desde sempre que a forma como lidamos com as nossas diferenças nos tem conduzido à nossa própria destruição.
há 50 mil anos, o mundo era povoado por espécies humanas similares ao que conhecemos hoje, os sapiens. a eles, juntavam-se os neandertais e os denisovanos, espécies aparentemente similares, mas com códigos genéticos e capacidades cognitivas e sociais distintas. hoje sabemos que possuímos características em comum com essas espécies porque, algures nesse tempo, nos cruzámos e acabámos por procriar.
mas onde estão os neandertais e os denisovanos?
estão extintos, claro. porquê? porque eram demasiado parecidos connosco, sapiens, para serem ignorados e demasiado diferentes para que os conseguíssemos tolerar.
este facto leva-nos exatamente ao epicentro de todas as guerras geradas até hoje: não é uma questão de sobrevivência, é uma questão de poder.
sapiens, neandertais e denisovanos podiam coexistir em perfeita harmonia. embora de espécies diferentes, tinham uma ótima capacidade de adaptação e podiam aprender muito uns com os outros. em vez disso, os sapiens viram nas outras espécies uma ameaça ao seu exercício do poder. pretendiam ser a espécie dominante, detentora territorial, capaz de se proliferar por todo o mundo. então, fizeram o que fazemos desde sempre: dizimaram as outras espécies.
em toda a história da humanidade existem inúmeros relatos de genocídios. estes ataques nada mais são do que o instinto do sapiens de dominar e extinguir as diferenças e ameaças ao seu poder.
uma vez eliminadas as outras espécies, o sapiens continuava a encontrar diferenças entre si. começou então a suprimir-se, dividindo-se através de território, raça, religião e género. tendencialmente, os que não espelham o seu reflexo, física ou ideologicamente, constituem um alvo a abater. esta luta dura até aos dias de hoje.
sangue continua a ser derramado em nome de deus, o racismo mantém-se enraizado globalmente, as mulheres são continuamente alvo de submissão em diversas culturas e uma política de extrema-direita emerge e ganha força pela europa, provando que ainda muito falta fazer para combater grande parte destes problemas. a visão deixa de ser global, perde a sua capacidade periférica e passa a ser centrada em si mesma.
de um mundo que acabou por ser inteiramente nosso, de uma espécie única, os sapiens, resta apenas um rasto histórico. não sabemos viver sem fronteiras, sem disputa, sem jogos de interesse ou ganância. luta-se para ser a maior potência mundial, ter a língua mais falada ou constituir a religião mais seguida. luta-se por recursos, por energia, por petróleo, por água. defende-se a cultura de cada país, como se as diferenças não pudessem viver em perfeita comunhão. impõem-se ideologias, como se cada um não pudesse ter as suas, individualmente.
no irão, a internet foi cortada, como quem corta a luz de um país e o deixa às escuras. é assim que a população iraniana está: às escuras, de mordaça na boca, mãos atadas atrás das costas e o corpo a debater-se debilmente contra as imposições.
a par de outros países do médio-oriente, o irão é governado por políticas radicais e repressivas, desde a revolução islâmica de 1979. nessa altura, e após 50 anos de uma liderança monárquica, o xá reza pahlevi foi derrubado e o seu governo desmantelado. no seu lugar, emergiu um estado teocrático e um novo líder, regido por valores religiosos e tradicionais do islamismo, o aiatola ruhollah khomeini.
quatro anos depois, em 1983, as mulheres que até então tinham liberdade para vestir o que quisessem e que podiam conviver e partilhar livremente o mesmo espaço com homens, viram o seu dia-a-dia mudar radicalmente. passaram a ser forçadas, independentemente da sua fé e da sua nacionalidade, a usar um véu - o hijab - que lhes cobrisse a cabeça, foi-lhes imposta a segregação por género e todas as leis que antes favoreciam e estabeleciam os seus direitos foram extintas. as mulheres deixaram de poder praticar desporto, de nadar em público ou de andar de bicicleta. também a nível judicial perderam direitos: deixaram de se poder divorciar, de assumir a custódia dos filhos ou de viajar sem a permissão de um tutor de sexo masculino. passaram a ser julgadas em praça pública, apedrejadas aos olhos de todos.
a acrescentar a estes fatores, eram as mulheres a ocupar cada vez mais lugares nas universidades, em maior número do que os homens. também aqui a diferença assusta o sapiens. ora, as mulheres não podiam casar com homens com status inferior ou igual, elas deveriam manter-se numa posição inferior, de dominadas. além disso, eram convidadas a pensar, a questionar e a falar. uma mulher com poder assusta uma sociedade que a pretende subjugar.
mahsa amini, 22 anos, foi presa pela patrulha de orientação da república islâmica do irão, porque o seu hijab não correspondia aos padrões obrigatórios do governo. durante esse processo, foi agredida violentamente na cabeça com um pau e embatida várias vezes contra o carro da polícia, deixando-a em coma. dias depois, era confirmada a sua morte.
