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Autismo: “O caminho é longo mas, cada vez mais, a diversidade do espectro está à vista”

Carolina foi diagnosticada com Autismo com seis anos. Só soube aos 14, quando os pais…

Texto de Carolina Franco

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Carolina foi diagnosticada com Autismo com seis anos. Só soube aos 14, quando os pais lhe contaram, mas nunca se sentiu “numa redoma” ou hiper-protegida. Hoje sabe, e conta-nos, que provavelmente a forma como o médico comunicou o diagnóstico aos seus pais mudou o rumo da sua vida para melhor, já que o apoio dos pais e da restante família foi “essencial” para se tornar uma “mulher emancipada”. “O médico que me diagnosticou disse aos meus pais — ‘a vossa filha vai ter uma vida perfeitamente normal’. Se ele tivesse dito — ‘a vossa filha vai ter problemas, vai ser nervosa, mais não sei o quê’ —, os meus pais podiam ter-me posto numa redoma, e foi isso que me salvou, foi isso que fez de mim a pessoa que sou hoje. Aquela frase salvou a educação que tive doravante.”

De acordo com dados disponibilizados pela AIA - Associação de Apoio e Inclusão ao Autista, existem cerca de 63300 pessoas com Perturbações do Espectro do Autismo (PEA) em Portugal. Com o tempo, os critérios para o diagnóstico alargaram-se e a ideia de que cada pessoa dentro do espectro é única, tem a sua história e a sua forma de estar no (e com o) mundo começou a tornar-se evidente. A história de Carolina é a sua história, que pode ter parecenças com a de outras crianças com autismo mas não é, certamente, igual. “A Caui nunca vai ser como eu, porque a Caui é a Caui. A Caui tem os seus desafios, e eu tenho outros. Temos personalidades diferentes, formas de ver a vida completamente diferentes. E isso é fixe e não tem mal”, diz Carolina para exemplificar. 

A Caui de que Carolina fala é Caui Ferreira, cuja história foi o trampolim para que a sua mãe e o padrasto, Susana Silva e Joe Santos, criassem a associação Vencer Autismo, em 2011. Sem que se apercebesse, Caui tornou-se, com a sua história, o exemplo vivo de que não é o autismo que impõe limitações na vida. Agora que é evidente que serve de inspiração a outras crianças e famílias, Caui sente-se feliz: “a sensação de ser uma inspiração é boa, quer dizer que estou a ajudar mais pessoas a compreender o autismo e isso é muito bom, contribui para uma sociedade melhor, para um mundo melhor”, diz ao Gerador

Carolina e Caui receberam os seus diagnósticos relativamente cedo, mas nem sempre é isso que acontece. No caso de Sara, ativista autista e autora da página Autismo em Português, o diagnóstico só chegou aos 29 anos, depois de se mudar para o Reino Unido e de ter lido o livro “Mulheres Invisíveis”, de Caroline Criado Perez. Um excerto específico, em que a autora dizia que “a socialização feminina pode ajudar as meninas a mascarar os seus sintomas melhor do que os meninos” e que existia um viés masculino nos diagnósticos. No caso de Sara, já quando era mais nova tinha ido a uma psicóloga que disse que “não podia ser autista porque ‘tinha uma amiga’ ”. 

Mas existe um padrão em que se insiram todas as pessoas com Perturbação de Espectro de Autismo? Tal como a própria designação indica, há um espectro que, por sinal, engloba múltiplas características, por muito que algumas possam repetir-se, sobretudo nos casos de autismo mais severos. “Parte-se muito do pressuposto de que uma criança ou uma pessoa com uma Perturbação do Espectro de Autismo é uma criança que se isola, que eventualmente não gosta de contacto físico, não gosta de carícias, não se aproxima das pessoas — o que não é manifestamente verdade. Eventualmente está associado aos casos de autismo mais severos”, explica Paula Carvalho, psicóloga e coordenadora da equipa técnica da AIA, associação sediada em Braga, ao Gerador.

