fbpx
Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Afrossurrealismo e Afrofuturismo: a representação artística de uma sociedade inclusiva

Os conceitos de afrossurrealismo e afrofuturismo surgiram no âmbito da luta antirracista e da afirmação da negritude. Caracterizados como “movimentos de rutura que transcendem as categorias do pensamento ocidental”, colocam a comunidade negra como protagonista nas várias áreas da sociedade, sejam as artes, a ciência ou a tecnologia. Com estes movimentos especulativos, espera-se a construção de um mundo mais inclusivo, onde as pessoas não sofrem discriminação, nem veem as suas tradições suprimidas da história.

Texto de Mariana Moniz

Fotografia de Jurien Huggins via Unsplash

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

O afrossurrealismo e o afrofuturismo como afirmação da negritude

Em 1910, a corrente artística do surrealismo surgiu como um movimento literário. Mais tarde, em 1924, o escritor e poeta André Breton ter-se-á inspirado no trabalho do psicanalista Sigmund Freud e nas tradições da ideologia marxista para publicar o Manifesto Surrealista. Neste documento constam os principais desígnios dos artistas do surrealismo na Europa, que, por sua vez, é descrito como “um automatismo da psique que permite compreender, através da expressão artística, realidades pessoais e civilizacionais”. A imaginação, o sonho, a alucinação e o subconsciente são as principais inspirações deste movimento para a representação de um mundo imaginário absurdo e com associações de ideias que aparentemente não têm significado.

Por sua vez, o termo futurismo foi cunhado pelo poeta italiano Filippo Marinetti em 1909. O seu Manifesto Futurista rejeita a ideia do passado e glorifica o futuro, exaltando uma sociedade industrial. Dentro das suas representações encontram-se as cidades, as máquinas, a velocidade e o ruído. Marinetti defendia que “um carro de corrida [era] mais belo do que a Vitória de Samotrácia [escultura grega]”, tendo depois complementado essa afirmação com outros radicalismos, tais como “as máquinas e os motores têm alma, pensam, sentem como os humanos” ou “uma lâmpada elétrica que pisca ameaçando apagar-se é comparável a um homem que agoniza”.

A estética futurista centra-se no dinamismo universal e na ideia de que “a obra de arte não pode ser estática porque nada o é”. A procura pela representação deste dinamismo conduziu os futuristas à diluição das formas, à justaposição de imagens e à decomposição da realidade em segmentos, criando assim uma amálgama de movimento, som e luz.

No âmbito da luta antirracista e da afirmação da Negritude, surgiram, mais tarde, dois movimentos culturais que procuraram trazer a representação da comunidade negra para o diálogo da emancipação artística: o afrossurrealismo e o afrofuturismo. Ambos surgiram em resultado dos discursos pós-coloniais e dos movimentos de defesa e salvaguarda dos direitos das pessoas negras, e o seu principal objetivo é propor determinadas mudanças no sistema, proporcionando mais oportunidades para esta comunidade, seja no mercado de trabalho, seja nos espaços culturais.

O termo “afrossurreal” surgiu em 1974, num artigo intitulado Henry Dumas: Afro-Surreal Expressionist, escrito por Amir Baraka. Este autor encontrou, nas obras do poeta afro-americano [Henry Dumas], “a capacidade de criar mundos semelhantes aos que conhecemos, porém, enquadrados num plano existencial completamente distinto do vulgar, de forma a manifestar um tipo de crítica social”.

Ainda que muitas das características do surrealismo europeu se manifestem na estética afrossurrealista, os movimentos diferem em vários aspetos, tanto na forma, como no conteúdo. “Nas palavras de Leopold Senghor, ex-presidente do senegalense, poeta, afrossurrealista e precursor do conceito de negritude: “o surrealismo europeu é empírico. O afrossurrealismo é místico e metafórico”. Isto é, o afrossurrealismo apela à libertação das convenções e dos preconceitos étnico-raciais através da diversidade de paradigmas culturais e com o objetivo de combater as assimetrias existentes no setor artístico.

