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Agrofloresta de sucessão: o futuro da agricultura sustentável está nas árvores?

São cada vez mais evidentes os efeitos das alterações climáticas, mas também as consequências da ação humana na natureza. Cenários como o aumento das temperaturas, secas severas e prolongadas ou a degradação dos solos têm-nos alertado para a necessidade de uma mudança de paradigma na agricultura convencional. Neste cenário, um “novo” tipo de agricultura, que está ainda a dar os primeiros passos no Mediterrâneo, reintroduz as árvores como elemento-chave para a sustentabilidade do processo e ecossistema.

Texto de Redação

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Na Horta da Malhadinha, situada em Mértola, podemos encontrar um conjunto de plantas diversas. Todas elas cumprem uma determinada função, explica o agricultor António Coelho. Ali, desde 2019, está a ser implementado um sistema de agricultura regenerativa, a que se chama sintrópica ou agrofloresta de sucessão. 

“Esta tipologia de agricultura trabalha muito em sucessão, na sucessão natural das espécies, mas também em estratificação”, refere. A estratificação indica a quantidade de luz que uma determinada planta necessita, e ela é caracterizada em função da luz que necessita. “Temos aqui plantas de estrato baixo, estrato médio, estrato alto e estrato emergente”, continua. “Normalmente, todas as que cumprem essa função de estrato emergente são plantas, a que também podemos chamar plantas cooperantes, que só servem basicamente para ser podadas e que vão, de alguma forma, criando toda essa dinâmica de nutrição do solo e de composição.”

Um choupo ou um eucalipto, por exemplo, são aqui plantas emergentes, nota o agricultor. “Servem para serem podadas constantemente e, através dessa dinâmica, não só nos providenciam matéria vegetal para cobrir o solo, mas também um conjunto de dinâmicas relacionadas com as próprias raízes das plantas, que vão libertando açúcares, à medida que elas se vão decompondo”, clarifica António. Aqui, nutrir o solo significa nutrir as plantas das quais nos alimentamos. Há várias árvores plantadas em fila. Entre elas, estão hortícolas e frutícolas.

A agricultura sintrópica é uma reaprendizagem da forma de fazer agricultura com a floresta. “Durante demasiado tempo, durante séculos, milénios, a agricultura acabou por ser compartimentada, deixando a floresta fora do sistema”, diz Pedro Nogueira, arquiteto paisagista. “Havia uma complementaridade, mas não uma integração da agricultura e da floresta. E a agricultura sintrópica revê essa separação e propõe esse tema muito mais integrado.”

Na Horta da Malhadinha, há uma promoção de uma grande biodiversidade de espécies e não há preconceito em relação às espécies a serem usadas. “Acima de tudo, queremos promover a biodiversidade e, dentro dessa biodiversidade, potencialmente, todas as espécies poderão fazer parte e, a partir daí, a forma como vamos assumindo as características diferenciais das várias plantas, ou nas suas funções produtivas, ou nas suas funções mais regeneradoras (...). Esse é o grande motor de fertilidade do sistema.”

Para Pedro Mendes Moreira, professor da Escola Superior Agrária de Coimbra, “as árvores têm de entrar no nosso sistema [agricultura].” Contudo, este é um sistema com mais variáveis. “Por isso é bem mais difícil de controlar e exige um conhecimento mais abrangente por parte dos agricultores”, considera. “A questão do número de espécies, a questão do clima, da luz”, enumera. “Se tenho uma monocultura, tenho de escolher a variedade mais adequada ao local. Em muitos casos, tenho uma receita que tenho de cumprir, especialmente em agricultura convencional, que foi uma forma de nivelar os problemas do local para o local.”

Praticar agricultura, imitando a natureza

O sistema agroflorestal de sucessão, também conhecido como agricultura sintrópica, foi desenvolvido pelo suíço Ernst Götsch, inspirado na forma como as florestas se desenvolvem.

A plantação é feita de forma sincronizada com espécies agrícolas (hortícolas e frutíferas) e espécies florestais. A plantação em alta densidade e diversidade só é possível graças à utilização de espécies de ciclo de vida curto, médio e longo, ocupando todos os estratos de uma floresta (rasteiro, baixo, médio, alto e emergente). Respeitando estes princípios, otimiza-se o aproveitamento da luz do sol, dos recursos hídricos e garantem-se plantações agrícolas mais produtivas.