enquanto o corpo de mahsa caía, sem vida, outros corpos em vida se levantavam. a sua morte gerou uma onda de revolta no povo que saiu para a rua a protestar e a lutar pela sua liberdade. no meio desses protestos, mais de 70 pessoas foram mortas, incluindo crianças.
nessas manifestações, hadis najafi, outra jovem de 20 anos, perdia a vida. antes de avançar para o confronto, hadis é filmada a prender o seu cabelo num rabo-de-cavalo, sem recorrer ao uso do hijab. minutos depois, era atingida mortalmente seis vezes no peito, no pescoço e na cabeça e o vídeo tornava-se viral na internet, tornando-a em mais um símbolo desta luta.
enquanto numa parte do mundo se perde a vida para conquistar e recuperar direitos humanos básicos, noutra luta-se para se retirar o que já era nosso por direito. é o caso da itália.
embora mussolini tenha governado há 79 anos, georgia meloni chega agora ao poder inspirada na política de il duce, com ideias conservadoras e decidida a retirar o direito ao aborto, a fechar as fronteiras à imigração e a excluir os direitos conquistados pela comunidade lgbtqia+.
porque ganham cada vez mais votos os partidos de extrema-direita?
em épocas de recessão económica e nas quais o descrédito na política vigora, é fácil para o sapiens fazer-se ouvir. é urgente olhar para si mesmo, defender os seus próprios direitos e tornar um país – se possível, o mundo – à sua própria imagem. há que eliminar as diferenças, elas são erros de código que devem ser corrigidos. a prioridade é a economia e o crescimento interno.
confesso que não gosto de política. não gosto de causas que provocam a divisão entre as pessoas, motivos para instigar ao ódio e para derramar sangue no chão. não gosto de fronteiras, de limites, de traços no chão que eu não possa pisar. acredito que somos feitos do mesmo, sapiens, filhos do mesmo ventre, ainda que a nossa língua, cor e crenças possam ser diferentes.
desde criança que me sinto como uma peça que não seguiu a mesma linha de produção. nunca gostei de banalidade. não queria que me confundissem numa multidão, nem tão pouco que replicassem a minha imagem. são as características que nos distinguem, uns dos outros, que conquistam a minha atenção. é aí que reside a beleza do sapiens, cada vez mais fundido entre as suas culturas, porém, cada vez mais belo exatamente por isso. pelo resultado que advém dessas misturas e de uma sociedade multicultural. a cultura de cada povo não se perde, ela vive e atualiza-se, enriquecendo-se com todas as outras.
ainda acredito num mundo sem imposições, sem restrições. um mundo sem luta pelo poder e pela reivindicação de terras. um mundo onde o impacto ambiental fale mais alto que os lucros, que os lóbis. um mundo onde finalmente se entenda como tudo é global e que as terras são de todos, como a multiculturalidade não é uma ameaça, mas um enriquecimento. um mundo em que a liberdade seja um direito fundamental, exercido em tudo e por todos.
o dia em que nos unirmos globalmente por uma causa comum, pela nossa própria sobrevivência, será o dia em que o sapiens finalmente evoluirá. se nada for feito, se persistirmos em olhar apenas para nós, continuaremos a trilhar o caminho para a nossa própria queda.
com amor,
sofia dinis
-Sobre Sofia Dinis-
Sofia Dinis é tatuadora, fotógrafa, designer, ilustradora, criadora de conteúdos e muito mais. Sofia Dinis é artista.
Nasceu e cresceu em Albufeira, mas foi em Lisboa que floresceu. Mudou-se para a capital para tirar a licenciatura em design de comunicação, no IADE, e foi nesta cidade que construiu todos os seus projetos. Teve um espaço de estética e deu formação na área, trabalhou como fotógrafa e designer e abraçou a tatuagem como hobby.
Em 2017, viu-se obrigada a repensar o seu percurso profissional quando fechou o seu espaço de estética e design e regressou a Albufeira. No meio do caos, decidiu que queria ser tatuadora a tempo inteiro e a 15 de fevereiro de 2018 regressou a Lisboa. Dava assim o primeiro passo para se tornar a tatuadora que toda a gente conhece.
O projeto SHE IS ART nasceu em pleno coração de Lisboa, numa casa de Air BnB de uma amiga. Durante duas semanas, Sofia tatuou 2 amigos e fotografou os trabalhos de forma a parecer que tinha um extenso portfólio. Desenhou o seu Instagram, desenvolveu a marca e, duas semanas depois, começou a receber vários pedidos para tatuar, não tendo parado desde então. Em menos de um ano, tinha mais de 50 mil seguidores no Instagram e uma lista de espera de 8 meses.
A marca SHE IS ART não parou de crescer ao longo destes 3 anos. Neste momento, é muito mais do que um projeto de tatuagens, é um projeto artístico. O ano passado, Sofia lançou o seu primeiro produto, o Diário 2021. Este ano, tem já planeados novos projetos para apresentar ao público. Afinal, criar faz parte da sua essência.