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Ana Luísa Amaral: “de nomes falo:/ porque não sou capaz/ de melhor forma:”

Há mulheres que têm uma bola de cristal dentro do coração. Lídia sabia que a…

Texto de Raquel Rodrigues

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CARTA A LÍDIA
SOBRE A POESIA QUE SE ACHOU PERDIDA

Há mulheres que têm uma bola de cristal dentro do coração. Lídia sabia que a poesia não perderia. Conversámos num fim de tarde de Inverno, também fazia frio. Cada uma na sua sala. A escritora com fotografias por detrás, eu com um móvel antigo e uns pratos pendurados na parede. Reparou neles e perguntou-me se eram da Companhia das Índias. Eu não sabia… Ambas gostamos de coisas velhas. A poetisa tinha as gatas por ali e, antes de começarmos entre poemas, foi buscar o livro What’s in a name, de 2017, que recebeu o prémio Livro do Ano, na área de Poesia, atribuído pela associação das Livrarias de Madrid, no passado mês de Novembro. Ao longe, ouço-a chamar a cadela, e, de repente, encontro-me com o que li:

“NÚ: ESTUDO EM COMOÇÃO”

Em que meditas tu
quando olhas para mim dessa maneira,
deitada no sofá
diagonal ao espaço onde me sento,
fingindo eu não te olhar?

Em que pensa o teu corpo
elástico, alongado,
pronto a vir ter comigo
se eu pedir?

As orelhas contidas em recanto,
as patas recuadas,
o que vês tu agora no branco dos teus olhos:
lua em quarto-crescente,
um prado claro?

E quando dormes, como noutras horas,
que sonhos te viajam:
a mãe, a caça, a mão macia, o salto
muito perfeito
e alto, muito esguio?

Onde: a noite sem frio
que nos abrigará
um dia
e que há-de ser
(só pode ser)
igual?

Ana Luísa já chegou à mesa. Ouve-se o chá quente caindo na caneca. “O que há num nome?”, pergunto. “Há muito no nome. O nome está, em primeiro lugar, intimamente relacionado com aquilo que nós chamamos de identidade. Quer dizer, é algo artificial, por um lado, porque nascemos sem nome, nascemos só corpo, digamos assim. Mas, depois, precisamos de palavras para existir. As palavras fazem o mundo. As palavras fazem-nos e desfazem-nos. E, quando digo ‘fazem-nos e desfazem-nos’ é, até, literalmente. Uma palavra negativa pode destruir-nos. Com as palavras, fazem-se as leis. Com uma palavra, pode-se condenar uma pessoa à morte. (…) O nome é composto por letras e por sons e, portanto, pertence à ordem das palavras. Nós não somos nada sem palavras. Ao mesmo tempo, seria maravilhoso que não precisássemos das palavras para comunicar com os outros, mas não é possível. Portanto, o nome tem uma dupla função. É uma espécie de etiqueta que se põe ao outro e, como tal, pode ser factor de discriminação. Por exemplo, se, nos Estados Unidos, neste momento, entrar alguém com o nome de Abdul Salam, a pessoa a quem pertence o nome irá, com certeza, ser revistada. Na Alemanha nazi, muito dificilmente um ‘ariano’ poria o nome ‘Raquel’ a uma filha. Raquel é um nome judaico. Chamar-se Sara, Daniel, Raquel, Samuel, na Alemanha nazi, tinha um peso muito diferente de um Jüngen. É também uma forma de identificação única de cada um de nós. Uma mulher está grávida e perguntam: ‘já sabe se é menino ou menina?’. ‘Já, já.’ ‘E que nome é que escolheram?’.”

WHAT’S IN A NAME

Sentada a esta mesa, a varanda à direita,
como de costume,
penso na minha filha e no nome que lhe demos,
eu e o seu pai, quando ela nasceu

Um nome é coisa de fala e de palavra,
tão espesso como aquelas folhas que, se pudessem olhar,
me haviam de contemplar daquele vaso,
perguntando-me por que se chamam assim

Porém, não fui eu quem escolheu o nome da flor
a que pertencem essas folhas:
o nome já lá estava, alguém pensou nele
muito antes de mim, e foi decerto a partir do latim,
só depois: o costume

Mas não há nada de natural num nome:
como uma roupa, um hábito, normalmente para a vida inteira,
ele nada mais faz do que cobrir
a nudez em que nascemos

Com a minha filha,
o mais belo de tudo, a maior deflagração
de amor – foi olhar os seus olhos,
sentir-lhe o toque em estame
dos dedos muito finos

esses: sem nome ainda,
mas de uma incontrolável
perfeição inteira

“O que há num nome? Se fosse dado um outro nome
À rosa, seria menos doce o seu perfume?”

