Guterres não tenham sequer ouvido o seu discurso na íntegra, a sua posição enquanto Secretário-Geral da ONU não poderia ser mais moderada. Aliás, a solução dos dois Estados tal como preconizada pela ONU, por mais difícil que possa parecer no presente, deve continuar a ser a proposta que nos guie. Defender a liberdade do povo palestiniano e o seu direito à autodeterminação, o final de todas as atrocidades cometidas pelo mais, esse sim, radical governo israelita e aceitar as fronteiras como defendidas pela ONU é ser-se moderado. É ser-se verdadeiramente moderado.
Num artigo recentemente publicado no Público, Alexandra Lucas Coelho escrevia que se tornou radical dizer a verdade – aquela verdade, como a escritora se refere às declarações de Guterres. Do mesmo modo, e indo para lá da questão palestina, parece ter-se tornado radical ser moderado. E esse é um dos grandes problemas que temos pela frente. Se queremos garantir uma democracia saudável, a moderação, no seu sentido mais amplo, tem de ter lugar.
Mas ser-se moderado não significa encontrar um pretenso quase-neutro ponto intermédio entre duas posições antagónicas; tampouco significa forçar pontes entre ideologias e perspetivas irremediavelmente díspares e que estarão em conflito. Nem significa procurar aliados ou procurar agradar a todos a todo o custo. Ainda assim, e em contraponto com o posicionamento purista acima referido, ser-se moderado não implica a alienação automática e imediata de potenciais aliados pelo simples facto de pensarem de forma ligeiramente diferente. A moderação e a nuance tornam-se assim condições essenciais para o reforçar da democracia.
Num mundo cada vez mais de extremos – e em particular extremos reacionários, quando não abertamente fascistas – a moderação pode servir propósitos progressistas. Assumir que a moderação é, por definição, reacionária, é desistir à partida de uma das mais importantes lutas políticas da nossa era. E essa é uma luta que nós, progressistas, mais ou menos radicais, podemos também abraçar: a de radicalizar a moderação. Olhando para o passado, essa parece ser uma luta que vale a pena travar. Temos de voltar a fazer com que seja moderado defender a autodeterminação dos povos, que seja justa a justa redistribuição da riqueza, que seja moderado pedir que aqueles que mais contribuíram para as alterações climáticas tenham agora um maior contributo para a sua resolução, que seja moderado defender a vida, toda a vida, e que deixar que morram tantos seres humanos às portas do nosso continente é um crime que não podemos permitir. No fundo, é com a radicalidade da moderação que poderemos criar a hegemonia de que tanto precisamos.
-Sobre Jorge Pinto-
Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.