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Afrossurrealismo e Afrofuturismo: a representação artística de uma sociedade inclusiva

Os conceitos de afrossurrealismo e afrofuturismo surgiram no âmbito da luta antirracista e da afirmação da negritude. Caracterizados como “movimentos de rutura que transcendem as categorias do pensamento ocidental”, colocam a comunidade negra como protagonista nas várias áreas da sociedade, sejam as artes, a ciência ou a tecnologia. Com estes movimentos especulativos, espera-se a construção de um mundo mais inclusivo, onde as pessoas não sofrem discriminação, nem veem as suas tradições suprimidas da história.

Texto de Mariana Moniz

Desfile do BSAM Brasil na Brazil Immersive Fashion Week. Fotografia da cortesia da BSAM Brasil

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[Este artigo é a continuação de uma reportagem publicada a 24 de fevereiro 2023]

O Movimento das Artes Negras Especulativas e a (re)construção do Futuro

O Black Speculative Arts Moviment (BSAM), ou, em português, Movimento das Artes Negras Especulativas surgiu em 2015, resultado da exposição “Unveiling Visions: Alchemy of The Black Imagination”, com curadoria de John Jennings e Reynaldo Anderson, em Nova Iorque. Nessa exposição foram apresentadas ilustrações, obras de design gráfico, obras literárias, pósteres e obras de arte digital de 87 artistas emergentes.

Unveiling Visions propôs uma análise da cultura visual em torno de vertentes artísticas como o afrofuturismo, a ficção científica, a banda desenhada, o realismo mágico e a fantasia, de forma a examinar “o poder que a criatividade exerce na luta por várias liberdades de expressão e políticas de resistência”. A partir da exposição, foi criada uma rede global de “criativos, intelectuais e artistas que representam as diferentes posições ou bases de investigação”, onde se inclui o afrofuturismo e o afrossurrealismo.

A Arte Negra Especulativa é “uma prática criativa e estética que integra as visões do mundo da diáspora africana” e que “procura interpretar, envolver, projetar ou alterar a realidade” ao (re)imaginar o passado, contestar o presente e atuar como um catalisador para o futuro. Isto é, faz-se uma especulação de como seria a vida da comunidade negra se os processos coloniais não tivessem acontecido e se a sua identidade não fosse definida de acordo com os ideais eurocêntricos.

No Brasil, a rede é coordenada pela artista, curadora de arte digital e cientista, Zaika dos Santos. A BSAM Brasil surgiu em 2020 e reúne 150 membros de todo o país. Estes dividem-se em grupos de seis áreas diferentes: Artes Visuais/Digitais, Literatura, Música, Pesquisa, Tecnologia e Moda. Entre as suas atividades principais destacam-se as “convocatórias públicas, sem critério de escolha de novos membros, de maneira a democratizar um ciclo de convivência, troca e oportunidades em circuitos de exposição, publicações, práticas formativas, transmissões virtuais, intercâmbio cultural, projetos de pesquisa no âmbito global, workshops e palestras”.

Zaika dos Santos. Créditos: Nôk é Nagô

Zaika dos Santos tem 34 anos e nasceu em Belo Horizonte, no Brasil. Numa videochamada, conta-nos que sempre foi apaixonada “por cosmologia e pela ideia de sonho enquanto previsão de futuros”. Decidiu então iniciar uma pesquisa em “afrotecnoculturas”, de forma a perceber como seria a cultura da tecnologia e os estudos culturais do desenvolvimento tecnológico dentro da história de africanos e afrodescendentes. “O futurismo nasce de uma vanguarda artística e hegemónica que se desdobra em diversos movimentos de tecnologia. Enquanto narrativa de surgimento conceptual, ele não envolve pessoas negras. É um conceito fascista”, começa por explicar.

Zaika estuda todos os movimentos especulativos negros, pois acredita que cada um tem o seu próprio significado e que nem todos se identificam como afrofuturistas. Na nossa entrevista, esclarece que o “afrofuturismo é um conceito que parte das afrotecnoculturas e que trabalha a arte, a ciência, a tecnologia e a inovação africana e afrodescendente. O objetivo é trazer a participação dos africanos para o processo da História”.

