Os museus transformam as pessoas e as pessoas transformam os museus
“Nada está completo se não for diverso”[i], refere Sade Brown (2019) na inspiradora conferência onde convoca a sua experiência pessoal para mostrar o valor da diversidade na comunicação e gestão cultural e para reforçar que a governança exige representatividade por razões de transparência, igualdade e justiça. Da mesma forma, também nos museus a heterogeneidade das equipas e dos públicos é crucial para assegurar que os temas e os bens culturais são abordados com sensibilidade e abertura a perspetivas divergentes.
Para cumprir o objetivo de diversificar os públicos e de lhes dar voz, os museus podem ultrapassar academismos e expor também narrativas pessoais (os que já o fazem provam o sucesso desta abordagem). Mais do que o saber científico, as estórias pessoais motivam e interessam, comovem e detêm um poder que não pode ser desvalorizado nos discursos museais. Com isto, pretendo enfatizar que são também as pessoas, os cidadãos, quem pode determinar o que faz do museu um lugar especial. É porventura da sua voz que os museus necessitam para descobrir o que é relevante e necessário para todos.
Na últimas décadas surgiu ainda um outro aspeto importante de mencionar na forma de relação dos museus com os seus públicos, que se prende com o facto de estes últimos já não serem vistos apenas como “beneficiários”, mas antes como “cocriadores”, colaborando com os museus em várias frentes e áreas de ação, contribuindo de formas variadas para o enriquecimento do conhecimento das coleções e do património.
Por certo, tudo indica que o elemento distintivo dos museus na próxima década seja o seu papel na mediação cívica: na educação, na consciencialização para o envolvimento e a participação dos cidadãos na sociedade (incluindo aqueles que até agora ficaram à porta ‑ os grupos vulneráveis, que se sentem ou foram excluídos), e na partilha com os visitantes do seu “lugar de fala”, não subalternizado mas humanizado.
Passar à prática
O compromisso de impacto social dos museus é um pacto participativo que serve a finalidade de transformação social à luz do que se revela “ser melhor” para o coletivo, com base na consulta às comunidades e num processo de construção inclusivo, desde o diagnóstico à avaliação.
Com efeito, não haverá mudança nas instituições se os objetivos e os comportamentos forem os mesmos, se os agentes pensarem da mesma forma, se não tiverem capacidade para se renovar e abordar os temas que ultrapassam as próprias coleções. A verdade é que, passados 48 anos da Declaração de Santiago do Chile, que apela à ação e defende um Museu Integral, vincando a importância da função social dos museus e a responsabilidade política do museólogo, verificamos que a praxis museológica tem sido marcada por resistências sucessivas à reconfiguração de práticas, não obstante as bem sucedidas experiências levadas a cabo localmente.
No século XXI, o movimento de transformação social dos museus exige maior vitalidade e diversidade, mais investimento e autonomia na gestão. A ação pede a negociação das estratégias com as equipas e com os parceiros, o foco nos resultados, o estabelecimento de metas que sejam revistas regularmente, a apresentação de indicadores de sucesso (qualitativos e quantitativos) que ajudem a monitorizar e a avaliar os projetos, considerando as perceções das comunidades de destino e a forma como estas são envolvidas e “tocadas” por esse impacto.
Para se conectar com o seu tempo, os museus podem (e devem) chamar outras vozes que convocarão novas premissas e criarão novos desafios. Hoje, passar à prática implica correr riscos, tomar posições, implementar alterações mais profundas de orgânica e de posicionamento, agir com humildade, assumindo que o momento que vivemos apela a prioridades distintas e requer consequências expressas nos compromissos e nos processos[ii].
Acender chamas
Os museus sabem acender chamas, desencadear os processos que levam à construção de conhecimento e que habilitam a transformação do indivíduo, encorajando-o a participar, libertando-o, como refere Paulo Freire. Os museus têm hoje uma enorme responsabilidade social, que também é política, e podem evocá-la como mote para se tornarem agentes fundamentais no desenvolvimento da sociedade:
- Reconhecem que o seu impacto é medido na relação com os públicos, e não públicos, na forma como reagem aos problemas e às crises, como transformam fraturas em territórios comuns.
- Dignificam o que os distingue de outras instituições: as suas coleções, testemunhos, conhecimentos, estórias e memórias, usando-as para inspirar, gerar empatia ou motivar relações positivas com a diferença cultural.
Tudo isto faz dos museus locais únicos para nutrir de esperança os que defendem os valores e o papel das artes e do património na democracia cultural. Esforcemo-nos ainda por abraçar plenamente estes valores e edifiquemos nos museus Ágoras, espaços de aprendizagem, participação e cidadania.
[i] Sade Brown na conferência do IETM, em Hull (Março 2019): What did you have to leave at the door in order to show up today? Acessível em https://youtu.be/6zrjbtboMsM?t=1293
[ii] A Filarmónica de Nova Iorque, no dia 19 de Junho de 2020 (data que celebra a abolição da escravatura nos EUA, 1865), deu um primeiro passo e publicou um "compromisso de mudança", no qual reconhece que tem "muito a aprender historicamente sobre a história do racismo na nossa nação" e afirma que irá implementar "programas para amplificar as vozes de artistas, compositores e da comunidade negra". Reconhecem que este será um longo processo, mas que terá início imediatamente e que envolverá programação para emprego, governação, performance, educação e parcerias comunitárias. No contexto atual, um compromisso público é muito mais importante do que uma carta de solidariedade ou um ecrã negro afixado no feed dos meios de comunicação social.
[i] Sade Brown na conferência do IETM, em Hull (Março 2019): What did you have to leave at the door in order to show up today? Acessível em https://youtu.be/6zrjbtboMsM?t=1293
[ii] A Filarmónica de Nova Iorque, no dia 19 de Junho de 2020 (data que celebra a abolição da escravatura nos EUA, 1865), deu um primeiro passo e publicou um "compromisso de mudança", no qual reconhece que tem "muito a aprender historicamente sobre a história do racismo na nossa nação" e afirma que irá implementar "programas para amplificar as vozes de artistas, compositores e da comunidade negra". Reconhecem que este será um longo processo, mas que terá início imediatamente e que envolverá programação para emprego, governação, performance, educação e parcerias comunitárias. No contexto atual, um compromisso público é muito mais importante do que uma carta de solidariedade ou um ecrã negro afixado no feed dos meios de comunicação social.
– Sobre Sara Barriga Brighenti –
Museóloga, formadora e programadora nas áreas da educação e mediação cultural. É subcomissária do Plano Nacional das Artes, uma iniciativa conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação. Coordenou o Museu do Dinheiro do Banco de Portugal e geriu o programa de instalação deste museu. Colaborou na elaboração de planos de ação educativa para instituições culturais. É autora de publicações nas áreas da educação e mediação cultural.