Romeu e Julieta, Acto II, Cena ii, epígrafe de What’s in a name

“Não é por acaso que Julieta diz a Romeu: ‘meu Romeu, porque és tu Romeu?’ Ou seja, porque é que tinhas de te chamar Romeu? O facto de te chamares Romeu significa que pertences à família inimiga. Os Capuleto e os Montéquio, como sabemos, estão em guerra, são inimigos. Portanto, ele não é só aquele jovem que está ali. Tem, também, o nome da família inimiga. Quando ela pergunta lhe pergunta aquilo, ele diz: não, chama-me só ‘amor’. Mas chamar ‘amor’ é, também, uma forma de chamar, é linguagem.”

Ao contrário das coisas, o corpo não revela o nome. Dádivas no centro da carne, embora suspensas, sem coincidência. Encontramo-nos pelos lábios de outros e outras. Alguns demoram-se a passar na boca, no movimento lento do amor. Há nomes que florescem entre os dentes. O corpo todo escuta quando um determinado nome se acende. Todavia, o corpo não é um nome. Não há língua para dizer um corpo.

Lemos: “penso na minha filha e no nome que lhe demos, / eu e o seu pai, quando ela nasceu”. Como se pensa um nome? Pensar no nome e pensar na filha são exercícios separados. Mas, como pensar na filha, sem o nome, quando já um nome lhe foi dado? “Acho que se pensa num nome tendo em conta o quadro de referências que nós possuímos. Isso é também válido para a escrita. Como é que um romancista ou uma romancista pensa num nome? Acho que pensar num nome, de alguma maneira, dá-lhe vida, insufla-o de vida, porque lhe dá corpo. Por essa razão, já ouvi imensas vezes a Lídia Jorge, a Maria Velho da Costa, dizer coisas do género: ‘mas eu tive de matá-la.’ A Maria Velho da Costa a dizer assim: ‘estão a chegar as personagens. Já têm nome e estão a chegar.’ Ou seja, abre-se a porta e diz-se: ‘faça favor de entrar, senhora personagem.’ Como é que elas chegam, donde é que elas vêm? É o mesmo processo, é um processo muito parecido. Vem, também, da imaginação, naturalmente, necessária quando escolho um nome e do quadro de referências que temos. No meu caso, tem que ver com uma outra coisa. Tem que ver, também, com o som. Eu sou muito, muito, muito, sensível ao som. Tenho muito pouco sentido estético, no que toca à casa. Se estiver ali a jarra, ou acoli, não me perturba nada. Agora, quando lêem um poema meu... Se aquela palavra não fica bem, se aquele som não está, exactamente, como quero....”

A Ana Luísa, quando escreveu esses versos, recuou ao momento do nome escolhido, ainda sem corpo olhado e tocado. Recuou ao momento, onde, antes do nome inscrito no quotidiano da existência, já o início do encontro se dava. O misterioso encontro antes do nome. Corpo a corpo a sós. No início, era a carne e a carne se fez verbo. A história cumpre-se, em religação.

O nome é uma dádiva. Recorremos ao verbo “dar”, quando nomeamos, crendo que inauguramos ali, na fragilidade do tempo, a eternidade. “É verdade… Dar o nome… Aliás, há o renegar o nome. Como aqueles grandalhões do século XIX… O pai diz: ‘renego-te. Deixas de pertencer a esta família. Nunca mais podes usar o meu nome.’ Dar o nome é também uma espécie de código de honra, é como dar a palavra. Dar a palavra é um compromisso, um comprometimento, uma promessa, uma jura. Repare, ainda hoje temos isso. Dizemos: ‘não interessa o contracto, deu a palavra’, ‘eu só tenho uma palavra’, ‘não é preciso estar escrito’. É como se, ao dar a palavra, desse, também, o corpo. Foi isso que aconteceu, repare, literalmente, com Egas Moniz, que põe a corda ao pescoço, porque tinha jurado que Afonso Henriques não entraria em guerra com o rei de Castela. Como o rei não cumpriu, apresentou-se perante o outro rei com a corda ao pescoço dizendo ‘mata-me’. Portanto, dar a palavra, dar o corpo, é dar o eu.