Para a artista, os movimentos especulativos negros são “uma tentativa de evolução de novos conceitos”, sendo que todos partem de uma única ideologia: o afrocentrismo. Por sua vez, Zaika cunhou o termo “afrofuturalidades” para se referir aos diversos movimentos especulativos (afrofuturismo, afrossurrealismo, entre outros) e esclarecer que, ainda que estes defendam ideias distintas, podem coexistir em diversos lugares conceptuais, seja na ciência, nas artes ou na tecnologia.

"Especule o Universo Expandido". Trabalho de Zaika dos Santos

O que distingue os diferentes movimentos especulativos negros é a produção de sentido. “É o artista que determina qual vertente quer trabalhar”, clarifica. “Cada um de nós tem o seu projeto individual, mas não deixamos de ser um coletivo. O BSAM permite que todos possam trabalhar o afrofuturismo da forma que entenderem. Que procurem a ancestralidade da forma que entenderem. Existe demasiada diversidade! Não é possível delimitar um único conceito para descrever o nosso trabalho”.


O Gerador entrevistou, via email, um membro de cada área do BSAM Brasil. Danilo Celso começa por falar de Tecnologia e da evolução do seu trabalho enquanto afrofuturista. Em 2022, terminou a sua licenciatura em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Minas Gerais, localizada na cidade de Belo Horizonte. “Eu me considero um criativo, gosto muito do que se refere ao processo de projeto, criação, arte e desde cedo tive um interesse muito grande em saber como a arquitetura responde aos problemas da sociedade e como ela representa a identidade dos povos”.

O seu interesse nas novas tecnologias surgiu como resposta aos problemas da sociedade no que toca à sua “experiência diária, seja ela dentro das suas casas ou no ambiente urbano”. Para Danilo, “imaginar e produzir soluções para este “agora”, utilizando o conhecimento da ancestralidade e relacionando-o com as tecnologias que estão disponíveis hoje, também é um ato afrofuturista, pois trata-se de considerar e trabalhar para a existência das populações pretas no futuro”.

"Black to the Future" de Danilo Celso. Técnica: Colagem digital e realidade aumentada
"Sem título" de Danilo Celso. Técnica: Modelagem 3D e renderização

Escolheu trabalhar com afrofuturismo, pois sentiu a necessidade de reconstruir na nossa sociedade, especialmente na população da diáspora africana, “o potencial da imaginação e da especulação […], o que, por sua vez, pode surgir através “da pesquisa, do esforço criativo e da descolonização da tecnologia”.

Revela-nos que gosta “de falar sobre religiões de matriz africana, no que diz respeito aos costumes, tradições, vestuário, metafísica […]. No campo da tecnologia, tem procurado imaginar “como podemos utilizar as novas tecnologias (inteligência artificial, internet das coisas, realidade expandida, blockchain) para o impacto social”. Em 2021, publicou a sua primeira novela, intitulada Os Fantasmas da Rua Sete. “O livro traz algumas reflexões sobre a relação homem-máquina, sendo estas reflexões pautadas por valores da cultura Yorubá [grupo étnico-linguístico da África Ocidental] acerca do tema vida após a morte”.


Gabriel Cardoso, ou GC, descobriu o afrofuturismo através da cultura cyberpunk e, atualmente, aplica-o na área da Arte Digital. Admite que, ao trabalhar com o movimento, encontrou o seu verdadeiro lugar. “É algo que eu vivo, algo que está em mim, então não tem como eu dizer que decidi [trabalhar com afrofuturismo]. Eu simplesmente sou essa vertente. Um rapaz preto usando de tecnologia para hackear o sistema e assim sobreviver”.

