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As escadas para o 8º andar

Já tinham passado muitos dias desde o início do confinamento e no prédio da Dona…

Opinião de Marta Crawford

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Já tinham passado muitos dias desde o início do confinamento e no prédio da Dona Esperança os dias eram sempre diferentes e cheios de emoções partilhadas. No passado, ninguém sabia nada da vida dos vizinhos do prédio, comunicavam pouco ou nada e as reuniões de condomínio eram sempre um desastre. Todos discutiam e insultavam-se mutuamente, regra geral por causa do lixo, da porta do elevador que ficava aberta ou com o facto de a roupa lavada pingar de um estendal para o outro. Conflitos do passado, porque agora existia uma simpatia, cuidado e cooperação entre todos, ou quase todos. A última semana tinha sido especialmente dura, quando se confirmou o que há muito se suspeitava...

O silêncio da rua, a falta de carros e de pessoas, aumentava a perceção dos sons do prédio, e talvez pelo facto das pessoas estarem mais tempo em casa, era possível ouvir os seus habitantes. Sempre que o tom se elevava, quer pela música, quer pelas conversas mais acaloradas ou pelo choro da bebé dos Pereira, todos ouviam. Naquele sábado a quietude do dia tinha sido cortada pelo grande hit dos Stranglers, que vinha do quinto ou do sexto andar. O som estava bastante alto e ouvia-se por todo o lado:

“Golden brown texture like sun,
lays me down with my might she runs
throughout the night
no need to fight
never a frown with golden brown “

Qualquer morador, no silêncio do seu dia, provavelmente estaria a reconhecer esse grande êxito doutros tempos e trautear a letra. O prédio parecia um coro celestial e, se os apartamentos fossem transparentes, talvez conseguíssemos ver em perspetiva 47 pessoas, um cão e um recém-nascido a movimentarem o corpo ao ritmo dos Stranglers e a cantarem numa só voz o refrão.

E foi nesse dia, de temperatura amena naquele prédio, que se ouviu um som extremamente desarmonioso. Pareciam gritos, coisas a cair, vidros ou algo mais pesado, esse som desafinado parecia amplificado na caixa do elevador. O som parecia vir do cimo do prédio, mais precisamente do 8º andar, apartamento único, nas águas furtadas do prédio, para onde os Sousa se tinham mudado há cerca de 2 anos. Desde que eles se tinham mudado que já se tinham ouvido ruídos estranhos, mas nada como naquele dia. Os sons que se ouviam não deixavam ninguém indiferente. Não era um simples balde em que a esfregona tivesse caído ou uma moldura que se tivesse estilhaçado no chão. A Raquel percebeu perfeitamente o que se passava, conhecia aquele som da sua infância e sabia que tinha de agir.

Ligou para o número 800 202 140, do apoio à vítima de violência doméstica, e denunciou o vizinho. Violência é crime!

Depois colocou a máscara e saiu do seu apartamento. Bateu à porta da Isabel, fez-lhe sinal e ambas subiram pela escada que as levava ao 8º andar. Bateram com determinação à porta, mas ninguém a abriu. Voltaram a bater vigorosamente até que se ouviu alguém a dirigir-se à porta, em passadas pesadas que faziam ranger o soalho. A porta foi aberta com grande brutalidade e uma voz grossa rugiu como um leão prestes a atacar a sua presa. A Raquel não vacilou e disse com uma voz assertiva e sem que a voz lhe fraquejasse - Já chamei a polícia! Estão a chegar. A Isabel apercebeu-se que o Leonardo Sousa, perante as palavras da Raquel se preparava para lançar o punho fechado sobre ela e, mesmo a tempo, puxou-a para trás num impulso certeiro que a fez sair da mira do vizinho, evitando o murro. O descontrolo do Sousa foi de tal forma que, não tendo a cara da Raquel para embater, foi bater na ombreira de mármore da porta e partiu o punho.

Tudo o que se passou a seguir foi indescritível, demasiado mau para relatar aqui, mas digamos que os Sousa foram levados para o hospital pela polícia e o filho foi entregue aos avós. Ninguém voltou ao 8º andar.

A Isabel tinha ficado surpreendida com a reação determinada da Raquel, e esta, grata por ter sido salva pela Isabel. A partir desse dia a amizade entre elas cresceu. Mas a Isabel tinha ficado perturbada com tudo o que assistiu e pôde ver do lado de fora do apartamento dos Sousa. A imagem da Madalena Sousa caída no chão e a sangrar não lhe saía da cabeça e aquela agressividade do vizinho não a deixava acalmar - “que besta! Que animal!”.  Acabou por seguir o conselho da amiga e decidiu pedir ajuda à psicóloga do prédio para iniciar um processo terapêutico. A morte recente da avó e o ter assistido àquela situação estavam a provocar-lhe insónias, e só mesmo as conversas longas que tinha com o Rui do 2º andar a faziam verdadeiramente feliz.

Era uma felicidade estranha, fruto da época, porque apesar de viverem tão perto, não podiam estar juntos fisicamente, mas apenas perto por palavras escritas ou chamadas que às vezes duravam mais de uma hora.

Desde o dia 25 de abril que tinham começado a conversar e aquele sentimento inexplicável que a isabel sentia, quando no passado partilhava o elevador com o Rui, transformava-se cada vez mais num à vontade e numa intimidade que há muito ela não sentia por ninguém. A Isabel sentia que se estava a apaixonar pelo Rui.

O Rui, apercebeu-se da ansiedade da Isabel e, no dia a seguir ao episódio dos Sousa, convidou-a para darem uma volta pela Alameda. O encontro era à entrada do prédio e apareceu vestido de super-herói, literalmente vestido de super-homem trajado a preceito de azul, com cueca vermelha, “S” no peito, e de capa vermelha. A máscara com um cravo vermelho, a fazer de boca, era a cereja no topo do bolo.

A Isabel comoveu-se, e depois não resistiu a largar uma gargalhada purificadora. A sensibilidade e o sentido de humor do Rui deixaram-na calma. Gostava de homens com sensibilidade, e o seu vizinho do 2º começava a mostrar características que ela há muito esperava encontrar num homem. O vento do fim da tarde levantou-se e as poucas pessoas com quem se cruzavam observam com curiosidade aquele casal peculiar que passeava pela Alameda. Um super-herói e a sua heroína. Os corpos não se tocavam, as mãos não se aproximavam, mas a capa esvoaçante abraçava-os naquele primeiro passeio a dois, que pressagiava aquilo que viria a ser um verdadeiro amor em tempo de pandemia.

-Sobre a Marta Crawford-

É psicóloga, sexóloga e terapeuta familiar. Apresentou programas televisivos como o AB Sexo e 100Tabus. Escreveu crónicas e publicou os livros: Sexo sem TabusViver o Sexo com Prazer e Diário sexual e conjugal de um casal. Criou o MUSEX — Museu Pedagógico do Sexo — e é autora da crónica «Preliminares» na Revista Gerador.

Texto de Marta Crawford
Fotografia de Diana Mendes

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