É de noção quase geral que um litro de tinta para impressão é múltiplas vezes mais caro do que um litro de petróleo. No entanto, pouca gente sabe disso e, quando sabe, nem quer fazer as contas para não se assustar. É que enquanto o petróleo também nos serve ainda e mal (pelo ambiente) os tempos de lazer, os tinteiros servem apenas e exclusivamente o trabalho. É uma questão psicológica.
O mesmo se passa com a acesa e mais recente discussão sobre a instalação da aplicação StayAway Covid (SAC) que, num momento de rara falta de perspicácia do primeiro-ministro, estourou as redes sociais, pessoais e familiares com a possibilidade de vir a ser obrigatória. É, novamente, uma questão psicológica.
Contudo, e mesmo com meio mundo aos gritos contra o outro meio, não o será, pois é inconstitucional, e mesmo estando numa guerra contra um oponente invisível, ainda vivemos numa e em democracia — assim pelo menos se reclama — e nem tudo nos pode ser ordenado ou imposto.
No entanto, e basta procurar 30 segundos pela Internet, somos confrontados com quadros muito específicos sobre a invasão de dados e/ou privacidade da nossa vida quando comparamos a StayAway Covid (uma das piores designações que o modernismo pindérico do estrangerismo fácil criou) com a maior parte das aplicações que temos no nosso smartphone. As mais óbvias? Redes sociais, Via Verde, jogos e brincadeiras para mudar a cara, mapas e estacionamento. Todas elas nos pedem dados privados para poderem funcionar. E o que fazemos? Damos. Enquanto isso, a app SAC pede bem menos informações, aliás, faz gala de não ser invasiva. E o que discutimos? A liberdade, direitos e garantias. Será uma questão psicológica?
Mencionei, no início, o valor da tinta de impressão e do litro de gasóleo. Mas sabem o que é bem mais caro, o que vale realmente muito dinheiro? Os nossos dados – ou Data, se preferirem – que tudo dizem às grandes marcas, corporações, governos e demais interessados. No entanto, já nos vendemos aos Facebooks da vida e… de borla e de bom-grado.
Fui das primeiras a instalar a SAC, mas de nada me serve. No meu agregado vive uma pessoa que não quer abrir o seu smartphone ao mundo. Explicou-me qualquer coisa técnica que envolve o Bluetooth. E, para ele, esta não é uma questão psicológica, mas tecnológica.
Num momento em que a segunda vaga nos tolda a razão, porque os números vão ser francamente assustadores, são este tipo de discussões que em nada ajudam à sanidade mental e à discussão construtiva de uma matéria que pode (ou não) ser de extrema eficácia no combate à pandemia actual.
Tudo tem funcionado mal, desde a própria aplicação, aos dados que os médicos têm de fornecer para o utilizador marcar na sua posição, a obrigatoriedade, a liberdade, a invasão, os direitos… tudo se tem discutido excepto os danos que esta discussão está a causar massivamente.
É quase um retrato do que acontece com a importância que os portugueses dão à sua saúde mental. Discute-se tudo de forma acesa, menos o problema. As trancas depois da porta arrombada. As politiquices e os favores em vez de um programa que nos trate da saúde. Programa, aliás, já feito mas que parece que não tem dinheiro nem a autonomia que urgentemente precisa, por tod@s nós. Mas isso continua noutros lados.
Não tenho solução para o que é agora o problema SAC. Nem toda a gente tem smartphones e muitos que os têm não sabem o que é uma app, quanto mais instalá-la e usá-la. O fosso entre a população que tem telefones compatíveis com a SAC e os restantes vai afectar psicologicamente os menos “afortunados” (será que o são, neste caso particular?).
Após a primeira vaga, percebemos que nem todos os alunos têm computador ou Internet em casa. Contudo, nada se fez para alterar essa diabólica injustiça. E agora, que vão ter de regressar a casa para estudar em casa (sim, mais cedo ou tarde o país será confinado), o problema mantém-se e agrava-se.
O problema da app StayAway Covid é apenas mais um num país impreparado para tratar os seus. E este é bem maior que “apenas” uma questão psicológica.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Ana Pinto Coelho-
É a directora e curadora do Festival Mental – Cinema, Artes e Informação, também conselheira e terapeuta em dependências químicas e comportamentais com diploma da Universidade de Oxford nessa área. Anteriormente, a sua vida foi dedicada à comunicação, assessoria de imprensa, e criação de vários projectos na área cultural e empresarial. Começou a trabalhar muito cedo enquanto estudava ao mesmo tempo, licenciou-se em Marketing e Publicidade no IADE após deixar o curso de Direito que frequentou durante dois anos. Foi autora e coordenadora de uma série infanto-juvenil para televisão. É editora de livros e pesquisadora. Aposta em ajudar os seus pacientes e famílias num consultório em Lisboa, local a que chama Safe Place.