GC. Créditos: Raisa Coriolano

GC utiliza apenas o seu telemóvel para criar as suas obras de Arte Digital. Entre os temas que desenvolve, encontra-se a “capacidade intelectual” de o ser humano se adaptar às diferentes inovações tecnológicas e ao ambiente onde vive. “O conceito de ter um visor sobre o rosto ligado ao córtex cerebral tem uma duplicidade [dualidade]”. Ora uma pessoa “usa o visor para aumentar suas capacidades de ver o mundo de uma forma mais detalhada ou mais definida”, ora usa-o “para esconder sua identidade do mundo ou até mesmo tapar seus olhos para o mundo”.

Revela-nos que o afrofuturismo lhe “salvou a vida”, pois o mesmo surgiu na altura da pandemia da Covid-19. “Nunca esqueço das inúmeras vezes que chorei e me desesperei por não poder sair de casa para trabalhar, mas lembro com amor de todas as vezes que derramei lágrimas de alegria por ter passado no meu primeiro projeto, o qual me deu a chance de comprar um novo telemóvel e assim produzir mais artes que se materializariam em uma exposição dentro da minha comunidade”.

"Sem título" de GC
"Sem título" de GC
"Sulah" de GC

Falámos também com o jornalista, investigador e poeta Gabriel Rodrigues. Atua na área da Pesquisa no BSAM Brasil e tem procurado investigar o modo como “os movimentos coletivos negros estão a apropriar-se das tecnologias digitais para ampliar os seus discursos no enfrentamento [confronto] com as narrativas hegemónicas”.

A pesquisa e a investigação dos movimentos especulativos negros é, para Gabriel, de extrema importância. “Por muito tempo, a representação de pessoas negras esteve atravessada por uma leitura colonizada, marcada por uma perceção animalesca e exótica”, clarifica. “Desenvolver conceitos que rompam com as gramáticas eurocêntricas, põe em circulação um outro cenário de disputa de narrativas muito mais complexo. Além disso, torna possível rememorar que esses lugares sempre foram significativos e valorizados na cultura africana, a exemplo da África Clássica, em civilizações que antecedem o período colonial”.

Assume que sempre foi “sensível às múltiplas linguagens, sobretudo a oralidade e a escrita. É através da poesia que, muitas das vezes, planto minhas inquietações para que floresçam, em outras mentes, respostas que não consigo encontrar. Adentrar ao campo do Jornalismo, talvez, só tenha reforçado a importância disso em minha vida. Seja através da ginga [remo] que embala o nosso corpo-espírito ou através dos métodos de pesquisa científica, vejo-me atravessado pela circularidade do tempo. É onde reconheço a força do afrofuturismo para a continuidade do povo africano e das tecnologias ancestrais de cura e emancipação”.


Para falar de Moda, o Gerador contactou a trancista Gabriela Azevedo. CEO do projeto sócio cultural “Trança Terapia”, é também membro do BSAM Brasil, produtora de eventos, ativista social e líder comunitária.

Gabriela Azevedo enquanto trança. Fotografia da sua cortesia

“As tranças são ferramentas principais quando se trata de identidade cultural afrocentrada. Além de uma forma de comunicação, carregam muitos conhecimentos holísticos, entre eles: etnomatemático [conjunto de formas de matemática que são específicas de grupos culturais], espiritual, científico, geográfico, entre outros”. Para Gabriela, “não adianta somente respeitar nossa cultura. É necessária admiração para que existam oportunidades iguais para todes. Essa admiração só irá existir através do conhecimento, da desconstrução do racismo estrutural e do contacto do mundo com a cultura negra”.

Desfile do BSAM Brasil na Brazil Immersive Fashion Week. Penteado criado por Gabriela Azevedo
Desfile do BSAM Brasil na Brazil Immersive Fashion Week. Penteado criado por Gabriela Azevedo

Kinaya Black trabalha com a área da Literatura na BSAM Brasil. À semelhança da poetisa Stephanie Borges, Kinaya sempre gostou de ler. Contudo, também se deparou com o facto de as personagens dos livros que lia não se parecerem consigo. “[Decidi reescrever] as cenas das histórias, me colocando ali como personagem, mas na verdade eu queria poder existir naquelas histórias”. Atualmente, gosta de escrever sobre o seu território, a região ou a cidade em que vive, “sempre com um toque de romance, pois o amor entre pessoas negras deve ser evidenciado devido ao longo processo de destruição familiar que vivemos em nossa História”.

