Seis de Abril de dois mil e sete
Veio devagar do outro lado da sala do restaurante, sentou-se na cadeira à minha frente do outro lado da mesa onde eu estava, e enquanto encostava a cara na sua mão direita, falou baixinho mas claramente comigo, com o seu inglês lento e sempre muito bem pensado, olhando-me com os seus olhos azul oceano, e o restaurante pura e simplesmente desapareceu. “Quando tinha a tua idade fui para Nova Iorque. Não sabia falar inglês. Não tenhas medo. Seria bom para ti não seres tão protegida. As melhores pessoas deste mundo não foram protegidas.” Se me disse algo mais não me lembro. Pareceu-me coisa de oráculo, mensagem das estrelas, conselho de quem me conhecia desde sempre. Ora, Pina só me conheceu ali, naquele momento, e já sabia vincar-se dentro de mim. Sei bem que não sou a única que sentiu dela a sua acutilante atenção - muitos somos os que, por causa dela, nos sentimos um dia únicos num sítio cheio de gente. Era o seu charme e o seu dom: observar e transformar. Eu tinha dezassete anos, ela sessenta e cinco. A sua generosidade foi imensa.
Vi em Lisboa Nelken e depois Ten Chi em dois mil e cinco. O primeiro a transbordar de imagens icónicas umas sucedendo-se às outras: um campo de cravos como que nascidos das tábuas do palco; os cães ladrando sem parar; Julie Anne Stanzak com o acordeão tapando o seu tronco nu; Lutz Förster de fato escuro dançando em linguagem gestual o The Man I Love; Dominique Mercy mostrando os seus saltos no ar; elas de vestido, eles de vestido; Primavera (grass, small), Verão (high grass, sun), Outono (falling leaves), Inverno (winter!). O segundo, Céu e Terra, fazendo nevar em cena magicamente, transportando-nos sem parar num travelling de imagens e dança; os vestidos, os vestidos, os cabelos, as cores; e a maravilhosa Mechthild Großmann, com a sua voz das profundezas: “When we fall apart, and ‘us’ becomes ‘you and I’…”.
Mais tarde tive a honra de ver Bandoneon em Wuppertal. Neve nevava a sério lá fora. Por dentro o cenário-salão; Dominique a mostrar os seus dotes de dança; os jogos de casais; o momento em que quase tudo é tirado de cena em frente aos nossos olhos. Pina conta-nos mais tarde em confidência, sentados que estávamos a cear, que um dia estava a ensaiar esta peça quando, irritados já com o horário de trabalho que estava a ser ultrapassado, os técnicos do teatro entraram cena adentro e começaram a tirar o cenário todo, móveis, quadros, linóleo. Ela a ver, talvez fumando, achou o acontecimento fantástico e replica-o em Bandoneon todas as noites. Conta também que chegou a ter guarda-costas na Alemanha porque era agredida pelo público (assim como acontecia aos seus bailarinos, em cena) que se sentia ofendido pelo seu trabalho (o mesmo público que só lhe deu valor depois dela ser apreciada “lá fora”). Conta também da beleza de existirem histórias como a da filha de Dominique Mercy e Malou Airaudo, Thusnelda, que dança agora o papel que a sua mãe dançava no espectáculo que tínhamos visto nessa noite.
Em dois mil e sete, depois de For the children of yesterday, today and tomorrow não a procuro para a cumprimentar, num misto de vergonha e medo que não me reconhecesse. Sou, pouco tempo depois, surpreendida por um telefonema do Teatro dizendo que me foi deixado um livro em meu nome. É um daqueles programas lindíssimos de Wuppertal recheado de fotografias dos espectáculos da última temporada. Fico emocionada pela oferta. De rompante, folheando-o, deparo-me com duas páginas de uma fotografia onde a bailarina Beatrice Libonati está praticamente enterrada num monte imenso de flores vermelhas em Der Fensterputzer onde quase imperceptivelmente se consegue ler:
“to dear Sara
I missed you
with love
Pina.”
Em dois mil e oito Pina aceita dançar Café Müller. Não sabíamos que seria a última vez. A emoção transbordava sem controle na plateia. Por tudo.
Trinta de Junho de dois mil e nove
Évora. Verão. Conheço finalmente Polina Klimovitskaya, professora de Teatro de origem russa, residente em Nova Iorque, que há muito esperava conhecer. Em workshop, junto com outros professores e alunos, começámos o nosso entendimento. Ela debaixo do seu grande chapéu, com a cara coberta de protector solar, ria muito alto, falava de forma impiedosamente directa, era estranha, complexa, sábia. Eu só a entendia por uma qualquer estrada de intuição, quem sabe herdade de um nosso cruzamento ancestral, e o que não conseguia entender sabia que era porque o seu ensinamento era completamente novo e único para mim. Precisava dela para me tirar do sítio estanque e falacioso em que estava na minha profissão.