À explicação de Paula Carvalho, Eduardo Ribeiro, presidente da AIA, acrescenta que “as instituições que começaram o seu trabalho em Portugal, nomeadamente em Lisboa, nos anos 70 ou 80, tinham na sua génese o autismo severo, portanto, se calhar, a ideia que prevalece é um pouco essa”. Já nos filmes, “a representação passou do autismo severo a alguém que é genial”, cujas características se inserem na chamada Síndrome Savant. Dá como exemplo Rain Man (1988) que mostra que, “de repente, um autista pode ser um homem excepcional, que faz contagens malucas, que até pode ir ao casino e ganhar muito dinheiro”. Como se num espectro que se percebe ser cada vez maior existissem apenas pólos opostos. 

Quando alguém com PEA não se insere nesses pólos opostos, parece ter de provar a pessoas neurotípicas — neurologicamente típicas — que, de facto, é autista: “eu passo muito por ‘normal’, e isso também é chato. Há muita gente que me diz ‘eu não diria que tens autismo’, opá está bem, mas eu tenho”, partilha Carolina, que acaba por rir enquanto recorda estes episódios. 

“Autismo” não é arma de arremesso político, nem adjetivo pejorativo

Numa breve pesquisa em qualquer motor de busca pela palavra “autismo”, rapidamente se encontram artigos onde a sua utilização está fora de contexto. “O autismo político da esquerda face ao processo de vacinação”, num artigo de opinião publicado no Público há apenas seis dias, “a governação não é autista”, disse Marta Temido, ministra da saúde, em entrevista à apresentadora de televisão Cristina Ferreira, no programa Dia de Cristina, em setembro de 2020;  “A ministra é mesmo autista”, escreveu Camilo Lourenço, analista de economia, num artigo de opinião no Jornal de Negócios

Aquando da publicação da opinião de Camilo Lourenço, a Federação Portuguesa de Autismo criticou essa utilização do termo “autista” nesse mesmo artigo, relembrando ainda a situação de Marta Temido no programa Dia de Cristina. Sara, que em setembro já tinha escrito um artigo de opinião em resposta às declarações de Marta Temido, publicado no P3, respondeu a Camilo Lourenço no Jornal de Negócios, e diz ao Gerador que “Marta Temido foi, na verdade, a única pessoa que pediu desculpa pelo comentário, e deu a entender à comunidade autista que não iria utilizar a expressão novamente, o que é apenas o que queremos”. 

Em cima, o artigo de opinião de São José Almeida / Em baixo, o de Camilo Lourenço

“Em geral, esta expressão é utilizada para dizer que alguém não tem consciência, ou está no seu próprio mundo. No entanto, isso não acontece com os autistas, de todo. Na verdade, estamos demasiado ligados ao mundo, e sentimos tudo de forma mais intensa e, por isso, temos que nos resguardar com a informação que recebemos para não ser demasiado. É bastante doloroso, na verdade. A maioria dos autistas são hiperempáticos, e sentem demasiado, daí muitos autistas serem ativistas (seja no clima, feminismo, etc.). Esta expressão apenas perpetua falsas ideias sobre o Autismo”, diz, também, Sara.  

No início de abril de 2009, há precisamente 12 anos, foi tomada uma decisão por unanimidade na Assembleia da República: as palavras “autista” e “autismo” deixariam de ser arma de arremesso político na Assembleia. Numa notícia da altura, dada pelo JPN- JornalismoPortoNet, lê-se que Luís Carloto Marques, deputado do PSD e autor da iniciativa, escreveu em carta à AR que o “uso das expressões ‘autista’ e ‘autismo’ deveria ser mantido no ‘seu contexto próprio e adequado, ou seja, tão-só o da análise dos direitos das crianças e dos jovens com autismo’.”

Não deixa de ser curioso que, de acordo com a definição de “autismo” no Priberam, se inclua ainda “Ausência de interesse pelo que é exterior (ex.: autismo governamental).”

