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Opinião de Paulo Pires do Vale

Ateliê: esquecimento e atenção

1. O artista que não quer ficar subterrado por aquilo que admira ou que lhe…

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1.

O artista que não quer ficar subterrado por aquilo que admira ou que lhe interessa; que não se quer deixar arrastar pelo vento poderoso que sopra do passado, nem acomodar na brisa morna do que se diz atual ou contemporâneo; que não quer apenas repetir fórmulas certas, nem cumprir as expectativas de outros; que não quer ficar preso às suas ideias ou certezas – repete, na sua prática artística, esta parábola que aprendi com o pintor Philip Guston, e que ele terá aprendido com Cage:

Julgo que foi John Cage quem uma vez me contou: «quando começas a trabalhar, toda a gente está no teu ateliê – o passado, os teus amigos, inimigos, o mundo da arte, e acima de tudo, as tuas ideias – estão todos lá. Mas enquanto continuas a pintar, eles começam a sair, um a um, e és deixado completamente sozinho. Então, se tiveres sorte, até tu sais.»  

A imagem é impressiva: no início do trabalho criativo, o ateliê do artista está cheio, ruidoso, com demasiadas influências e referências presentes. Conscientes e inconscientes, escolhidas ou insuspeitas – como o povoado Ateliê do pintor, pintado por Courbet entre 1854 e 1855. Pelo esforço e paciência, pelo trabalho perseverante, o ateliê vai-se esvaziando. Pouco a pouco. Um a um, vão saindo todos: a opressão da história, a presença sufocante dos outros, as influências e as seguranças da autoridade, as expectativas e o autocontrolo das certezas pessoais... Não saem todos de uma vez, não é um processo rápido. É preciso continuar a pintar, sem desistir. Demorará até o pintor ficar sozinho.

2.

Sozinho – será isso possível? Não está a alteridade sempre no coração do sujeito? Não é, cada um de nós, uma legião? Se isto me parece inegável, o gesto artístico original, no entanto, parece resultar de uma forma de esquecimento. É fruto de um apagamento, de uma retirada dessas presenças, para que algo novo possa surgir. Uma abertura de espaço para acolher o que vem. Essa elisão corresponde mesmo a um esquecimento de si, a uma forma de autossuspensão. Esvaziar-se, mais do que simplesmente esvaziar. Se cada um de nós é hospitalidade, habitado por muitos hóspedes estrangeiros, resultado de múltiplas influências, fazê-los sair é sairmos nós mesmos. Afinal, esses outros somos nós. Por isso, Cage-ou-Guston afirmam que, no fim, depois de ficar sozinho, até o próprio artista deverá sair.

3.

É curiosa a expressão de Cage-ou-Guston: «se tiveres sorte, até tu sais». Não parece bastar o esforço ativo, consciente e voluntário – é necessário mais do que isso. Não chega o controlo ou o domínio de si – e talvez seja isso o que é necessário perder. Nesse sentido, escreveu Cézanne, sobre a tarefa do pintor: «Toda a sua vontade deve ser de silêncio. Deve fazer calar dentro dele as vozes de todos os preconceitos, esquecer, esquecer, fazer silêncio, ser um eco perfeito.»

Cézanne usa, aqui, a palavra esquecer – por duas vezes – associada ao silêncio e ao vazio – necessários para que exista, no pintor, um eco do mundo. E repetirá essa proposta de um trabalho de esquecimento: «Está a passar um minuto do mundo. Pintá-lo na sua realidade! E por causa disso esquecermo-nos de tudo. Tornarmo-nos esse minuto. Sermos então a placa sensível. Dar a imagem do que vemos, esquecendo tudo o que apareceu antes de nós.» Esta atitude nada tem de ingénuo ou de louvor simplista da inspiração, pelo contrário, é uma luta contra a ingenuidade e a falsa ignorância. Um trabalho continuado.

4.

Esta forma de esquecimento, de impessoalidade, é um estado de abertura radical – original e originante: o reencontro criador com a primeira significação do corpo, antes da consciência da finitude e da limitação. O corpo é, inicialmente, «o aberto a» . A finitude e a compreensão do mundo como limite do nosso corpo não são originários, mas posteriores. A relação originária do nosso corpo com o mundo é a de abertura. O artista é o recuperador dessa tensão original. (Será também por isso que, como alguns autores sublinham, os artistas estão mais perto da sua infância? – E também Cézanne o parece afirmar: «Ali, à frente dos meus tubos, dos meus pincéis, não passo de um pintor, do último dos pintores, de uma criança».)

Ainda que a atitude ingénua não o compreenda, a nossa forma habitual de relação com o mundo é a de abertura finita: a nossa capacidade de receção do mundo é finitude. É sempre «um ponto de vista», apenas um. O trabalho de dessubjetivação é o labor para ultrapassar esta finitude do meu ponto de vista: a limitação da perspetiva, a sua inadequação ao mundo – uma luta entre a finitude pessoal e a infinidade da vida, do tempo, do mundo como horizonte-de-possibilidades.

5.

Sair de si – como o artista sai, ele mesmo, do ateliê – é a expressão que propõe a ultrapassagem do ponto de vista estreito, para tornar mais vasta a abertura pessoal ao mundo. Esta abertura é outro nome para a atenção.

6.

Gymnastique de l´atention – chamou Simone Weil a esse exercício espiritual essencial. E descreve-o, assim: «A atenção consiste em suspender o pensamento, em deixá-lo disponível, vazio e permeável ao objecto, mantendo em nós mesmos, próximos do pensamento, mas a um nível inferior e sem contacto com ele, os diversos conhecimentos adquiridos que somos forçados a utilizar. […] E, sobretudo, o pensamento deve estar vazio, em espera, sem nada procurar, mas pronto a receber, na sua verdade nua, o objecto que o vai penetrar.»

7.

A atenção é a verdadeira origem do mundo.

-Sobre Paulo Pires do Vale-

Filósofo, professor universitário, ensaísta e curador. É Comissário do Plano Nacional das Artes, uma iniciativa conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação, desde Fevereiro de 2019.

Texto de Paulo Pires do Vale
Fotografia de Tomás Cunha Ferreira

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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