Entre as suas obras, destacam-se Versos livres, como nós; Eu conheço Uzomi; e Te Encontro no Futuro.  O primeiro “é um livro de poemas baseado na experiência negra de mulheres e não foi pensado para ser algo afrofuturista. Foi o meu primeiro livro e alguns poemas possuem uma temática sobre futuro negro e passado. Isso poderia caracterizar o livro como afrofuturista, mas esse não era o foco da época. Porém, os outros dois são afrofuturistas, por serem narrativas com protagonistas negros e do ponto de vista narrativo negro, além de se passarem no futuro (o que hoje pode não ser um requisito para ser afrofuturista). As duas histórias se passam no mesmo universo, um universo que estou construindo aos poucos e que eu pretendo ampliar cada vez mais”.

Kinaya Black. Fotografia da sua cortesia

Formado em Tecnologia de Produção Fonográfica e pós-graduado em Matriz Africana, Adeniran Balthazar é um dos responsáveis pela vertente da Música no BSAM Brasil. Fez um curso livre em Laboratório de Criação Musical e está ligado “às atividades da banda MENEIO e a projetos culturais voltados para a produção musical”.

O seu gosto pela música desenvolveu-se em contexto familiar. Quando era criança, frequentava os ensaios de um bloco de canto e percussão afrobrasileira (Bloco Afro), onde o seu pai cantava. O seu avô e o seu pai também tocavam em orquestras e bandas de música popular, em Campinas. A sua família materna foi, durante muitos anos, responsável pelo coro Maria das Neves Balthazar. “Então, quando fiz amizades também interessadas em música, comecei a investigar a história dessa arte e da produção musical mais a fundo e decidi encontrar formas de seguir por este caminho”.

Embora aborde “estranhezas e linguagens experimentais” nos seus projetos, o que o faria aproximar-se da corrente do afrossurrealismo, Adeniran trabalha mais com o movimento do afrofuturismo, que é uma das suas principais inspirações, e o seu foco costuma estar na “exploração tecnológica do fazer artístico, sendo este principalmente musical e audiovisual”.

Adeniran Balthazar. Fotografia da sua cortesia

Gosta de trabalhar com experiências, algo presente tanto nos improvisos do free jazz, quanto nas rimas da capoeira e em produções de música eletrónica. “Creio que o experimental é um lugar de conexão, com um fazer artístico presente, no qual produção, execução, performance e pós-produção se confundem, formando uma obra por si só. É também um momento de vazão para que o subconsciente se manifeste e expresse uma visão atípica do quotidiano, menos pautada na racionalidade e na divisão dos elementos que compõe uma pessoa, e mais na absorção e na interpretação de tudo o que entendemos que compõe o mundo”.

Em termos mais técnicos, prefere trabalhar com “repetições rítmicas, dissonâncias, claves e sonoridades percussivas”, uma vez que “reconhecer as raízes destes elementos, e como eles se apresentam na cultura popular, são alguns dos elementos centrais na descolonização do conhecimento musical ocidental”.

Para o músico, o afrofuturismo e o afrossurrealismo tornam-se uma manifestação social no âmbito da luta antirracista, ao entender que “fomentar vozes e visibilidades é essencial para a autoestima de uma população”. Segundo Adeniran, a arte acaba “por se tornar mais um meio de transformação social”. Na sua opinião, “os melhores exemplos disso são as ações que se formam em torno do Hip-Hop e da cultura popular em diferentes cantos do Brasil”.


Por último, conversámos com Regina Elias da Costa, artisticamente conhecida como Soberana ZIZA. É licenciada em Design de Moda e Artes Visuais, e pós-graduada em Gestão Pública. Dedica-se a investigar “os significados e histórias milenares transmitidos através das estampas e padrões presentes nos tecidos africanos, conhecidos como Capulanas, e que em diversos países também recebem os nomes de bogolan, kente, adinkras, entre outros, e inserir estes saberes em murais de arte urbana”.

