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Ano Novo

Tudo isto, um dia, terá o seu fim. As bolachas da mamã. O chá com…

Texto de Redação

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Tudo isto, um dia, terá o seu fim.

As bolachas da mamã. O chá com leite. O cheiro da lenha na lareira.

Já não sei bem se as memórias que tenho do triciclo são de mim a pedalar desenfreado pela casa, das fotografias de mim a pedalar desenfreado pela casa, dos meus filhos a pedalarem desenfreados pela casa ou das fotografias deles. Haverá um dia em que os meus netos darão ao pedal e, depois, os filhos deles. Porque os triciclos não passam de moda.

Nesse dia, a ata lavrará a ausência de bolachas da mamã. Os filhos dos filhos dos meus filhos ficarão na ignorância de como eram boas as bolachas da mãe do pai do pai do pai do pai deles. Muito menos saberão que as bolachas não eram feitas pela minha mãe, mas pela empregada. O que para o caso não interessa, porque, realmente, bom era quando a minha mãe me dava as bolachas.

Dou comigo a pensar nestas coisas e quase choro.

Acho que é jeito de velho. Lembrar o que nos lembramos que vamos esquecer. Convocar a lembrança sem nenhuma esperança de repetição, só uma espécie de segundo gesto de alegria – a alegria de lembrar a alegria que irrompeu antes.

O avanço da idade pode colocar algum peso no olhar.

O gesto de levantar os olhos ser mais difícil do que antes, o olhar sempre impudico, aberto, ignorante. Ver muitas coisas. Descer as ravinas mais profundas e escalar os picos maiores. Percorrer mares e oceanos. Visitar as cidades e os campos. Adormecer sob as estrelas do deserto e espreitar os animais das estepes. Experimentar o convívio dos homens e das mulheres. Conhecer a dor, nos seus diferentes degraus. Ser tocado pela genuína alegria, sem freio.

E depois?

Mais do mesmo?

O curso do rio não o permite. O almoço de amanhã é sempre o almoço de amanhã. Nunca será, se colocado igualmente sobre a mesa, o almoço de ontem.

Repito a ginástica matinal. E a Terra, entretanto, viajou no espaço profundo, entre translações e rotações, movimentos gravitacionais e outros que tais.

A cadeira, de facto, já não está no mesmo sítio. Nem o sítio está no mesmo sítio.

Procuro acalmar a vertigem. Pousar a memória sobre as bolachas da mamã. Elas estão lá, sempre na mesma lata azul com dourados. Imutáveis de bom sabor na pausa do chá das cinco. Quando foi assim bom, comer as bolachas da mamã? As bolachas da minha mamã só a mim me respeitam. Não há mais ninguém que possa lembrar-se assim das bolachas da minha mamã. Nem sequer há quem se possa lembrar assim da minha mamã.

É um de janeiro. Tocou um badalo qualquer. Começa um ciclo de doze meses. Uma convenção, claro. Podíamos partir o ano em 24 meses,  4,5 meses ou mesmo ter um ano de um mês. Até podíamos não ter anos de 365 dias. Contar os anos pela metade e por essa forma viver o dobro de anos. Tudo arranjado na secretaria, já se vê. O que não estava no arranjo era que hoje, pelas cinco da tarde, eu não tivesse as bolachas mas me lembrasse das bolachas e fosse como se as tivesse, não sendo exatamente assim, mas sendo qual um dia que não este outra vez acontecesse. Ou este ano que não é este fosse outro, com ou sem bolachas, até dele não haver memória que resista, o tempo perdido na fímbria de um vestido em um corpo sem nome.

-Sobre Jorge Barreto Xavier-

Nasceu em Goa, Índia. Formação em Direito, Gestão das Artes, Ciência Política e Política Públicas. É professor convidado do ISCTE-IUL e diretor municipal de desenvolvimento social, educação e cultura da Câmara Municipal de Oeiras. Foi secretário de Estado da Cultura, diretor-geral das Artes, vereador da Cultura, coordenador da comissão interministerial Educação-Cultura, diretor da bienal de jovens criadores da Europa e do Mediterrâneo. Foi fundador do Clube Português de Artes e Ideias, do Lugar Comum – centro de experimentação artística, da bienal de jovens criadores dos países lusófonos, da MARE, rede de centros culturais do Mediterrâneo. Foi perito da agência europeia de Educação, Audiovisual e Cultura, consultor da Reitoria da Universidade de Lisboa, do Centro Cultural de Belém, da Fundação Calouste Gulbenkian, do ACIDI, da Casa Pia de Lisboa, do Intelligence on Culture, de Copenhaga, Capital Europeia da Cultura. Foi diretor e membro de diversas redes europeias e nacionais na área da Educação e da Cultura. Tem diversos livros e capítulos de livros publicados.

Texto e fotografia de Jorge Barreto Xavier

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