Dar o nome, por outro lado, é atribuir a outrem. Mas, a partir daí, realmente, a outra pessoa, o que recebe o nome, recebe-o como um presente, que não pode devolver. Enfim, às vezes pode. Há momentos em que se pode recusar. Mas não se muda completamente. Aliás, até há aquela distinção, primeiro nome e último nome. O apelido é o selo, é a sociedade patriarcal, é o pai, o casamento, o pai a passar ao marido. ‘Deixa de ter o meu nome e passa a ter o teu’.”

Porém, Ana Luísa, a poesia é feita de nomes, mas esvazia-os, rasga-os, porque recria e liberta-os. Talvez o início seja o mesmo, mas o destino diferente… A poetisa, ao início, discordou. “A poesia, como qualquer forma de arte, tem de ter sempre uma ligação, um rasto, ao real.  Quer dizer, não pode ser completamente ininteligível, não. Posso é dizer que uma cadeira voa, quando uma cadeira não voa. Posso, digamos assim, considerar atributos relativamente às coisas do mundo, que não lhes pertencem, opostos. Posso metaforizar. Essa é a função da metáfora. A poesia, o que rasga, se quiser, é uma lógica utilitária da linguagem, criando, na minha opinião, um outro tipo de utilidade que tem que ver com a beleza, que tem que ver com o simbólico, que não deixa de ser útil, também, porque precisamos do simbólico. Não somos nada sem simbólico, ou melhor, não somos humanos sem o simbólico. Precisamos dos gestos que não são meramente utilitários, no sentido do utilitarismo imediato. Era Saint-Exupéry que dizia: ‘é útil porque é belo.’ Mas acho que a poesia, quando sai dessa lógica utilitária primeira, digamos assim, realmente rasga a própria linguagem. A poesia é transgressão. Uma das características da poesia também é, a meu ver, a extrema condensação. Por exemplo, é possível fazer um resumo de um conto ou um resumo do romance. Não é possível fazer um resumo de um poema. Isto diz tudo. Não se pode fazer, a não ser que seja um poema narrativo. Vamos imaginar o poema de Sophia de Mello Breyner, “Meditação do Duque de Gândia sobre a morte de Isabel de Portugal”:

“Repare que dizemos ‘é um poema sobre a intensidade do amor, a decadência do corpo e é a decadência das coisas a partir da morte e do olhar.’ Portanto, é sobre o amor e a morte. E é esse limite a medida. Dali, não saímos. E porquê? Porque o resumo é uma condensação e o poema, ele próprio, é uma condensação. O poema condensa, condensa, condensa.”

Falei que a poesia é a libertação do nome, porque sinaliza o silêncio, diz que algo está ali, ao mesmo tempo, que não diz onde está, não o domina. Interrompe. “Nesse sentido, sim. Porque é que temos a designação poema em prosa? Dizemos poesia, mas também poema em prosa. Porque é que o outro é um poema? Porque a disposição gráfica é diferente. O que é que são aquelas palavras? São silêncios. São silêncios. Mas, o silêncio…. Já Barthes dizia: ‘não falar, é já falar.’ É claro que a poesia vive dos silêncios. É uma espécie de desenho, é quase como se fosse pintura. Mesmo quando se deixa entre duas palavras um espaço, aquele espaço é um espaço rico de sentido.”

O poema é esse atraso em relação às coisas, o lugar onde se perdem. O seu passo é “arrastado”, lemos em “APONTAMENTO EM VOO”.

Não conseguiu o tempo
do poema
coincidir-lhes voo,

um vento atrás:
ao das jovens cegonhas
pelo céu,
lisas e puras

Só tentar-lhes compasso
em arremedo

v.1-9

Então, o nome é ambíguo. A obra de que falamos, começa, com o poema “COISAS”, que nos situa aí:

Dar nome a estas coisas
que só são coisas porque a pupila
assim as reconhece
e as transmite a neurónios repetidos
que as aprendem de cor:
é sempre, e mesmo assim,
um reduzido ofício

O mesmo com um rosto,
a sua tessitura em tom pungente ou suave,
a polpa estremecente e estremecendo
a rede de neurónios

