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A Penumbra da Revolução

Fotografia de Iman Simon

Está no canto do teu espelho. É a fotografia de todos os dias. Todas as manhãs trocas os olhares com quem nela está enquanto enrolas os teus dedos à volta dos teus cachos molhados. Todos os dias observas os seus rostos. Todos os dias abandonam a fotografia, estendem os braços ao longo de muitos anos e acariciam o teu acordar. Para ti, é uma fotografia como nenhuma outra, preenchida com cuidado com cada gota dos seus sorrisos e com aquela palavra mágica, apesar de gasta, chamada felicidade. É uma prova de que “também nós amamos a vida quando podemos.”[1] Uma fotografia sem guerra, sem exílio e sem morte. É um retrato apenas cheio de nós.

O teu pai está de óculos elegantes, barba feita, camisa dentro de calças clássicas e um sorriso que nunca entendeste o seu quase. O cheiro de cabeleireiro salta à vista, assim que olhes para o cabelo da tua mãe bem desenhado e alinhado com a sua saia azul e vermelha e umas sandálias que abraçam um calcanhar ressacado, inadequado com a sua elegância. Quase consegues ver a voz da tua tia, refletida no seu vestido como se ela tivesse bordado todos os cantos com o seu canto celebrativo, que ao mesmo tempo, para ti, é incompreensivelmente triste. Quando olhas para o teu avô invadem-te as saudades do seu sofá, onde sempre te esperava um pequeno saco cheios de chocolates e histórias. Um sofá que inexplicavelmente o teu avô nunca abandonou. Tu estás muito provavelmente feliz, com um tamborim na mão, quase de costas a observar as pessoas como se estivesses a testemunhar o momento e a olhar para este mesmo retrato de família.

Todos os dias, espreitas esta fotografia sem a ver. Sem te permitires ver os seus detalhes e as suas contradições. Só hoje entendes que a fotografia de todos os dias, todos os dias, todos os dias, nunca o foi. Só hoje realmente estás a vê-la. Agora nada faz sentido e tudo faz sentido. Olhas para a fotografia e reparas no teu ano de nascimento. Está a brilhar em amarelo num calendário na parede: 1983. Não há dúvida. Estás tu em pé, bem maior que a tua data de nascimento. Na parede, há uma indicação clara do ano em que este retrato foi tirado: 1983. E agora, o teu ser está a metamorfosear-se num ponto de interrogação. Na tua existência aconteceu uma pergunta assustadora: sou?

A fotografia torna-se outra, tal como o teu reflexo no espelho, que já não é. Vês a penumbra de uma família antes de ser abandonada por uma revolução que lhe fechou a porta e se partiu. Reparas na sombra do teu pai a largar um poema de resistência no meio do verso, tirar as calças à boca de sino, fazer a barba e ir à procura de um sorriso derrotado para sobreviver. Vês a tua mãe antes de gastar o seu calcanhar nos caminhos para a liberdade, entendes que as flores azuis e vermelhas na sua saia não são nada mais que saudades do seu mar egípcio que deixou pela revolução e das papoilas da Palestina que nunca pôde apanhar. Reparas nos dedos da tua tia, furados, como a sua voz, que tanto tentou bordar a Palestina que agora tem outro nome. Percebes que o teu avô estava sempre no sofá à espera de regressar à sua casa ocupada, até que ficou simplesmente à espera da morte. Tu estás lá, de pé, mas não existes, és apenas uma esperança. Em 1983, o calendário parou, os teus pais perderam um sonho e fizeram no seu lugar uma filha. Olhas bem para a fotografia. Vês o peso das malas do exílio nos seus olhares. Vês os caminhos sinuosos nos seus pés. Vês no seu aconchego todas as suas casas perdidas. Vês o cerco nos seus sorrisos. Vês-te a ti a observar tudo o que aconteceu antes do teu nascimento. Olhas para a fotografia e vês o teu reflexo.


[1] Poema de Mahmoud Darwish.

- Sobre Shahd Wadi -

Shahd Wadi é Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Tenta exercer a sua liberdade também no que faz, viajando entre investigação, tradução, escrita, curadoria e consultorias artísticas. Procurou as suas resistências ao escrever a sua dissertação de Doutoramento em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra que serviu de base ao livro “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio” (2017). Foi então seleccionada para a plataforma Best Young Researchers. Obteve o grau de mestre na mesma área pela mesma universidade com uma tese intitulada “Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências” (2010).  Para os respectivos graus académicos, ambas as teses foram as primeiras no país na área dos Estudos Feministas. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua. 

Texto de Shahd Wadi
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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