Em agosto, o New York Times lançou uma peça de investigação jornalística com um intuito claro: ilustrar a existência de um nexo causal alarmante e irrefutável entre a propagação de discurso de incitamento ao ódio racista, anti-imigração e islamofóbico em redes sociais como o TikTok, o Telegram e o X (ex-Twitter) e recentes instantes de violência em vários pontos do continente europeu. No que respeita ao Reino Unido, a publicação norte-americana destaca as mobilizações de extrema-direita que se geraram na sequência de uma fabulação ilegítima difundida em publicações online, que alegava que o autor do assassinato trágico de três crianças em Southport seria um refugiado sírio, quando, na verdade, se tratava de um cidadão do país de Gales. O resultado: mesquitas vandalizadas, mulheres a verem o seu hijab arrancado das próprias cabeças, e, no geral e em poucos dias, várias dezenas de ataques indiscriminados a qualquer indivíduo cuja aparência física é reconduzida à categoria vaga de “estrangeiro” ou “muçulmano”. Portugal é também destaque, através do grupo 1143, liderado pelo neonazi Mário Machado, cuja conta de YouTube acabou suspensa, precisamente, por instigação à agressão física e à perseguição.
A narrativa assente é: o discurso inflama, magnifica, produz metástases que rapidamente ganham contornos ampliados e que aderem e contaminam tudo. Não me parece, de todo, que esta seja uma afirmação inverosímil, ou difícil de acolher. Há um nexo causal, a consubstanciação do qual é debatível, mas, mesmo que apenas ténue ou curvilíneo, ele existe. O discurso inflama, sim. Ou, pelo menos, fomenta vínculos, legitima, abre as portas para a total normalização, para a dissipação da vergonha, porque há eco e reconhecimento do outro que pensa de forma igual, que partilha os mesmos instintos e inclinações outrora desencorajados e, por conseguinte, reprimidos. O dilema gira em torno do modo como a linguagem deve ser tratada, em específico a linguagem que, embora ofensiva e amplamente repudiável, não é reconduzível à categoria de “incitamento ao ódio e à violência”. O caso mais recente no nosso país surge ainda fresco na consciência coletiva, e falo das declarações infundadas do líder do partido de extrema-direita em sessão plenária, sobre o povo turco.
É por demais evidente que a liberdade de expressão, como qualquer outra plasmada na nossa Constituição, não é e não pode ser entendida como absoluta ou insuscetível a restrições, e que o policiamento do discurso impõe-se, como escreveu a advogada Leonor Caldeira, “quando estão em causa ameaças concretas e declarações patentemente falsas e ofensivas proferidas publicamente e de má-fé”. O discurso de ódio pode, e deve, ser estigmatizado, nesse sentido, em certos casos, a censura pode ser materialmente necessária, por motivos de segurança e paz pública. Mas a verdade é que circunscrever todo e qualquer discurso sem critério, em virtude de um ideal abstrato de segurança, traz riscos observáveis. A instrumentalização não só é possível como plausível. Vejamos, por exemplo, o caso da académica marxista Jodi Dean, sujeita a pesadas sanções disciplinares impostas pela sua entidade empregadora por ser autora de um artigo em que expressa a sua solidariedade para com o povo palestino na sua luta pela emancipação que foi classificado pela Universidade como uma posição “perigosa”.
Afirmar que a liberdade de expressão não tem prevalência suprema sobre tudo o resto não envolve descartar inteiramente um direito que, embora francamente cooptado por quem tem interesse em perpetuar o mito de uma cultura compressora de “cancelamento”, tem um significado original e incorrupto. Como argumentou Nesrine Malik, a liberdade de expressão implica poder falar, mas não implica poder falar sem arcar consequências ou objeções. A ausência de obstrução não implica anuência, e também não implica aceitar o que é, pura e simplesmente, distorção. Em todos estes processos há dinamismo e troca. Por outro lado, poder falar não implica poder causar dano. Aí, a invocação certa é abuso. É, talvez, particularmente pertinente densificar o conceito de liberdade de expressão, pensá-lo não necessariamente como (apenas) a possibilidade de dizer coisas sem entrave, mas como algo que se relaciona, obrigatoriamente, com configurações várias de poder. Não só o que podemos dizer ou o que podemos dizer, mas quem pode dizer? Quem tem audiência para exercer, de forma efetiva, a sua liberdade de expressão? Quem vê a sua voz censurada, verdadeiramente, e quem a vê amplificada?
Para a esquerda, salvaguardar e preencher a liberdade de expressão deve afigurar-se como uma causa moralmente correta, e estrategicamente útil. É necessário não nos imiscuirmos de um território que (também) é nosso, porque é de justiça. É lembrar, sobretudo: ter o direito a expressar opiniões impopulares não é ter o direito a expressar essas opiniões de forma a atentar contra a dignidade alheia, ou a colocar o outro numa situação objetiva de perigo ou degradação.