“You are my sunshine”, de Wangechi Mutu (2015)

Em 2009, D. Scot Miller escreveu o Manifesto Afrossurrealista, no qual expressou a “necessidade de emancipação do movimento”. Neste artigo, Miller interpreta o afrossurrealismo como “uma revisitação do passado, através de uma ótica atual, que distorce a realidade com o intuito de provocar um impacto emocional”. Posto isto, os afrossurrealistas tendem a interpretar os aspetos do passado, avaliar e contestar as questões do presente, e catalisar diferentes configurações para o futuro. O seu foco principal é a Negritude, um movimento cultural pan-africano anticolonial, e a representação do presente, “aqui e agora”.

Atualmente, podemos identificar nuances da expressão afrossurrealista em várias áreas artísticas como a arte visual e digital, a música, o cinema ou a literatura.


Em 1994, Mark Dery apresentou o termo “afrofuturismo” no seu ensaio Black to the Future, defendendo que a comunidade negra também deveria estar envolvida nas diferentes inovações tecnológicas e culturais da sociedade.

Raquel Lima, poeta e doutoranda do Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, escreveu um artigo intitulado Afrofuturismo: A construção de uma estética [artística e política] pós-abissal. No seu trabalho descreve o afrofuturismo como “um movimento intelectual, um conceito, uma filosofia ou um género artístico transdisciplinar que combina afrocentrismo, fantasia, tecnologia, religião, espiritualidade e misticismo não ocidentais, numerologia, sátira, ficção científica e realidade virtual, para desafiar as representações estéticas sobre África […]”.

De acordo com Raquel Lima, “este fenómeno não respeita uma abordagem linear única às referências de tempo, espaço, identidades, histórias e políticas africanas, e tanto recorre à viagem no tempo para revisitar a história e recontá-la crítica e simbolicamente, como faz uso do escapismo através do qual se projeta num futuro utópico/distópico para especular sobre uma realidade da negritude que não tenha sido sujeita à opressão, racismo e estereótipos impostos pela cultura ocidental”.

Mark Dery, por sua vez, também descreve o movimento afrofuturista como uma forma de “reivindicar um passado histórico e reconfigurar o discurso e as narrativas de futuro”, neste caso, “através de elementos sci-fi, tecnológicos, científicos, mitológicos e futuristas”. Ao contrário do afrossurrealismo, o foco dos afrofuturistas é a ideia de um futuro utópico.

Posto isto, o afrossurrealismo e o afrofuturismo caracterizam-se como “movimentos de rutura que transcendem as categorias do pensamento ocidental” e procuram estabelecer “novos paradigmas sociais, culturais e políticos”. Tendo como protagonista a comunidade negra, ambos os movimentos questionam o mundo em que vivemos, imaginando uma sociedade onde as pessoas não sofrem discriminação e não são excluídas de acordo com a sua raça ou origem étnica.

O Surreal da experiência negra

Stephanie Borges é poeta e tradutora no Brasil. Formou-se em jornalismo e sempre teve o desejo de trabalhar em editoras devido ao seu amor pela leitura. Em 2012, fez uma pós-graduação em Mercado Editorial e chegou a trabalhar em órgãos de comunicação como a Folha de S. Paulo e a Revista Quatro Cinco Um. Cinco anos depois, deparou-se com a opção de continuar “a trabalhar para o livro dos outros” ou dedicar-se a uma outra paixão: a poesia.

Decidiu então realizar uma oficina de escrita durante quatro meses, o que lhe permitiu, mais tarde, lançar o seu livro Talvez precisemos de um nome para isso,em 2019. A obra é um conjunto de dez poemas da sua autoria que retratam a sua experiência com o seu cabelo. “Parei de alisar o cabelo aos 22 anos, mas passei dez aprendendo a cuidar dele”, começa por nos contar numa entrevista online. “Me inspirei na obra de Djaimilia Pereira de Almeida, Esse Cabelo. O seu livro emocionou-me muito. Tinha vários elementos em comum com o meu texto, como a questão da família ou como o cabelo interfere em como a gente se sente bonita”.