Tendo estudado Moda, sempre teve interesse em entender “a comunicação milenar que existe no grafismo dentro dos têxteis africanos. Com essa pesquisa entendi que cada têxtil é distinto [especifico] de um povo e cada um tem sua técnica de estampar, pigmentar e registar as suas histórias. Dentro desses têxteis está registado a história de cada povo, então os tecidos contam histórias”.

Soberana ZIZA. Créditos: Fotografista

ZIZA considera que “a rua é um lugar democrático. Infelizmente, não é todo mundo que consegue ir a uma exposição ou museu para absorver essas importações. Utilizo das ruas para multiplicar esses conhecimentos”, esclarece. A sua obra “Mural Ancestralidades”, no Rio de Janeiro, é uma obra afrofuturista. “Fala sobre a comunicação, questiona as formas de transmissão das histórias, destaca a importância dos têxteis africanos como forma de guardas à história de um povo, e coloca em protagonismo a circularidade feminina na multiplicação das informações. Esse questionamento possibilita uma transformação nas próximas gerações”.

Recorre ao afrofuturismo para “reescrever” as histórias das mulheres negras e elaborar uma pesquisa estética sobre Negritude e feminismo.

Ainda que cada membro do BSAM viva a sua área de expressão artística de forma diferente, o grupo tem sempre uma ideologia em comum bastante presente: o cultivo e o resgate de tradições africanas. “Estamos a reconstruir o que nos foi apagado. As ideias universais que não nos incluem. Estes movimentos não existem apenas no âmbito da luta antirracista. Eles existem para que haja uma ampliação do conhecimento universal”, acrescenta Zaika do Santos.

A artista explica-nos ainda que o conceito de modernidade está muito atrelado ao processo da escravidão forçada de africanos e afrodescendentes. Deste modo, ao estudarem os processos de colonização, o afrossurrealismo e o afrofuturismo também constituem uma ligação importante com Portugal.

Portugal, Pan-africanismo e Relações Internacionais

Apolo de Carvalho é mestre em Relações Internacionais e doutorando do Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e considera que os diversos movimentos especulativos se inserem na vertente do o pan-africanismo.

Considera importante a ligação que Portugal tem com o Brasil, pois “o Brasil funciona como uma grande biblioteca pan-africana que tem alimentado várias geografias de luta, inclusive Portugal. Em termos de luta antirracista, como o feminismo negro, por exemplo, essa massa de imigração do Brasil tem alimentado o nosso vocabulário e as nossas estratégias de luta”.

Ao ter estudado Relações Internacionais, percebeu que, dentro das mesmas, “conseguimos ver mangas de poder mais evidentes e que existem muitas exclusões. As relações internacionais nascem de um processo de exclusão completa de África e foi a divisão do continente, em 1884-1885, que fundou a nossa ordem internacional”, clarifica em entrevista ao Gerador.

Ao acompanhar o trabalho de alguns movimentos sociais negros em Portugal e em França, percebeu que os mesmos querem “romper com as fronteiras do Estado-Nação. Comecei a perguntar-me como podia fazer uma ligação entre os movimentos sociais, que rompem o Estado-Nação com a imigração, por exemplo, e trazer esses movimentos para as relações internacionais. Pensei logo no pan-africanismo”.

O termo pan-africanismo foi cunhado em 1900, numa conferência em Londres, e serviu para refletir a situação de África e da comunidade negra no mundo. “Surge como movimento social, dentro de um contexto internacional, para pensar a própria organização do mundo e a posição de África neste sentido”, afirma. Conhecer o pan-africanismo permitiu a Apolo “conhecer uma história diferente da experiência negra no mundo, no âmbito das relações internacionais, uma vez que, quando a questão negra e africana é mencionada, mencionam-se apenas os Estados falhados ou colapsados”.