E tanto o coração

O que sobra depois,
resolvidas que estão as dimensões achadas,
é este não saber coisa nenhuma,
sentir que pouco valem
estas sílabas

Que mesmo assim se encostam
aos declives e entalhes mornos,
vivos de células e pequenos veios
onde advérbios se perdem
e vacilam

Ou à cor desses olhos,
que a pouco e pouco vou sabendo minha,
e não sei conjugar. Só declinar,
ao inclinar-me nela

Por isso, e mesmo assim, de nomes falo:
porque não sou capaz
de melhor forma:

Lemos que “dar nome” é “um reduzido ofício”, mas, simultaneamente, faz estremecer, não só a rede de neurónios, mas o coração. Também o nome se encosta ao inominável e parece ser a única forma que encontra para lhe chegar. A poesia também diz, então, o que um nome não pode.

“O que um nome não pode… E, todavia, o poema termina: “Por isso, e mesmo assim, de nomes falo:/ porque não sou capaz/ de melhor forma:”

Seguidamente, Ana Luísa encontra mais um poema seu, que sabe de cor, de coração. Haverá poema que não tenha a sua língua como morada? “Visitações, ou poema que se diz manso”, de Às vezes o paraíso:

“O poema diz que ela me roubou a inspiração, roubou-me o poema e, todavia, o poema fez-se. É o inominável, o sem nome, e, todavia, é com nomes, com palavras que fazemos a poesia. Não temos outra forma. Porque a poesia é imperfeição. Toda a arte é imperfeição. Toda a arte vive da imperfeição. Acho que já disse isto mais do que uma vez: acho que, se houver Deus, se há Deus, Ele não precisa da arte para nada. Porque Deus é perfeito, Deus é omnipotente e omnipresente. Deus é ‘omni-tudo’, digamos assim. Portanto, não tem necessidade nenhuma de arte. Nós precisamos da arte, porque somos criaturas imperfeitas. A arte vive sempre nas fissuras. A arte vive sempre nos silêncios, justamente. Vive sempre nesses hiatos e aspira sempre, aspira, aspira sempre à perfeição. Sabe que nunca consegue, mas aspira sempre. E, nessa tentativa contínua, se vai produzindo. Precisamos dela para viver, para nos dar algum sentido da existência. Uma vez li que o que nós, enquanto espécie humana, que um dos nossos grandes saltos foi quando começámos a não só enterrar os nossos mortos, mas a deixar flores nas campas. Encontraram-se raminhos de flores mumificadas. Claro, com 200 mil anos. Diz-se que, realmente, esse é o grande salto, porque, Raquel, as flores não são precisas. Se a ideia, se o objectivo, é não permitir que as doenças se espalhem, através de um corpo morto, da putrefacção, então enterra-se e já está. Para quê as flores? Porque as flores lembram. Então, entra-se aqui numa outra questão que é a questão da memória. Toda a arte vive da memória. É uma forma de reactivar a memória. É uma forma de fazer uma espécie de ponte entre aquilo que vem, que está para vir e os nossos mortos, aquilo que passou. Por isso é que acho que a arte não vive sem tradição. Embora, depois, ela possa ser renegada. Eu própria, nos meus poemas, faço isso. Embora eu possa ironizar com a tradição, o que é certo é que ela está aqui e o que é certo é que eu não sou nada sem ela, até porque eu não sou nada sem os outros. A Raquel não é nada sem o seu pai, sem os seus amigos, a sua família, e mesmo sem os seus vizinhos e mesmo sem as pessoas do planeta. Porque os outros ao nosso lado fazem-nos e desfazem-nos. Eu só sou eu, porque há outro. O poema só é o poema, porque há outros poemas antes dele e ao lado dele. Porque, se não, não havia poema. Percebe?”

Um nome convoca a memória de uma vida inteira, mesmo que seja a por vir. O poema, também.

A poesia é o elogio do inútil. “Não serve para nada, aparentemente, e, todavia, ela é fundamental. É um paradoxo, mas é verdade. Com a poesia não faço uma caneca, um livro, papel…. A poesia é uma terra de ninguém com gente dentro. Quer dizer, a poesia não pertence a ninguém e, ao mesmo tempo, pertence a toda a gente. Terra de ninguém é aquele espaço entre os países. Geralmente, há as fronteiras e, depois, ao lado da fronteira, há uma terra de ninguém, sempre. Aquele espaço não pertence nem aqui nem ali. Acho que a poesia está aí. A poesia é sempre uma terceira margem, ou seja, não vive sequer uma lógica binária.”