Stephanie Borges. Créditos: Gabriella Maria/Afroafeto

A obra de Djaimilia Almeida permitiu a Stephanie encontrar novas soluções criativas para o seu próprio livro. “Foi muito importante para mim, e para a minha escrita, ler autoras negras”, confessa. “Passei a vida a ler obras de autores brancos que não tinham nenhuma personagem que se parecesse comigo. Percebi que não valia a pena ficar tentando escrever e dialogar com uma parcela da sociedade que nunca me viu. Se essas pessoas nunca me viram ao ponto de escrever personagens que se parecessem comigo, uma mulher negra de classe média, universitária, que gosta de livros, que gosta de viajar, ir a museu, ir à praia e tomar uma cervejinha na calçada com vista para o mar, sabe? Se eles não conseguem criar personagens assim, não adianta ficar tentando escrever coisas que vão deixar essas pessoas confortáveis. Tenho de escrever para pessoas como eu, que não se viram e querem se ver”.

Começou a interessar-se pelos movimentos afrossurrealistas e afrofuturistas em 2016 ao descobrir um catálogo intitulado “Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica” na internet. Nele encontram-se textos da autora Ytasha Womak e é feita uma introdução ao que é o afrofuturismo. “Fiquei maravilhada. Fez-me pensar algumas questões estéticas, tais como a forma como as pessoas negras falam de si, que tipo de imagens as pessoas negras criam da sua vida, da sua sensibilidade, da sua subjetividade. Ainda existe uma lógica de representar o corpo negro como o corpo sofredor. Parece que as pessoas só escutam o que uma pessoa negra tem a dizer se ela falar de trauma, da sua experiência enquanto vítima ou ela se confirmar que o racismo é uma coisa horrorosa. Ele é. Mas só denunciar o racismo, não resolve”.

Com o ensaio de Ytasha Womak, Stephanie também percebeu que “o afrossurrealismo é uma coisa muito especial”, pois, “se pararmos para pensar, a vida de uma pessoa negra é cheia de pequenos momentos surreais como, por exemplo, estares na universidade e perguntarem se você devia estar ali. Ou presumirem que você não sabe do que está falando só por causa da cor da sua pele, independentemente da sua formação”.

Stephanie Borges traduziu o Manifesto de D. Scot Miller e, com esse trabalho, chegou à conclusão de que o autor procurou unir “o surreal da experiência negra” ao facto de as vanguardas europeias terem produzido “uma arte que não era necessariamente inteligível e que podia passar pelo inconsciente” [o surrealismo]. Assim, de acordo com Miller, representar as diferentes experiências negras a partir dessa lógica devia ser uma possibilidade.

Ter encontrado o conceito de afrossurrealismo levou Stephanie a pensar de que forma gostaria de o inserir na sua obra e na sua poesia. Segundo as suas palavras, a existência deste conceito pode fazer com que “as pessoas prestem mais atenção e deixem de estranhar as decisões tomadas pelos artistas. Queremos que percebam que tudo é intencional e que tem todo um trabalho estético e de pesquisa” por detrás da obra.

O afrossurrealismo procura, deste modo, uma outra representação do corpo negro como o de alguém que tem curiosidade perante o mundo e alguém que é feliz. É como uma provocação estética que serve para questionar o porquê de algumas coisas serem reais e outras não. “Porque é que aceitamos uma realidade que por vezes é tão injusta e tão dura?”, questiona a poeta. “Porque é que uma realidade distópica é aceitável para algumas pessoas, mas a realidade em que as pessoas negras se estão divertindo, viajando, pintando, tendo filhos, dando palestra, parece uma coisa tão assustadora”?

Contudo, Stephanie defende também que o movimento artístico nem sempre precisa de ser interpretado como uma crítica social. “Às vezes a ideia é apenas oferecer coisas bonitas para o povo negro e mostrar as diferentes possibilidades da imaginação”, esclarece. Para ela, o sonho faz sempre parte do poema, pois “a poesia parte do corpo e cria um efeito nos outros corpos” que não o seu. A expressão do afrossurrealismo no trabalho da autora manifesta-se através da ideia de liberdade, seja a liberdade de temas, de significados ou somente a sua liberdade para “escrever algo que não faz sentido, mas que não deixa de ser bonito”.