Apolo investiga o trabalho de três movimentos que estão ativos em Portugal, no Brasil e em Cabo Verde. Em Portugal, trabalha com um grupo de mulheres que faz batuque cabo-verdiano. As Banderinhas. “Essas mulheres batucadeiras são empregadas domésticas e têm uma forma de escrita das suas letras muito política. Mesmo sem usarem os termos “pan-africanismo”, “relações internacionais” ou até mesmo “Estado-Nação”, elas refletem de uma forma muito disruptiva sobre esses conceitos. O próprio batuque é uma forma de penetrar ou de quebrar as fronteiras do Estado-Nação, devido à questão da língua e da mensagem político-poética que veicula. Elas cantam apenas em cabo-verdiano. Para mim, isso é pan-africanismo na prática”.

No Brasil, o seu foco é a União dos Coletivos Pan-africanistas. Um movimento que se dedica à produção de conhecimento africano-centrado a partir da literatura, ao traduzirem várias obras da comunidade. Já em Cabo Verde, Apolo de Carvalho tem uma relação com o movimento federalista pan-africano “que tem feito um trabalho muito interessante, não só na questão da quebra de fronteiras, mas também na introdução de referências, como Amílcar Cabral, dentro da geografia cabo-verdiana”.

“À primeira vista não parece, mas todos esses movimentos estão a pensar as relações internacionais”, aponta. “O pan-africanismo é um movimento internacionalista. As mulheres batucadeiras não utilizam os termos capitalismo, patriarcado, colonialismo e imperialismo, mas tudo isso está presente no seu trabalho. É incrível a forma como as palavras viajam e assumem outras formas de as dizer”.

Para Apolo, “não há nada neste mundo que possa ser falado sem termos referência a dois momentos do passado: a escravatura e a colonização”. Segundo ele, o sistema económico-político dos dias de hoje foi moldado, quer queiramos quer não, por esses dois eventos. “Esse apocalipse já aconteceu e nós temos que lidar com isso. E os afrossurrealistas têm uma forma muito interessante de lidar com isso no agora”.

O facto de os termos afrofuturismo e afrossurrealismo se encontrarem dentro do Movimento das Artes Negras é interessante para Apolo, pois “dá-nos conceitos para trabalhar e uma certa intangibilidade. Mas eu, enquanto pan-africanista, considero que esses conceitos são muito desperdiçados. O pan-africanismo é um termo que nós, pessoas negras, criámos. E não se relaciona apenas com a questão antirracista, também se relaciona com as questões do imaginário radical negro, da espiritualidade negra”. Com esta afirmação, Apolo refere-se ao facto de os conceitos de “surrealismo” e até “afrofuturismo” terem sido cunhados por pessoas brancas. Daí a comunidade negra continuar a debater-se com determinadas questões de autoria e afirmação.

Ainda assim, Apolo de Carvalho considera o pan-africanismo como um movimento futurista, pois existe uma “futuridade” que está emprenhada na ancestralidade do próprio pan-africanismo. “Isto é interessante porque grandes pan-africanistas, como Julius Nyerere [ex-presidente da Tanzânia], utilizaram o termo “ujamaa” para falar da forma como, após a colonização, o povo da Tanzânia podia reinventar-se. Não falou de futuro mecânico e industrial, falou das tradições e da cultura. Ou seja, a própria ancestralidade africana já estava cheia de futuridades”.

Conta-nos que, em 2013, surgiu a ideia de que África estaria a ter um grande crescimento económico, detendo assim “o futuro do mundo”. Segundo o doutorando, “o capitalismo já capturou o futuro e nós temos que disputar essas futuridades. A ideia de que o futuro se encontra em África é uma ideia perigosa, pois há todo o interesse nos nossos recursos. Tudo isso leva a que ainda sejamos vistos como matéria prima. O pan-africanismo avisa-nos sobre isso, avisa-nos que os nossos inimigos ainda continuam vivos, que existe o neocolonialismo e que temos de nos proteger”.

