Eram onze da manhã e ouvi, do quarto onde trabalho, a campainha. “Deve ser o correio e, sinto, finalmente chegam os diários da Sylvia Plath que comprei online há duas semanas”, pensei. Salto da cadeira, abro a porta a correr e confirmo: são os diários da Sylvia Plath. Quando penso na poeta, que morreu cedo de mais (neste caso, que viveu o tempo que sentiu que conseguia viver), todas as peças da sua não-muito-extensa obra me me fazem querer perceber melhor o seu sentido. Até os encomendar, era isso mesmo que estes diários representavam para mim: uma chave para melhor entender The Bell Jar ou Ariel. E, claro, para melhor conhecer Plath.
Passei o dia a olhar de longe a capa e a imaginar o que esconderia o livro; que novas peças nesta minha relação com Plath surgiriam no primeiro encontro com a leitura. Quando finalmente me sentei a ler, dei por mim a questionar até que ponto era justo entrar assim na intimidade de uma pessoa que não me é nem nunca me foi nada, mas que ao mesmo tempo me é tanto. A escrita de Sylvia Plath, como já expliquei várias vezes a amigxs que me pediam conselhos de leitura, é eletrizante, hipnótica, percorre o corpo e obriga a ficar. É como se - também já lhes disse - “ela entrasse na nossa cabeça, ou nós entrássemos na dela”. Tudo através das palavras.
Este momento de introspecção recordou-me do que senti quando, há uns tempos, soube da publicação de Les Inséparables, um romance de Simone de Beauvoir que parte da sua relação com Elisabeth Lacoin. O motivo de não ter sido publicado mais cedo foi ser considerado “demasiado íntimo”. O que me levou a questionar, quando é que a intimidade pode oficialmente ser pública, afinal? Há um momento em que a obra se torna maior do que o autor e, por isso, deve ser publicada? Talvez.
Sem nos apercebermos, tornamo-nos proprietários à força de vidas que não nos pertencem, damos-lhe uma continuidade e sentimo-nos no direito de fazer o que delas quisermos. Por vezes, de mais. Publica-se o que não era público porque “a obra se tornou maior do que quem a escreveu”, fazem-se suposições da sua interpretação e revisita-se o passado para recontar, aos olhos da realidade atual, uma possível versão histórica.
Contudo, a tentação de obedecer aos critérios do presente, mesmo que, com boas intenções, força o risco de se dar a conhecer uma narrativa a-histórica e que, no limite, não dá espaço para que se possa conviver com os contextos históricos em que determinadas pessoas escreveram o que escreveram. Conviver e respeitar o tempo da História permite não nos esquecermos dela e previne uma queda na alienação.
Não foi o caso da coleção literária recentemente divulgada pela Women’s Prize for Fiction e a Baileys: Reclaim Her Name. A premissa é fazer justiça reclamando o nome original de autorxs que assinaram com pseudónimo masculino “porque se viram obrigadas” e, numa primeira instância, parece promissora. Como se só hoje, que felizmente é possível, pudessemos e devêssemos dar a conhecer a verdadeira identidade, escondida pela máscara patriarcal. Se em alguns casos faz sentido este “reclamar” de um nome de batismo, porque o pseudónimo masculino surgiu como única hipótese de entrar num mundo literário habitado (e abafado) por homens, os contextos de George Eliot (Mary Ann Evans) e Vernon Lee (Violet Paget) dão a ver que olhar para xs 25 autorxs de igual forma é redutor. No caso de Eliot, o pseudónimo foi sendo utilizado ao longo da sua vida literária por opção da própria - que, inclusive, chegou a reforçar a vontade numa carta endereçada ao seu editor -, e no caso de Lee, o nome de batismo era rejeitado tanto na obra, como na vida.
Sobre o patriarcado ter uns braços demasiado grandes, não existem dúvidas — esconde-se até nos detalhes mais ínfimos da forma como nos relacionamos com x outrx. Não devemos é ceder, ficar na iminência de, na procura pela justiça e motivadxs por valores que prezam a igualdade, ignorarmos o que x outrx queria ser. Ou o que era, simplesmente. E se Vernon Lee quisesse, efetivamente, ser Vernon Lee? A resposta é: queria mesmo.
Vernon Lee não nos pertence, George Eliot não nos pertence, Sylvia Plath não me pertence. A tua poeta favorita não merece que te sintas no direito de a levar onde não queria ir. A tua poeta favorita não te pertence.
-Sobre Carolina Franco-
A Carolina Franco é jornalista no Gerador. Nascida no Porto, em 1997, aprofundou o seu interesse e conhecimento na cultura e na arte enquanto estudou na Escola Artística de Soares dos Reis. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona do Porto, viveu quatro meses em Ljubljana, na Eslovénia, onde teve a oportunidade de ser envolvida pela cultura pós-jugoslava e estudar Ciências Sociais. Entre 2018 e 2019 frequentou a pós-graduação em Curadoria de Arte da Universidade Nova de Lisboa – FCSH. Graças a estas experiências, tornou-se mais interessada no papel da cultura na sociedade em geral e nas comunidades locais – uma relação que procura aprofundar cívica e profissionalmente.