Nanã Burucu saiu

deitou-se ao lado do portão

e ficou esperando

os descendentes dos aliens

já despossuídos, separados

dos seus territórios

abduzidos para o novo mundo

ela deu a matéria no começo

mas quer de volta

no final

tudo o que é seu

usando emuladores para estudar

frágeis arquivos

a chave

para o futuro diaspórico.

Excerto do poema “Uhura”, Stephanie Borges (2018)


Formado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense, no Brasil, Luis Nassor atua como artista plástico desde os 17 anos. Em entrevista ao Gerador, via email, conta-nos que o afrossurrealismo não surgiu na sua vida “como um modismo ou uma simples escolha, mas sim como uma forma de tentar religar a [sua] história [e] de trazer luz para a parte apagada dela”.

Luis Nassor é, na verdade, o nome artístico de Luis Gustavo de Souza Gomes dos Santos. “Nenhum desses sobrenomes me representa, pois, parte de minha família vem de pessoas negras que foram tiradas de suas terras natais e escravizadas, e outra parte vem da população indígena que aqui vivia antes da colonização”, explica. “Esses sobrenomes que carrego são imposições desse sistema de opressão, por isso escolhi como novo nome Luis Nassor, sendo Nassor uma palavra presente em diversas línguas africanas [e] significando “Vitorioso” ou “Contador de Fábulas”.

Luis Nassor. Fotografia da sua cortesia

O seu “primeiro contacto profissional com a arte foi no Espaço Cultural Porta Aberta do Mestre de Capoeira Dico”, em 2006. Entre 2013 e 2016 trabalhou na Secretaria de Cultura de Maricá, no Rio de Janeiro, onde criou “um curso livre de cinema que tinha como objetivo ensinar técnicas de cinema e cineclube para a população do município”. Foi também coordenador do Cineclube Henfil, onde desenvolveu crítica cinematográfica, artes de divulgação e curadoria das mostras regulares de cinema. Atualmente, é cineasta, artista visual freelancer e professor de Artes Visuais no Colégio Prima.

Tal como Stephanie Borges, o artista trabalha com os conceitos de “sonho” versus “realidade”. “Me aproximo bastante do surrealismo, pop arte e impressionismo, mas sempre os utilizo à minha maneira, não me apegando formalmente a nenhum formato predefinido. Minhas obras mudam de acordo com o que eu sonho”, afirma.

Como principais características do afrossurrealismo, Nassor destaca “o resgate de elementos culturais afrocentrados; o desenvolvimento de uma estética de matriz africana que, no caso do Brasil, [pressupõe] um resgate da tradição africana e das raízes nacionais que por muito tempo foram reprimidas violentamente […]; o desenvolvimento simbólico e uma valorização de conhecimentos ancestrais; a elevação da figura da pessoa negra como símbolo de beleza, poder e progresso; e um diálogo [entre a] ancestralidade [e a] modernidade, onde a figura da pessoa negra é a protagonista”. Desta forma, segundo o artista, o afrossurrealismo “repensa o conceito europeu de surrealismo por uma ótica afrocentrada e diaspórica africana”.

Quando questionado sobre o facto de o afrossurrealismo procurar restaurar o culto do passado, Luis Nassor admite interpretar a história da comunidade negra como um tecido. “Cada indivíduo inclui um novo ponto. Cada sociedade inclui um detalhe e, quando olhamos o todo, vemos um belo padrão adornado. Mas esse tecido foi rasgado, os fios rompidos, os tecelões separados de suas ferramentas e impedidos de fazer seu ofício”.

De forma a “refazer esses pontos”, a comunidade deste movimento recorreu a “novas cores, novos tipos de linhas e ferramentas para ampliar, religar e fazer um tecido ainda maior e mais belo”. Assim, a partir de elementos “tradicionais, ancestrais, sabedoria dos anciões, sankofa [símbolo africano] e vivências contemporâneas”, tornou-se possível, para os artistas afrossurrealistas, “criar uma ligação do mundo visível com o invisível”.