Printscreen disponível via Priberam

Num artigo recente, de março de 2021, do Polígrafo, "Um estigma transversal. Autismo, bipolaridade e esquizofrenia utilizados como insulto político”, Ana Matos Pires, psiquiatra, diz que este tipo de discurso "revela o estigma associado à doença mental", já que “não passa pela cabeça de ninguém chamar diabético ou hipertenso a alguém em sentido depreciativo". O mesmo acontece fora do contexto político, na vida de todos os dias, quando se utiliza “autista” para ofender ou atacar alguém. “É interessante que grande parte das pessoas que o dizem, apenas utiliza ‘autismo’ para falar mal de alguém, porque nunca os ouvi, ou li, a falar sobre o Autismo e das necessidades de apoio aos autistas. Somos novamente um peão para insulto, em vez de pessoas reais que precisam de direitos”, completa Sara. 

Joe Santos, co-fundador da Vencer Autismo, conta que enviou um email tanto para Camilo Lourenço como para Marta Temido a explicar porque não o deviam fazer. Ainda assim, diz que, “ao contrário da grande maioria da comunidade autista”, ficou “muito contente quando a Ministra e o Camilo utilizaram o adjetivo autista”. Explica porquê: “o grande problema do autismo é o estigma negativo, é a falta de compreensão. A sociedade não entende o autismo. Os professores e educadores, não entendem o autismo. Os pais não entendem o autismo. Os psicólogos não entendem o autismo (na Universidade estudam duas páginas sobre autismo). Os terapeutas, muitos deles, não entendem o autismo. É necessário haver uma transformação. Se uma ministra da saúde utiliza o termo ‘autista’, é óbvio que não está muito familiarizada com o autismo e com a compreensão da realidade das pessoas que têm autismo e os seus familiares. Isto é só uma amostra de que a sociedade não entende autismo. E quem deve entender autismo? Todos.”

Carolina partilha que não se sente “pessoalmente ofendida”, ainda que sejam micro-agressões que acontecem no dia a dia, mas que tenta sempre “explicar que as pessoas não sabem, claramente, o que é o autismo”. 

Pensar em autismo, hoje, é ver possibilidades ilimitadas e celebrar a diversidade

Quando Carolina diz que quem utiliza “autismo” como um insulto “claramente não sabe o que é o autismo” deixa claro que não existe, de uma forma geral, consciência da diversidade. Para Sara, “um dos maiores desafios” que as pessoas com PEA têm “pela frente” é a “desconstrução e reivindicação da pluralidade”. “Infelizmente, ainda hoje o Autista é representado como o homem branco, heterossexual e cisgénero. No entanto, hoje em dia já sabemos que temos bem mais diversidade do que pensado inicialmente”, explica. 

Sara, que se identifica como pessoa queer, explica que, “atualmente, pensa-se que o facto de não termos um “Manual” da sociedade, visto o Autismo ser uma condição que impacta a socialização, leva a que exploremos mais quem somos, e não aceitarmos diretamente o que a sociedade diz ser aceite”. “No entanto”, ressalva, “ainda temos um baixo nível de diagnóstico na comunidade negra, onde tendem a receber mais o diagnóstico de Perturbação de oposição e desafio, e nas mulheres, que recebem mais o diagnóstico de bipolaridade e personalidade borderline”. “O caminho é longo, mas cada vez mais a diversidade do espectro está à vista, e, pessoalmente, eu acho que é uma das partes mais bonitas do Autismo.”

Em 2019, Caui apresentou a talk “Tengo autismo, soy diferente… soy única”, no TEDxXardíndoPosío. Na altura com 20 anos, já a estudar teatro, partilhou a sua experiência enquanto jovem autista, a sua forma de ver o mundo e de se relacionar com as pessoas. A certa altura, disse que “a vida tem sentido se nos permitirmos a sentir”. “Uma coisa que eu sinto é uma grande atração por mulheres; e sim, estou a falar de amor. Quando vejo uma mulher, sinto mariposas na barriga. Nunca me apaixonei por um homem. Mas há pessoas que não entendem isso, há pessoas que me julgam por isso. Mas, o que importa se é mulher com mulher, homem com homem ou se é homem com mulher? O importante é sentir. O importante é amar. (...) Não permitais que o que os outros criticam em vocês vos impeça de ser verdadeiramente felizes. De VIVER — em maiúsculas”, disse na mesma apresentação. 