A sua lógica não é a do poder. “Repare, nunca os poetas foram detentores de poder nenhum, digamos assim. E, todavia, algum poder há-de ter um contrapoder. Sabe porquê? Porque, se não, os poetas não eram presos e, às vezes, até mortos nas ditaduras. Algum poder há-de ter, um outro tipo de poder. (...) A poesia tem poder, sim, mas é um poder ligado à liberdade. Depois, há o outro poder, o poder sem liberdade, o poder exercido de forma a humilhar, de forma a submeter.” O poder da poesia é o que se move e nos comove. Poder, Raquel, existe sempre. Nós, e as outras espécies, funcionamos, sempre, por relações de poder. Quer dizer, as relações que estabelecemos com os outros são relações de poder. Agora, não tem de ser esse poder de que falávamos agora, do domínio. Mas, a partir do momento em que há cultura e aquilo que a gente chama civilização, há poder. As próprias regras são uma forma de poder. Mas, essa forma de poder, pode ser uma forma dirigida aos outros, ao respeito, a uma convivência. Mais do que convivência, é uma com-vivência, viver com. Vivemos com os outros, não vivemos sozinhos, estamos com os outros. Até nessas regras há certas regras que são necessárias para conviver com os outros.” O poder da poesia é o de inaugurar “um espaço de possibilidades. A poesia é o possível. Mais que o possível, é a possibilidade, é um mar aberto.”

É por isso que a estética é ética. “Toda a grande poesia é ética, sempre.  Quando escrevemos um poema, não estamos a pensar a quem é que o poema se dirige, nem estamos com uma agenda. Eu, pelo menos, não estou. O poema é escrito na mais profunda solidão. E o poema é escrito para nós e é sobre nós que se escreve. “Todo o poema é sobre aquele que sobre ele escreve”. O corpo daqueles que escrevem está em contacto com o mundo. É natural que esse corpo tocado, impregnado pelas coisas do mundo, depois, na escrita, revele essas mesmas preocupações. Porque a poesia é do seu tempo, também. A grande poesia é do seu tempo, mas atravessa tempos. Porque é que a poesia é ética? O poema é a nossa relação com o mundo. Se na nossa relação com o mundo, o outro, está sempre presente, nunca está distante, até em termos de linguagem. A minha língua é a língua dos outros. Quando escrevo um poema, a língua é, simultaneamente, comum e desconhecida. Toda a poesia tem um limite de inteligibilidade, se não ninguém percebe nada. Há uma gramática. A gramática é que faz com que a poesia seja do seu tempo. Mas, depois, o que acontece é que as emoções, os sentimentos, os pensamentos, a beleza das palavras, tudo isso, está no poema.  Nós, seres humanos, também não mudámos tanto assim, ao longo dos séculos. Tanto toca [o poema] no século XIV, ou no século XV, ou no século XVI, como vai tocar no século XX ou no século XXI. ‘Amor é fogo que arde sem se ver’, que escreveu Camões, ainda hoje nos toca. Compreendemos, porque as pessoas continuam apaixonadas e continuam a gostar umas das outras e continuam a desapaixonar-se e continuam a amar e continuam a odiar. Então, toda a grande poesia é ética, porque o ético pressupõe uma preocupação com o outro, pressupõe compaixão e simpatia. Compaixão vem de compassio, ‘sofrer com’. Simpatia significa ‘sentir com’ sympathos. Hoje, leio versos, escritos no século XII, como, por exemplo, de Guilherme da Aquitânia, um duque francês, que era trovador, e tem um poema que começa assim: ‘farei um verso de puro nada’. Isto é século XII, Raquel. Poderia ser modernista.”

Fez-se tarde para a escritora, que teria uma noite prolongada de palavras. Concedeu-me mais uma pergunta. Poderemos pensar que o nome é a cebola e a batata, a coisa. Convoquei os seus poemas de cozinha. A sua mãe ensinou-lhe poemas, enquanto cozinhava. A poesia continuou neste universo. Ambas, a cozinha e a poesia, encontram-se na experiência alquímica, que é de transmutação. Em “PEQUENÍSSIMA REVISITAÇÃOA DESEJAR-SE”, lemos:

Enquanto o peixe grelha, descuidado:
o aroma dourado do incenso a romper
pela cozinha

Vem da mesa na sala, onde,
igual a vulcão, um cone colorido
sustenta a haste fina do incenso

E eu fazendo de mago,
de Menina, de Mãe e de pastor,
tudo em mesma figura
no fervor da cozinha

Em fogo lento, cumpre-se a Palavra
e uma batata só
(falta-me a mirra e o ouro)

Mas vede como, esquivo,
o peixe se queimou,
e o verso em combustão
ficou desfeito!

