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Amores interculturais: entre o ideal e o real

“Me chamo OUTRA, sou brasileira e casada com Português há 13 anos. Eu amo viver…

Opinião de Shenia Karlsson

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“Me chamo OUTRA, sou brasileira e casada com Português há 13 anos. Eu amo viver em Portugal. Não tenho muitas amigas por aqui e meu marido é ciumento, não gosta que eu saia sem ele, tive até que mudar meu modo de vestir. Ele tem dois irmãos, ambos são casados com portuguesas. Geralmente, em reuniões familiares, fico sozinha, isolada. Elas não conversam comigo e nunca me convidaram para absolutamente nada. Também nunca foram até minha casa. Perguntei ao meu marido se isso é normal, ele disse que sou muito exagerada. Certa vez, numa reunião familiar na casa dos pais dele, comentei com muita alegria que iria fazer um curso na França. Minha sogra, à mesa durante o almoço “de família”, disse em alto e bom tom: “Vê se não voltas grávida”. Todos riram. Meu marido? Nada fez.

Caro leitor, eu poderia discutir xenofobia e os impactos na saúde mental dos imigrantes. Muitas pesquisas no âmbito da Psicologia Intercultural já o fazem muito bem e os resultados é que a xenofobia adoece, é um fato! No entanto, para estabelecermos juntos uma reflexão, prefiro tomar outro caminho, talvez mais polêmico e tortuoso: os Relacionamentos Interculturais assim como as Alianças Inconscientes e os Pactos Narcísicos neles contidos.

A partir das experiências clínicas, percebo um grau de idealização quando o assunto é relações biculturais.

Pretendo ressaltar um aspeto interessante sobre a natureza das relações supracitadas, a incapacidade do cônjuge europeu em se comprometer minimamente com a segurança da companheira. É possível constatar uma inabilidade em construir formas de fornecer à parceira imigrante proteção contra microviolências, preconceitos e discriminações.

Me chamo Perigosa, eu e meu namorado nos damos muito bem. Sou brasileira e ele português, ele é um amor. Devo confessar que a única hora em que temos conflitos é quando sou obrigada a “socializar” com seus amigos, incrível como fazem questão de serem grosseiros. Uma vez cheguei num encontro com ele, e a namorada de seu amigo, numa fala totalmente aleatória soltou: “não, não gosto de brasileiras, não me misturo com essa gente”. Eu era a única brasileira na mesa e todos olharam para mim. Ninguém a repreendeu. Silêncio. Mudou-se o assunto. Meu namorado não reagiu”.

Daí surgem algumas inquietações, será que é realmente uma inabilidade ou dificuldade de demonstrar a tão famosa empatia? O que está submerso? O psicanalista René Käes em sua obra Alianças Inconscientes, aponta que as alianças são basilares para a experiência humana e mantenedoras das relações, podem ser conscientes e inconscientes e assumem diferentes funções (KAËS,2014). O autor diz:

“A aliança une aqueles que ela vincula, ela exclui aqueles que ela rejeita. Ela permite que sejam identificados os excluídos: eles estão fora da aliança, da comunidade, do grupo. Ela é então um princípio de discriminação. Lidando com o narcisismo das pequenas diferenças”.

O Ocidente, historicamente, construiu a ideia de um sujeito universal e consequentemente acarretou em processos que a autora Toni Morrison nomeou de “Outremização”. Em sua obra A Origem dos Outros, a autora, embora aborde o contexto estadunidense, nos serve para refletir como a mesma lógica deu-se na Europa a partir do processo de colonização e, consequentemente, a subjugação do colonizado.

Tais processos criaram a figura do outro, do estrangeiro, e cristalizou-se em forma de mecanismos de defesa a fim de garantir lugares e privilégios onde a base pousa na política da diferença.

Esses processos possuem uma dimensão psicológica como sustentação e suponho que as alianças inconscientes exerçam a manutenção influenciando assim as relações interculturais. O amor é uma construção social, não se enganem.

Pensando tais relações é possível notar um conflito, afinal, quais pactos prevalecem? Volto ao René Kaës ao definir pacto como sendo o “resultado de um arranjo ou de um compromisso, obrigação diante de uma situação podendo comportar riscos e conflitos violentos e de divisão”.

A psicóloga brasileira Maria Aparecida Bento pensou o Pacto Narcísico Branco enquanto uma convergência de sujeitos que afirmam seus lugares definindo territórios e rejeitando igualdades, pois entendem relações equânimes como perda de poder. Essas lógicas produzem desigualdades e violências, inclusive nas relações amorosas e de gênero.

Quais soluções poderíamos construir para dar conta dessas demandas tão recorrentes numa clínica voltada para imigração? Pensar o perigo da romantização das relações interculturais é um começo. Admitir tais pactos e alianças inconscientes, enfrentar o fato de que existe uma história e que essa nos atravessa e a responsabilização do papel de cada um dentro da relação na medida certa.

A parte que imigra enfrenta muitos desafios, falta de uma rede de apoio e vulnerabilidade. O parceiro que recebe tem que agir, do contrário, o parceiro que chega poderá vivenciar o sentimento de abandono e desproteção. É possível através de um pensamento crítico, perceber padrões de comportamentos nocivos, repensar as atitudes e, acima de tudo, estabelecer um diálogo aberto e honesto entre o casal. Acredito que mudanças possam ser implementadas para a saúde conjugal, sempre.

- Sobre a Shenia Karlsson -

Preta, brasileira do Rio de Janeiro, imigrante, mãe do Zack, psicóloga clínica especialista em Diversidade, Pós Graduada em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, Mestranda em Estudos Africanos no ISCSP, Diretora do Departamento de Sororidade e Entreajuda no Instituto da Mulher Negra de Portugal, Co fundadora do Papo Preta: Saúde Mental da Mulher Negra, Terapeuta de casais e famílias, Palestrante, Consultora de projetos em Diversidade e Inclusão para empresas, instituições, mentoria de jovens e projetos acadêmicos, fornece aconselhamento para casais e famílias inter racias e famílias brancas que adotam crianças negras.

Texto de Shenia Karlsson
Fotografia de Maria Vasconcelos
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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