Por mais que detestemos Trump (e eu detesto-o, pelo símbolo em que se tornou – de racismo, machismo, homofobia, nepotismo, corrupção e ódio) importa compreender radicalmente o fenómeno. Radicalmente quer dizer ir às raízes, perscrutar as causas, suspendendo, ainda que por mera necessidade analítica, juízos de valor. Compreender pode ser a mais revolucionária das tarefas e certamente imprescindível, se queremos acertar no alvo da mudança.
Ora, os EUA têm marcos estruturais que não podem ser esquecidos. Desde logo, uma tradição protestante, assente principalmente nas bases do calvinismo e que ajuda a compreender a ênfase na riqueza como salvação, o individualismo (a relação com Deus dispensa mediações), o conservadorismo moral. Também a escravatura e a sua cristalização num racismo sistémico, sinuoso, que enquadra as relações sociais e influencia a ação institucional, faz parte da matriz mais vasta. Trump exalta essas referências e dirige-se sempre aos indivíduos, glorificando-os, lançando um otimismo salvífico (“és o maior”, "és poderoso”, "a América é grande”) e ratificando a desconfiança conspirativa face ao Estado e aos serviços públicos, minando ideais de solidariedade, partilha de risco, distribuição (“os vencedores” versus “os falhados”).
Contudo, outros fatores merecem ser destacados. Em primeiro lugar, o falhanço das políticas democratas que, desde a revolução neoliberal de Reagan na década de oitenta, nunca mais recuperaram a agenda do Estado Social (com exceção do tímido Obamacare), deixando dezenas de milhões de cidadãos e cidadãs entregues à sua sorte, sem suporte social, sem cuidados de saúde decentes, hipotecando as suas casas e os seus bens. Prova dessa desistência são os números que Thomas Piketty vem analisando e que mostram à sociedade como se perdeu a progressividade nos impostos, aumentando as grandes fortunas e cavando um intransponível fosso de desigualdade. A crise de 2008 constitui o clímax do abandono, com os bancos a serem salvos, mas as pessoas lançadas ao desemprego, ao despejo e à angústia de se perceberem como mercadorias descartáveis. Junte-se a isto, nos elementos que precipitaram a vaga, a velocidade e a intensidade com que, nas redes sociais, controladas por multinacionais gananciosas e por um modelo de negócios assente na biopolítica do controle e da vigilância, se propaga o ódio, a irracionalidade, o divórcio face a qualquer vestígio de esfera pública.
Arlie Hochschild, socióloga americana, viveu algum tempo em comunidades de apoiantes fervorosos do Tea Party, antecâmara da vaga Trump. E descobriu, nas estruturas emocionais da política, que essas pessoas construíam uma estória, mítica como todas as narrativas (uma “deep story”), mas que, no jogo do imaginário, parecia ser credível e organizava as suas representações. Nessa lenda viva diziam-se “estranhos no seu próprio país”, descrentes de qualquer possibilidade de mobilidade social, esquecidos e humilhados pelo que julgavam ser os estereótipos dominantes que deles traçavam um rosto de boçalidade e ultramontanismo. Nessa estória que contavam a si próprios sobre si mesmos, a escalada numa montanha onde, no cume, brilha o “sonho americano”, parecia cada vez mais impossível, porque outros se colocavam à frente da fila (os negros, as mulheres, os urbanos, os subsidiados). Assim, para um problema objetivo (a sua relegação, o medo da pobreza, o esquecimento) construíam uma explicação (falsa, mas credível) que bebia fundo em ancestrais pilares da sociedade americana (o machismo, o racismo, a desconfiança).
Sem desmontarmos esta “deep story”, que existe, sob outras metamorfoses, nas sociedades europeias, incluindo a portuguesa, não conseguiremos vencer a ruína das democracias. Para tal, outra "deep story" terá de se construir, disseminar e enraizar. Mas isso exige um novo modelo de sociedade. E é urgente.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.