Ah saber acender um cenário perfeito:
além de incenso, a outra especiaria,
algum tesouro, a erupção dourada,

o preclaro milagre
de um novo peixe,
aqui

E não este puré
sem cântico nem luzes nem noites estreladas:
matéria em que a batata, esquecida,
se tornou

Este episódio passou-se ali mesmo. Naquela porta, que dá para a sala, é a cozinha. Ana Luísa saiu da divisão e foi escrever. Esqueceu-se do peixe. Já não pôde ser a sua refeição. Mas tinha o poema e o presépio. A cozinha também pode ser esse lugar quente, daquele início, de que a poetisa fala com afecto.

“A cozinha assume, ao longo da minha poesia, muitos espaços outros. A cozinha, os espaços domésticos, os espaços com ela ligados… Por exemplo, no primeiro livro:

Faça-se luz
neste mundo profano
que é o meu gabinete
de trabalho:
uma despensa.

“Metamorfoses”, Minha Senhora de Quê, 1990, v.1-4

“O presépio tem vários níveis. Tem, por um lado, o retorno à infância. Quem escreve poesia tem sempre de ter, e eu tenho bastante isso. A minha mãe diz: ‘que tristeza… Às vezes, pareces uma criança.’ Tenho, às vezes, um olhar pouco infantil. Acho que deveríamos praticar, assim, uma espécie de filosofia do maravilhamento …. É que há coisas tão extraordinárias, Raquel…Tão bonitas…. De manhã, há dias em que a gente abre persiana, abre e, de repente, vê um sol e diz: ‘é maravilhoso estar vivo’.” Recorda Emily Dickson, autora que estudou no doutoramento:  “‘estar vivo é ter poder’. É poder, no bom sentido. Depois, por outro lado, é um espaço de adoração, claro, de Jesus Menino. Mas é um espaço, também de pureza, para mim, de pureza, e ainda não de contaminação, com aquilo que fizeram depois, os que vieram a seguir a Ele. Ou seja, Esse que dá lugar a uma religião tão poderosa, nasceu pobre, aquecido, tal como o mito ensina, só pela respiração, expiração. Inspirado, somente, pela expiração de um boi e uma vaca. Nasceu no meio de palhas. Quem é que o adora? São os pastores que ali vão, a mãe e os reis, esses poderosos, que vêm dizer ‘eu não sou nada perante aquilo que traz o amor’. Ora, até parece que estou aqui a falar que sou uma pessoa que vai à igreja, vai à missa…. Não tem nada que ver. Tem que ver, de facto, com aquilo que acho que é a base do cristianismo, não do catolicismo, do cristianismo. Repare. É absolutamente extraordinário, porque diz: ‘se te baterem numa face, dá a outra’, ‘bem-aventurados os pobres, porque deles será o reino dos céus’, ‘um rico não poderá passar, nunca, no fundo de uma agulha’.  É, de facto, uma religião do humilde, daquele que nada tem. Neste meu último livro Ágora, tenho um poema que acaba ‘Cristo não era já a face dos justos/ mas o rosto de todos os/ que habitam os restos/ e rasto da Justiça’. Esses que são os sem abrigo, que são os pobres, os refugiados. Para mim, o presépio é isso, percebe?”

“A Maria Irene Ramalho, uma vez, disse-me: ‘sou a pessoa que melhor te conhece, porque sou quem conhece melhor a tua poesia, e a poesia é o que entra mais dentro do inconsciente.’  É claro que não é a biografia, no sentido literal do termo, mas a arte tem que ver com a vida, sempre, sempre, sempre. Claro, se a mão que escreve é a mão daquele que vive, sente, chora, ri e ama…”

É um perigo quando as coisas se dividem, disse.

“É um perigo quando as coisas se dividem, exactamente”, repetiu a poeta.

Texto de Raquel Botelho Rodrigues

Fotografia de "ALA" - Onomatopeia

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