Trata-se de regenerar pelo uso, uma vez que a criação de áreas agrícolas altamente produtivas – e que tendem à independência de insumos (fertilizantes e pesticidas) e irrigação – tem, como consequência, aquilo a que se chamam serviços do ecossistema, como a formação de solo, a regulação do microclima ou o favorecimento do ciclo da água. Ou seja, o plantio agrícola é concomitante à regeneração de ecossistemas.

“É um sistema muito complexo de gestão. É por isso que muitas vezes nem todas as pessoas o seguem”, afirma Pedro Mendes Moreira. “Primeiro temos de saber quais as plantas que lidam melhor umas com as outras. Depois, como é que podemos intervir nas plantas que estão presentes no sistema, para nos serem úteis e serem úteis ao próprio sistema. Basta lembrar a utilização de algumas plantas: umas são para a produção, mas outras podem ser, por exemplo, simplesmente para a biomassa. E nós vamos integrar essa biomassa no solo. E porque é que integrámos essa biomassa no solo? Porque se tivermos, por exemplo, estilha (material que é triturado dessas plantas que são produzidas), muitas vezes, só para a obtenção de biomassa, estamos a dar oportunidade para que os microrganismos se possam desenvolver, a que a captação da água seja mais fácil e, portanto, consigamos aumentar a matéria orgânica do solo.”

As árvores, diz perentoriamente, “devem ser uma parte da equação.” Mas é necessário também intervir no seu manuseamento. “É preciso ter controlo dessas árvores porque rapidamente elas tomam conta do sistema.”

Trabalhar a fertilidade dos sistemas

Como explica Pedro Nogueira, na agricultura sintrópica há uma grande preocupação com os mecanismos de fertilidade do sistema, que, segundo ele, têm sido cada vez mais “dissociados daquilo que é o alimento”. A regeneração ou a retroalimentação do sistema é essencial.

“Aquilo que mais se vê noutros modelos agrícolas é a devastação de um determinado local para inclusão de uma determinada espécie. E estes sistemas funcionam exatamente ao contrário. É ter essa base daquilo que queremos produzir”, diz António. “No nosso caso, são hortícolas e frutícolas. Mas há outras formas de o fazer. E, percebendo isso, percebemos também que outras espécies poderíamos incluir neste sistema, que nos permitissem manter a nossa atividade agrícola, mas melhorando substancialmente o local onde trabalhamos”, continua. Na sua opinião, essa retroalimentação do solo é uma das grandes mudanças em comparação com outros tipos de agricultura mesmo até o modelo de agricultura biológica “dito convencional”, que “emita um pouco o que são as outras agriculturas convencionais”. “Tendencialmente continuam a ser sistemas monoculturais. Tendencialmente continuam a não produzir para esse alimento de solo e continuam a ser sistemas eminentemente extrativistas”, acrescenta Pedro Nogueira.

A Horta da Malhadinha tem certificação biológica já desde 2008. Mas, garante António, praticar agricultura de sucessão são “sete passos acima”, no que à sustentabilidade diz respeito. “É tentar perceber como é que conseguimos ter uma atividade agrícola, de horticultura e de fruticultura, mas conciliando também esta parte florestal, não só porque ela vem regenerar tudo o que é más práticas e vem dar uma hipótese de recuperação dos solos através das técnicas utilizadas, mas também porque faz com que consigamos ter uma atividade que consiga suportar todo este investimento que vamos fazendo.”

Plantar água no sistema

A presença das árvores no sistema é fundamental na manutenção da água. Isso acontece devido à transpiração. “Sem florestas, não temos água, e é isso que também fazemos através de sistemas agroflorestais”, explica Pedro Nogueira.

Se noutros tipos de agricultura, se pensa na gestão hídrica, através da irrigação e da diminuição da dotação pelo tipo de irrigação proposta, aqui a preocupação é outra. “Tendencialmente ou crescentemente, fomos vendo as florestas como sítios de monoculturas, como sítios muito simplificados, não só na biodiversidade presente, mas também na composição, na arquitetura do próprio sítio”, analisa o arquiteto paisagista. “Além de serem espaços muito biodiversos, são espaços estratificados. Há plantas com necessidades luminosas muito distintas, precisam de muita luz, média e pouca luz, com alturas distintas, e todas elas a transpirar, a promover essa humidade relativa. Isto é água no sistema, isto é plantar água”, continua. “Quando temos esse sistema biodiverso estratificado, existe uma tendência do próprio sistema que faz com que a água desça ao nível do solo, quase um vórtex no próprio sistema, onde todos os estratos estão a produzir água e todos eles fazem com que a água desça ao nível do solo. Quando tens monoculturas, quando tens esses povoamentos florestais, onde há a transpiração a nível da copa, mas nada existe abaixo da copa, então essa água tendencialmente perde-se do sistema.”O cumulativo de árvores a transpirar no sistema permite assim que estes sejam também sistemas mais amenos e frescos.