Por sua vez, a poeta Stephanie Borges vê a procura pelo culto do passado como uma simples referência e não como “algo nostálgico”.  “Quando cresces com uma cultura pop, onde a grande maioria dos filmes é representada por pessoas brancas, [e] as músicas são de pessoas brancas, precisas de, ativamente, procurar por referências negras”, elucida Borges. “A primeira vez que ouvi falar do Sanha Allen Pires [músico português de origem guineense] foi quando li sobre afrofuturismo. Nunca tinha ouvido falar dele e, no entanto, ele foi um músico muito famoso nos anos 70! Os afrossurrealistas procuram autores e artistas que, no passado, “sonharam” com a liberdade das pessoas negras e trabalharam para isso. Se pensarmos bem, nós fazemos parte dos sonhos que essas pessoas tiveram, como o acesso à tecnologia ou mesmo à formação, por exemplo”.

No seu trabalho, Luis Nassor representa “as deidades [divindades] que habitam em todos nós. Olho e vejo nossas lutas e vitórias, mesmo que o passado nos tenha deixado cicatrizes. Minhas obras se ocupam de mostrar nossa beleza e poder internos. Tento trazer a energia de dentro e representá-la em cores, pedras e quaisquer outros materiais [que tenha à] minha disposição”.

Exemplos dessas obras são Afro Vida e Equilibre, onde Luis tende a representar figuras humanas “ambíguas”. Na primeira, podem observar-se elementos que remetem para “o retorno do conhecimento da ancestralidade”, tais como o símbolo sankofa que cerca a “deidade” desenhada, aparentemente feminina. Como elemento surreal, Luis desenhou três olhos de onde emana um “espectro luminoso” com as cores do arco-íris. “Pintei a figura como uma pessoa que tem energia interna que se manifesta como esse arco-íris”, explica.

Em Equilibre, Luis optou por desenhar uma figura que coloca “elementos femininos e masculinos em equilíbrio”. Padrões de tecidos africanos são exibidos de “forma espelhada” para representar a “textura do fundo” da obra artística. Com esta obra, Luis procurou “representar um sonho, ou um habitante de um sonho, um ser que reúne em si o conhecimento da humanidade”. Conta-nos ainda que sobrepôs “elementos de diversas culturas de forma a criar um todo coeso”.

"Afrovida". Obra de Luis Nassor
"Equilibre". Obra de Luis Nassor

Para Luis, estes elementos visuais e simbólicos, quer nas obras afrofuturistas, quer nas afrossurrealistas, permitem “sintetizar conceitos”. De acordo com o artista, “tanto os movimentos sociais quanto os artísticos disputam espaço e reconhecimento, buscando igualdade [e] lutando contra toda e qualquer forma de repressão e descriminação”.

O afrossurrealismo tem assim um papel identitário. O nosso entrevistado admite que ao adotar esta vertente artística para o seu trabalho, conseguiu “redefinir-se”. “Como toda pessoa negra, eu sinto que existe uma lacuna em mim, como se algo não pudesse ser alcançado, como se nas viagens dos tumbeiros [navio usado para tráfico de escravos negros], as minhas raízes tivessem sido jogadas ao mar. Mas essas raízes não estavam mortas, estavam dormentes, precisavam ser nutridas. Então, quando eu comecei a ir atrás delas, eu naturalmente me vi em meio ao afrossurrealismo. Ele cresceu em mim, moldei o que pude à minha maneira de ver o mundo, ele me religou, nutriu as minhas raízes e pude alcançar algo além”.

A partir destas experiências, Luis pôde “escolher um novo nome”, ver-se “representado nas obras” que faz e “ver outras pessoas maravilharem-se com uma representação próxima da imagem delas”. Profissionalmente, o afrossurrealismo trouxe-lhe “mais reconhecimento e novas oportunidades”, mas o artista acredita que isso se deve ao facto de a sua obra se ter tornado mais autêntica ao representar o que de facto ele é. “Antes ela [a obra] parecia perdida, mas agora tem um foco, uma identidade, um coração”, conclui.


Cineastas como Jordan Peele ou Donald Glover (Childish Gambino) interessaram-se em apresentar a experiência negra de várias perspetivas que, muitas vezes, não foram confortáveis aos olhos do público. Stephanie Borges salienta que “o pessoal que se interessa pelo afrossurrealismo está mais interessado em criar uma experiência estética que deixa você com perguntas, mais desnorteado, especulando”. Essa especulação é uma aproximação da liberdade em termos criativos. “Esses atores não estão preocupados em fazer um filme como o “Pantera Negra” que tem de atingir milhões de pessoas que têm de o apreciar. O “Pantera Negra”, [mesmo com atores negros e com elementos da sua comunidade], apresenta o padrão normal dos filmes de super-heróis. Apresenta soluções confortáveis para quem o assiste”.

Posto isto, a poeta acredita que todos nós precisamos de fazer um trabalho de descolonização, que é interno. “As pessoas brancas ainda reproduzem uma lógica colonial na qual elas se veem como seres superiores. Todos precisamos de fazer um trabalho que é subjetivo, identificar as ideologias que nos foram incutidas a vida toda e trazer novas imagens, novas histórias que não reproduzam a violência ou a ideia de que existem pessoas que não têm de ser tratadas como se não fossem pessoas”.

Para além disso, Borges acrescenta que não devemos identificar o afrossurrealismo e o afrofuturismo como vertentes isoladas. “Quando começamos a assistir a muita coisa, entendemos que na verdade são obras de arte que trazem elementos” e que nem todos os artistas que recorrem a elementos afrossurreais se identificam como afrossurrealistas.

Por um lado, “o afrofuturismo não é nada mais do que aquilo que as pessoas negras estão fazendo há muito tempo para criar futuros. Se a supremacia branca não imagina um futuro para a gente, temos de ser nós a sonhar e a especular futuros, seja de forma artística, seja nos movimentos comunitários”. Por sua vez, para os afrossurrealistas “não adianta ficar pensando num futuro muito distante. Você sonha de uma noite para a outra! Ou seja, vamos pensar no agora, vamos sonhar esse agora, vamos desmontar as ideias da realidade que nos oprimem agora. Essa chamada para o presente também é uma vocação importante”, conclui.

[Esta reportagem é a primeira de uma série de duas. A segunda será publicada brevemente.]

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

23 Abril 2024

Informação local: resistir apesar de tudo

19 Março 2024

O Teatrão: 30 anos de história, de novos desafios e de velhos problemas

19 Fevereiro 2024

Assistência sexual e a democratização do acesso ao corpo

14 Fevereiro 2024

Direito de resposta

14 Fevereiro 2024

Do Brasil até Portugal: uma “metamorfose ambulante”

12 Fevereiro 2024

Lenocínio simples: exploração ou autodeterminação?

5 Fevereiro 2024

Entre o reconhecimento e a abolição, prostituição mantém-se à margem 

29 Janeiro 2024

Entre o chicote e a massagem: como se define um trabalho sexual?

15 Janeiro 2024

Apesar dos esforços, arquivos digitais ainda deixam margem para dúvidas

8 Janeiro 2024

Das boas práticas aos problemas: como os órgãos de comunicação arquivam o seu trabalho?

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online ou presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Produção de Eventos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação à Língua Gestual Portuguesa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Práticas de Escrita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Narrativas animadas – iniciação à animação de personagens [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

O Parlamento Europeu: funções, composição e desafios [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Pensamento Crítico [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Comunicação Digital: da estratégia à execução [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

22 ABRIL 2024

A Madrinha: a correspondente que “marchou” na retaguarda da guerra

Ao longo de 15 anos, a troca de cartas integrava uma estratégia muito clara: legitimar a guerra. Mais conhecidas por madrinhas, alimentaram um programa oficioso, que partiu de um conceito apropriado pelo Estado Novo: mulheres a integrar o esforço nacional ao se corresponderem com militares na frente de combate.

1 ABRIL 2024

Abuso de poder no ensino superior em Portugal

As práticas de assédio moral e sexual são uma realidade conhecida dos estudantes, investigadores, docentes e quadros técnicos do ensino superior. Nos próximos meses lançamos a investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, um trabalho jornalístico onde procuramos compreender as múltiplas dimensões de um problema estrutural.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0