A noção do que é o desenvolvimento também pode trazer consequências negativas para a evolução destes movimentos especulativos negros. “Temos de ter em consideração que existem vários movimentos. O afrofuturismo pensa numa estética, numa projeção que pode ser muito problemática. Apesar de ser um conceito político, utiliza “as armas do mestre”, ou seja, a tecnologia capitalista que surgiu graças à escravatura. Se mudarmos completamente a nossa noção de desenvolvimento e percebermos que temos tecnologias ancestrais com utilidade para o nosso quotidiano, se calhar até somos mais aptos a ter um futuro libertador”, assegura.

Posto isto, Apolo defende que o conceito de desenvolvimento foi criado num “contexto capitalista e imperialista”, o que, por sua vez, “acabou por originar standards de desenvolvimento” que colocaram os países africanos numa “eterna” situação de subalternidade. Nos anos 70, os programas de reajustamento estrutural obrigaram os países africanos a “apertarem com a população economicamente para lhes ceder a democracia. Ou seja, em detrimento de um suposto desenvolvimento”.

Tanto o afrofuturismo como o afrossurrealismo, e todos os outros movimentos que se foram criando, têm uma raiz comum: “a Negritude e a questão de África”. Apolo salienta ainda que “África não é apenas geográfica, é também imaginária. Para ele, a arte é das formas mais “sublimes” onde isso se pode verificar e o pan-africanismo responde a todas essas questões ao ser “uma totalidade cultural que engloba todas as afrotopias [utopia que propõe uma realidade africana onde todos estejam incluídos nas diversas áreas da sociedade, sem discriminação]”.

Em Portugal surgiram, igualmente, vários movimentos e artistas em defesa dos interesses da negritude na cultura. A “União Negra das Artes” (UNA) oficializou-se em abril de 2021, “com o intuído de dar a conhecer e defender os interesses e representatividade de artistas negros em diferentes áreas da cultura em Portugal e combater as profundas assimetrias que abalam o setor”.

Melissa Rodrigues é uma artista visual cabo-verdiana que costuma trabalhar com a vertente de afrofuturismo. Realizou a conferência-performance “De Submisso a Político – O Lugar do Corpo Negro na Cultura Visual” e, em 2020, no âmbito de uma residência artística realizada no ZK/U Berlin – Center for Art and Urbanistics, concebeu a videoperformance CORONAS IN THE SKY, Not a Manifesto! an Essay on Afrofuturism and Liberation. Chullage é um rapper português, de origem cabo-verdiana. Nos últimos anos decidiu criar um projeto “onde pudesse produzir as músicas para juntar o seu próprio multiverso sónico ao universo mais preto das suas letras”. Esse projeto intitula-se “PRÉTU” e é uma junção de referências africanas com as influências eletrónicas, onde o artista “expressa o seu pensamento sobre descolonização, pan-africanismo, afrofuturismo e amor”.

O afrossurrealismo e o afrofuturismo manifestam-se de forma diferente, mas ambas as vertentes procuram destacar e emancipar a comunidade negra, seja no mundo das artes, tecnológico ou científico. Em suma, tanto um como outro, manifestam-se no âmbito da luta antirracista e na procura pela eliminação das diversas formas de opressão que encontramos na sociedade. Apolo salienta que “se os movimentos artísticos não tiverem essa componente estética marcadamente política, ou seja, anticapitalista, antipatriarcal, anti-imperialista, serão apenas uma caricatura da branquitude e não estarão a construir nada. Para mim, pouco importa o termo que as pessoas usem. Se houver uma cultura de libertação total das pessoas negras, já será possível uma transformação social das estruturas económicas do mundo”.

Sou afrodescendente

afrodisíaca 

afrodiaspórica

afroconsciente  

afrofuturista

afroresiliente

afro não-condescendente

gostaria que a áfrica não fosse um prefixo inconsequente

que fosse um planeta em vez de um continente.

Poema “Planeta África” em “Ingenuidade, Inocência e Ignorância”, Raquel Lima (2019)

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