Naquele dia trinta já muito tínhamos brincado e improvisado em conjunto quando parámos para almoçar. Felizmente não havia rede onde estávamos e a minha relação com o telemóvel era menos aflitiva. Olho para ele e vejo uma mensagem da minha querida e emprestada irmã Beatriz: “Beijo muito grande neste dia tão triste. Que dádiva esta de termos partilhado um génio, uma alma sem par. Gelei. De que falaria ela? Que génio? Julgo que lhe telefonei em aflição e ela, medindo as palavras ao perceber que eu não sabia de nada, disse-me que tinha sido Pina a deixar-nos. Estava entre mulheres, no meio da rua e decidi dizer a notícia em voz alta. Entre as muralhas de Évora uma delas parou, a outra ajoelhou-se no chão involuntariamente, e Polina deu um grito, daqueles que só terei ouvido talvez mais duas vezes na vida. Instalou-se um silêncio terrível, digno das tragédias gregas, como se tivéssemos perdido uma irmã, e como se, estranhamente, a tivéssemos sentido connosco todo o dia, sem o saber. Talvez lembrasse antes uma peça de Tchekhov, pois era o dia do meu aniversário e uma arma tinha disparado irremediavelmente. Pina tinha morrido. Ficámos todas mais órfãs. O nosso luto era comum, quase universal. Uma já anunciada passagem de testemunho se tinha passado, no entanto, naquele dia - tinha encontrado a Polina, a minha verdadeira mestre, posso dizê-lo agora, passados onze anos.
Dezassete de Janeiro de dois mil e dez
Fui atrás dela para Nova Iorque, aprender tudo o que podia, avidamente. Como eu adorei o estúdio onde trabalhámos, adorei todos as explorações novas a cada vez, adorei os seus domingos em Brooklyn, onde organizava encontros informais de pesquisa, adorei tudo o que me aconteceu por lá, mesmo o mais duro. A profecia cumprindo-se: “Quando tinha a tua idade fui para Nova Iorque”.
Um dia Polina chamou-me a sua casa para me perguntar se eu quereria ficar por lá, a seu lado, como sua aprendiz. Não fiquei mas na verdade foi como se tivesse ficado. Tento, ainda hoje, aprender consigo, pensar através de si o que é o trabalho de actriz, e ela continua infinita no seu amor pela humanidade.
Falamos muito da Pina, da sua imensa sabedoria e beleza. A Polina adora contar a história de quando a Pina descobriu que era importante em que direcção tinha os seus olhos enquanto dançava com eles fechados em Café Müller. E eu adoro contar esta nossa história, relembrando o feliz que fui em dois mil e dez.
Dentro de mim ainda: “Não tenhas medo. As melhores pessoas deste mundo não foram protegidas”
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Sara Carinhas-
Nasceu em Lisboa, em 1987. Estuda com a Professora Polina Klimovitskaya, desde 2009, entre Lisboa, Nova Iorque e Paris. É licenciada em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreando-se como actriz em 2003 trabalhou em Teatro com Adriano Luz, Ana Tamen, Beatriz Batarda, Cristina Carvalhal, Fernanda Lapa, Isabel Medina, João Mota, Luís Castro, Marco Martins, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Nuno Carinhas, Olga Roriz, Ricardo Aibéo, e Ricardo Pais. Em 2015 é premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores de melhor actriz de teatro, recebe a Menção Honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de teatro e o Globo de Ouro de melhor actriz pela sua interpretação em A farsa de Luís Castro (2015). Em cinema trabalhou com os realizados Alberto Seixas Santos, Manoel de Oliveira, Pedro Marques, Rui Simões, Tiago Guedes e Frederico Serra, Valeria Sarmiento, Manuel Mozos, Patrícia Sequeira, João Mário Grilo, entre outros. Foi responsável pela dramaturgia, direcção de casting e direcção de actores do filme Snu de Patrícia Sequeira. Foi distinguida com o prémio Jovem Talento L’Oreal Paris, do Estoril Film Festival, pela sua interpretação no filme Coisa Ruim (2008). Em televisão participou em séries como Mulheres Assim, Madre Paula e 3 Mulheres, tendo sido directora de actores, junto com Cristina Carvalhal, de Terapia, realizada por Patrícia Sequeira. Como encenadora destaca “As Ondas” (2013) a partir da obra homónima de Virginia Woolf, autora a que regressa em “Orlando” (2015), uma co-criação com Victor Hugo Pontes. Em 2019 estreia “Limbo” com sua encenação, espectáculo ainda em digressão pelo país, tendo sido recentemente apresentado em Londres. Assina pela segunda vez o “Ciclo de Leituras Encenadas” no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal.