Muito se tem falado sobre o problema das casas, sobretudo, em Lisboa, dos valores, sejam de compra ou arrendamento, que fazem pessoas de trinta e tal anos dizer: “Quando for grande, vou ter uma casa”. Parece que um direito básico se tornou um luxo.
Cada idade pede um tempo e cada tempo pede um lugar. Mas sinto que a ordem se inverteu e que o lugar perdeu o tempo. Excluindo a minoria que acaba a faculdade e acorda com uma chave de casa debaixo da almofada, colocada, durante a noite, pela fada dos pais, ou quem, dentro da hierarquia das profissões, desempenha uma actividade que se encontra no topo, estamos na geração dos quartos alugados ad eternum.
O que, numa determinada fase, pode ser saudável e importante na descoberta de si e do mundo, caso os coabitantes se entendam como uma comunidade, passado uma ou mais décadas, se não for uma escolha livre, é sintoma de um esforço devorado pelo destino, que é escolha de outros. Como se pode colher o fruto do trabalho, num quarto sem jardim?
Desdobramo-nos em mil tarefas, mas o quarto não se desdobra.
Na verdade, o corredor da casa é uma espécie de preparação da rua. Por vezes, cruzamo-nos, a meio da noite, com alguém que nunca soubemos o nome. É um espaço de ninguém que, na ingenuidade de muitos que chegam, será transitório, porque, dali a uns anos, a dedicação, o mérito e o emprego, os virão buscar. A mudança é, por vezes, para outros quartos, à procura de rendas mais baratas. Em oito anos, vivi em oito casas, em duas das quais éramos sete pessoas. Por isso mesmo, prefiro chamar-lhes hostels. São espaços aeroportos ou paragens de autocarro. Espaços para se esperar um lugar, para se partir. As coisas dizem-no. Existem para o acaso, para quem vier.
As casas podem também ser uma forma do estrangeiro. Quando utilizamos a expressão “voltar a casa”, evocamos a imaterialidade a partir da matéria. Mesmo que digamos que a casa é alguém, uma praia ou um estado, não deixamos de os trazer para dentro desta palavra. O verdadeiro lugar da casa é o de dentro. Há muitas outras experiências da construção onde se habita que nos colocam no lugar de fora. Porém, é lamentável quando são as condições de um país que o fazem, quando, para além do descontrolo do preço das rendas e das vendas, que obrigam famílias a viver num quarto, se constroem habitações sociais, caixotes de pessoas com janelas minúsculas, sem varandas, porque os mais pobres sempre souberam viver na sombra e com pouco ar. E a beleza é um direito de castas.
Se queremos investir em saúde mental, tratemos das casas. Na verdade, não há melhor imagem para o pensamento do que elas. As casas são espaços afectivos. Por isso, quem não vive nelas é um “sem-abrigo”. Poderíamos chamar-lhe “sem-cólo”. Gaston Bachelard, na obra Poética do Espaço, refere-se à casa como o nosso universo primário, comparando-a a um ventre materno. A intimidade precisa dela. Um sem-abrigo está sempre visível, exposto em quase todas as dimensões, nunca se recolhe. Uma sociedade que o impulsione, diz-nos que há quem não tenha lugar nela. É curioso o facto de muitas pessoas que ficam desalojadas procurarem colocar as suas caixas de cartão e mantas perto daquela que foi a sua casa, muitas vezes, a de infância. Quando não são da cidade onde estão, dormem nas estações de comboio, como podemos notar quando passamos pelo Oriente e Santa Apolónia nocturnos. Por aquela linha passa o que pode levar, o que parte e o que chega. O que se procura talvez seja adormecer perto da memória de uma raiz. Se a casa é o lugar do sono e do sonho, não é difícil perceber que, roubando a casa, se rouba o vínculo com a vida, se chega ao fundo, se leva alguém ao fundo.
Repare-se que a natureza fala das casas, que outros animais, como, por exemplo, as andorinhas, que compõem o ninho com saliva e moldam-no com o peito, se cumprem com a própria construção.
Embora nem sempre, a protecção física, no sentido mais primário, inaugura um espaço seguro para a livre expressão de si, uma espécie de nudez. Na invisibilidade, a revelação. Há uma porta onde deixamos os papéis que vestimos pela manhã, e que têm o seu peso. O corpo entra, e ilumina-se uma outra região de si, mais sincera. Por isso, descalça-se e despe-se. Ainda que o dia não tenha acabado, a chegada é já descanso.
Mas, quando se aluga um quarto, ficam três terços de mundo. Estamos perante o olhar de outros e comportamo-nos como tal. Mesmo que não saíamos dele, não há o espaço que o grito, ou o choro, ou mesmo uma conversa íntima, pedem. Qual o lugar do segredo, então?
Podemos contar a nossa história pelas casas, ou mesmo o dia, pela forma como nelas entramos. São uma espécie de calendário interior. Quando o tempo passa por nós, passa por elas. Uma casa viva é uma casa que muda, como um corpo. E, como um corpo, tem um cheiro. Quando convidamos alguém para vir a nossa casa, estamos a dizer “aproxima-te”, “conhece-me”. A forma como estamos em casa uns dos outros e umas das outras, talvez seja uma biografia das relações.
Todavia, as casas-hostels não são para a expansão, têm restrições de circulação. Contêm os gestos. Na sua impessoalidade, não há encontro nem partilha. Não sabem absolutamente nada sobre nós. São o espelho do que não está. Assim, como se regressa?
Neste contexto de pandemia, é importante pensar em quem vive em quartos interiores, em quem não teve forma de sair dos quartos alugados, nas famílias que, numa divisão, concentram toda a casa. Simultaneamente, com a ajuda das redes sociais, há que reflectir sobre consciência social dos cidadãos e cidadãs, que tiveram a oportunidade de se deslocar até à herdade ou casa de praia, e, num momento, tão frágil, inclusive psicologicamente, romantizaram a quarentena, expondo a desigualdade e o privilégio.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Raquel Botelho Rodrigues-
Para a Raquel, a biografia não é o curriculum. A escrita da vida é algo que ainda procura ler e tem a certeza de que este “ainda” será para sempre. Por motivos de força maior, porque nos temos de estar sempre a definir, diz-nos que trabalha na equipa editorial do Gerador.