Para Marina Nobre, cofundadora da associação Reflorestar Portugal, as árvores ainda não são utilizadas como poderiam ser na agricultura. “Existem políticas públicas que são arcaicas, e existem práticas que são subsidiadas e que não têm uma visão, tanto a nível urbano, como a nível do campo, de utilização do potencial das árvores.” Segundo a mesma, ainda é “muito retrógrado” aquilo que se verifica em Portugal ao nível de políticas públicas. “Tínhamos um arquiteto paisagista, que era o Ribeiro Telles – que morreu, creio que há dois anos –, que já há mais de 30 anos falava sobre questões agrossilvopastoris, de uma paisagem em mosaico, que os incêndios podem ser previsíveis... inclusive, ele previu estas enchentes que existiram agora em Lisboa, Algés, etc. Portanto, a informação existe”, sublinha.

“Depois existe uma máquina, capital, interesses e forças que são muitas vezes maiores do que a razão. E existem também muitos preconceitos e conceitos arcaicos dentro da própria ecologia”, completa. “Na página da Reflorestar, temos várias postagens polémicas, em relação às espécies que utilizamos, em relação ao método de plantação, porque as pessoas acham que é tudo muito perto... Mas trabalhar com a informação do sistema ou tentar replicar a forma como a natureza funciona, não vai junto com os métodos a que as pessoas geralmente estão habituadas e isso causa um bocado de estranheza.”

Desde 2018, a Reflorestar Portugal – criada após os incêndios em Pedrógão Grande – tem-se dedicado a melhorar a colaboração entre quem atua sobre as florestas e comunidades em Portugal e a disseminar os princípios da permacultura, da sintropia e as técnicas agroflorestais e métodos colaborativos. Entre várias outras iniciativas, realizaram uma série de cursos sobre agrofloresta de sucessão. “Os sistemas de produção alimentar da forma como são a nível do grande mercado mundial, de produção de alimentos, ou de produção de madeira, não tem como se manter a longo prazo. Porque um mesmo hectare, ano após ano, explorado em monocultura e com o cocktail de químicos e fertilizantes, não é economicamente viável”, reforça Marina. “Por isso é que a maior parte dos governos acaba por entrar com grandes subsídios, para que a agricultura consiga pagar as suas contas, mas não é sustentável em termos da terra. A terra acaba por deixar de produzir. Portanto, ou morre toda a gente sem comida, ou tem que se mudar a forma como as coisas são feitas.” Mais otimista, acrescenta: “E felizmente, existem muitos cientistas, engenheiros, agrónomos, florestais, biólogos, muitas pessoas, de várias áreas da ciência que já se dedicaram a estudar a viabilidade deste tipo de práticas, viabilidade económica, viabilidade ecológica, o restauro dos solos a nível da fixação de carbono, o restauro do ciclo da água e os resultados são realmente incríveis. Por isso, é uma questão de bom senso.”

Pedro Nogueira e António Coelho

Uma solução aplicável à larga escala?

Para António Colho, este não é um tipo de agricultura que seja só para complementar. “Estamos a falar de um tipo de agricultura que, no Mediterrâneo, ainda é pequenino. É um sistema que está a dar os primeiros passos. Mas se recorreremos à origem, de onde vem esta tipologia de agricultura, vemos também que temos sistemas altamente produtivos e com alta capacidade de regeneração dos ecossistemas como um todo.” Na sua opinião, a ciência terá um papel fundamental na perceção de qual é a influência direta que existem nos ecossistemas e na viabilidade desta prática.

Segundo Pedro Mendes Moreira, é preciso estudar e investigar, para verificar se é ou não possível aplicar esta tipologia em grande escala. “Como é que podemos fornecer ao agricultor alguns modelos que possam ser mais exequíveis?”, coloca. Em causa está o custo da mão de obra para a poda das árvores, ou a mecanização numa prática agrícola onde os alimentos e plantas são plantados muito próximos. “Há questões que se prendem realmente com a mecanização. Há outros que se prendem com a simplificação dos sistemas. Apesar de falarmos na questão da biodiversidade, que é importantíssima, muitas vezes, a utilização de muitas espécies, em simultâneo, não significa que não possamos ter as infraestruturas ecológicas, ao lado do nosso campo de sintrópica, mas precisamos de simplificar para tornar possível a que mecanização funcione mais facilmente.

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