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À Janela

O dia 26 nasceu nublado, semelhante àqueles dias, em que todos os festejantes cansados, após…

Opinião de Marta Crawford

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O dia 26 nasceu nublado, semelhante àqueles dias, em que todos os festejantes cansados, após uma grande comemoração, permitem-se dormir até ao pôr do sol do dia seguinte. Quase todos, porque na família Pereira, começavam a despertar às 7 da manhã, quer fosse dia da semana quer fosse dia de festa. O Pipo, o filho mais novo da Catarina e do Luís, largava o seu primeiro grito de despertar às sete da manhã, mais ou menos, ao mesmo tempo, que a passarada na rua começava a chilrear. As crianças e os pássaros são semelhantes, acordam sempre antes de tempo e quando acordam fazem-se notar.

Os gémeos, os mais crescidos filhos do casal, tinham 6 anos, eram adoráveis, com os seus cabelos compridos dourados e ondulados, presos muitas vezes com elásticos e fitas, fazendo com que, às vezes, os confundissem com meninas. Num país como Portugal, ainda cheio de estereótipos de género, por vezes, a família lá tinha de ouvir um comentário do tipo: “como se chamam as meninas?” ou “são rapazes? então porque é que os vestem com t-shirts rosa?”. Os Pereira, geralmente não ligavam aos comentários, mas, por vezes, ficavam aborrecidos e de uma forma diplomática e assertiva, respondiam com um discurso pedagógico e educado dando, a quem precisasse de ouvir, uma verdadeira lição sobre igualdade, direitos e democracia.

Pela primeira vez, em muitos anos, não houve desfile na Av. da Liberdade, nem gentes nas ruas, nem floristas a vender cravos. No entanto, o dia foi memorável, talvez pela situação em que todos se encontravam. No prédio da Dona Esperança foi definitivamente diferente de todos os outros anos anteriores.

A Margarida do 3 esq. deixou um folheto em todas as portas, com o desafio que corria nas redes sociais: cantar o Grândola Vila Morena à janela, às 15h do dia 25 de Abril. Os moradores mais velhos do prédio não acharam muita graça à iniciativa e o Dr. Artur disse logo que ainda não se sentia em condições para viver alegrias. A Isabel, entusiasmada com ideia, propôs aos vizinhos que nesse dia, cada um dos moradores, fizesse uma sobremesa para trocar entre todos. Como o avô não sabia fazer bolos, ofereceu-se para fazer a sua sobremesa. Colocou num saco, os nomes de todos os vizinhos e foi tirando aleatoriamente um papelinho, que deixou à porta de cada vizinho, para que estes soubessem a quem tinham de endereçar a sua sobremesa.

Estranhamente, todos alinharam e ficaram contentes.

O dia 25 de Abril acordou bem-disposto. Ouviam-se pelo prédio da Dona Esperança as televisões sintonizadas nos discursos do Parlamento. Talvez a audiência da emissão neste dia superasse a dos anos anteriores, já que o país estava unido, mais do que nunca. Sentia-se o cheiro adocicado em todo o prédio e os odores confundiam-se como numa melodia de verdadeira fraternidade e liberdade. E às 15h do dia 25 de Abril, todos abriram as janelas e as portas dos seus apartamentos para cantarem uma das mais belas canções de Zeca Afonso. E de janelas abertas para o mundo, cantaram com o verdadeiro espírito da revolução de há 46 anos atrás.

Foi extraordinário o que se passou nessa hora. Vozes ecoaram por toda a avenida num coro celestial. Podiam-se ouvir vozes de todos os tipos, e as que se destacavam pela sua exuberância e entusiasmo. Os pulmões da Portugal pareciam renascidos.

Depois deste momento glorioso, lentamente no prédio da Dona Esperança, os vizinhos foram-se recolhendo, para dar lugar às trocas de sobremesas. A Isabel tinha feito uma escala, a Dona Esperança seria a primeira a entregar a sua sobremesa, depois os vizinhos do primeiro andar e por aí em diante, até ao último andar. Apenas um dos elementos de cada apartamento deixaria à porta do vizinho designado a sua sobremesa. Todos tinham deixado uma cadeira ou um banco à porta para esse efeito. Em casa dos Pereira, reinava a excitação. Os miúdos tinham adorado a ideia. O casal de artistas do 5º dto. distribuiu cravos desenhados. Era a primeira vez, em muitos anos, que não compravam cravos à florista da Alameda. Juntaram-lhe um poema de Sofia de Mello Breyner, onde se podia ler:

“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”

Todos trocaram as suas sobremesas e alguns deixaram recados adicionais endereçados aos destinatários. A Isabel foi surpreendida com uma mensagem enigmática do Rui. Sentiu-se corar com as palavras serenas e carinhosas que lhe foram escritas. Não estava à espera e, por alguma razão, o seu coração disparou. Ele deixava ainda o seu contacto pessoal e pedia-lhe que se “amigassem” nas redes sociais.

A Sara recebeu um desenho dos gémeos e ficou encantada. Há muitos anos que tentava engravidar, o que estava a ser um processo difícil e moroso. Aquele desenho encheu-lhe o coração. A Dona Esperança, deixou máscaras de pano, com um cravo bordado como se fosse um sorriso, feitas por ela, na sua velha máquina de costura Singer.

Estavam todos às suas portas, a festejar abril, quando se ouviu um grito. Parecia vir do 4º andar. Todos fizeram silêncio e pararam de respirar por momentos, até que o silêncio foi quebrado por uma voz de criança, que dizia com toda a força dos seus pulmões: “A mamã vai ter a bebéeee”!

Entre manifestações de surpresa e gargalhadas, todos os moradores se alinharam para ajudar o casal, pareciam uma família, uma verdadeira família.

Nesse dia à noite, a NASA lançou uma imagem de satélite para todas as estações televisivas do mundo. Era fácil reconhecer Portugal no mapa mundo. Na legenda podia-se ler a seguinte descrição: às 15h do dia 25 de Abril, Portugal foi considerado o país emocionalmente mais quente do mundo.

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