Há algum tempo que penso trazer-vos esta reflexão. Não será difícil aceitar que a mudança social – seja de que natureza – deve estar acompanhada de ativismo e movimentos sociais. Temos, aliás, ao longo de toda a História humana, provas irrefutáveis deste casamento. Podemos até assumir, grosso modo, que o ativismo é o grande gatilho para a mudança social.
Quero falar-vos de uma ausência quase impercetível que continua a trazer dificuldades acrescidas, em particular, para as pessoas com deficiência.
Sabemos que existem várias minorias/grupos de pessoas marginalizados nas sociedades. Os exemplos mais conhecidos serão as comunidades negras e LGBTQI+. Para ambas, apesar das mudanças sociais estarem aquém do que seria desejável, conseguimos associar termos de identificação de opressão como racismo, homofobia, transfobia (ou no caso das mulheres misoginia, por exemplo), entre outros.
A História e a vida humana demonstram-nos que a linguagem é importante, que as palavras fazem a diferença (seja qual for o sentido em que as queiramos utilizar) e que devemos ser claros nas mensagens que pretendemos transmitir.
E eis a minha questão: onde caberá a realidade das pessoas com deficiência, falando concretamente do caso português?
A tradução mais consensual que existe do inglês sobre estes assuntos chama-se “capacitismo”. O capacitismo traduz-se em formas de opressão baseadas em características humanas não normativas e que se referem a diferentes capacidades e habilidades (de natureza intelectual, mental, auditiva, visual ou física).
O capacitismo existe vincado a um conjunto de crenças fixas sobre corpo perfeito, corpo normal e capacidades esperadas e vistas como humanamente desejáveis (como ver e ouvir, por exemplo). Portanto, todas e todos aquelas e aqueles que não satisfizerem estas expectativas entram numa espécie de caixa específica e não desejada... Onde cabem termos como “deficiente”, “incapaz” “aleijada/o”. Onde impera um desconforto e uma crença partilhada de que aquela vida é menos válida, não é tão relevante quanto as “não deficientes”. Onde se associa a existência a sofrimento, a dor, a desgraça, a dificuldade.
Estas crenças pouco maleáveis, como poderão compreender, em nada trazem vantagem à luta pela inclusão das pessoas com deficiência. E, inevitavelmente, as próprias pessoas com deficiência acabam por as interiorizar.
Como poderemos enquadrar o ativismo, tão necessário, sobre e contra o capacitismo? Na verdade, creio que este casamento está ainda numa fase muito prematura em Portugal. O ativismo na deficiência é ainda bem tímido e não consegue alcançar as “grandes massas”. Infelizmente, as portuguesas e portugueses com deficiência continuam tão arredados da vida pública e da vida em sociedade nas suas múltiplas dimensões, que lhes é impossível tomar esta consciência de opressão e de necessidade urgente de espírito coletivo.
Continuam ainda tão preocupadas em tentar satisfazer dimensões elementares do seu dia a dia (como ter rendimento, acesso a produtos de apoio, acesso à educação e emprego, entre tantos outros entraves a dimensões de justiça social) que seria insano, até, esperar que agucem, a curto prazo, a consciência crítica e o sentimento de identidade coletiva.
No entanto, acredito que apesar da demora compreensível, estamos e vamos traçar esse caminho. Temos hoje mais recursos do que os que alguma vez existiram (como as redes sociais, o acesso à informação, etc) e que têm sido grandes aliados...
É esta a esperança que me acalenta os dias (e a várias pessoas que conheço, na verdade) e me faz escrever este texto. Porque, acreditem, este casamento vai chegar. E precisamos muito dele!
-Sobre a Ana Catarina Correia-
Licenciada e mestre em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto com interesse particular na problemática da deficiência. Foi doutoranda na mesma escola e área disciplinar, num projeto de investigação que versa sobre as políticas para a deficiência em Portugal e na Europa e que dá enfoque à filosofia da Vida Independente e que ainda não foi finalizado.
Atualmente, é técnica no Centro de Apoio à Vida Independente Norte da Associação Centro de Vida Independente. Na mesma organização é dirigente e coordena a delegação do Porto. Colabora, ainda, com outras organizações representativas de pessoas com deficiência. É ainda atleta federada de Boccia pelo Sporting Clube de Espinho e membro da seleção nacional da modalidade desde 2016.
Grande motivação na vida: a crença de que a construção de sociedades justas e inclusivas depende de cada um de nós e que esse será um dos grandes sinais de desenvolvimento humano. E qual é uma das grandes bases para este desenvolvimento? A educação e uma consciência global de Direitos Humanos.