Eduardo Ribeiro, presidente da AIA, recorda que o termo “autismo” foi cunhado, em 1943, por Leo Kanner e que, na altura, a percepção do que é hoje a PEA era mais limitada. Há um caminho que começa a ser feito, que passa, também, por englobar diversos níveis de autismo, que antes não eram considerados, “no mesmo guarda-chuva”.  “Ao princípio não se apelidou as pessoas com Asperger como pessoas com autismo, não eram consideradas autistas, só agora, muito recentemente, é que entrou tudo no mesmo guarda chuva, devido a características muito similares ou de comunicação porque, no fundo, a grande diferença que havia aqui entre os Autistas e os Asperger era a parte da comunicação. O espectro do autismo começava no autista severo e acabava no autista savant, que é aquele 1% dos autistas que são geniais”, explica.

Se em tempos não se questionava tanto “o lugar de fala” de pessoas com PEA, hoje há cada vez mais ativistas a reclamá-lo. Para Sara, a questão do “lugar de fala” é “uma questão histórica”; desde a descoberta tardia às “falsas ‘curas e causas’”, até “nos anos 89/90 poucos (ou nenhuns) autistas adultos terem o diagnóstico”, as vozes predominantes da defesa pelos direitos dos Autistas eram as vozes dos seus pais, cuidadores ou educadores. “As terapias e apoio eram inexistentes (ou horrorosas), e os autistas eram colocados em instituições. No entanto, com o tempo, esses autistas cresceram, e com o diagnóstico a ser mais acessível (apesar de ainda termos muito que fazer), assim como melhores terapias e a integração do síndrome de Asperger no Espectro, levou a que os adultos autistas de hoje tomem o lugar nas ‘rédeas’ do seu próprio ativismo. Claro que alguns pais aprovaram e apoiaram esta mudança, mas muitos continuam a falar pelos autistas.”

A criadora de Autismo em Português deixa claro que “o ativismo de aliados sempre foi, e sempre será, preciso”, mas que é importante compreender que “são experiências diferentes, o de ser autista, e ser pai neurotípico de autista”. São experiências “complementares”, mas acredita que “é arriscado quando alguns pais neurotípicos, falam pelos autistas como um todo, e tomam decisões que vão impactar toda a comunidade, e não apenas o seu filho”. “Historicamente, nem sempre a decisão de neurotípicos foi a melhor para os autistas, por muito boa intenção que tenham tido. Os autistas precisam de tomar as suas próprias decisões, e ter a capacidade de, juntos, construírem os seus direitos, com o apoio dos pais.”

Como contava Carolina, de facto, o apoio dos pais é essencial para determinar quão ilimitadas são as possibilidades da criança com autismo. “Os pais, cuidadores ou professores têm um papel extremamente importante em nós. Se não fosse por pais, avós, irmãos, primos, tios, uma equipa que se juntou à minha volta para me emancipar, eu não estaria aqui a falar contigo. Por isso, as pessoas que te ajudam a crescer são muito importantes”, partilha.

Na Vencer Autismo, o objetivo é emancipar os pais e educadores. Em entrevista ao Gerador, recorda como há 11 anos, quando faziam as primeiras partilhas enquanto pais de pessoas com autismo [Joe e Susana], “toda a gente entrava com um ar pesado, cinzento, de braços cruzados, como que a pensar — ‘vamos lá ver o que é que nos vão vender’”. Hoje, continua a ser “um trabalho duro”, mas está cada vez mais certo de que o seu trabalho não é “dar o peixe nem a cana de pesca”. “Eu dou este exemplo: fala-se muito de dar o peixe ou dar a cana de pesca; nós nem damos o peixe, nem a cana de pesca, explicamos como é que os peixes agem e reagem, porque é que os peixes preferem estar dentro de água, o que é que podem gostar e o que lhes pode incomodar, dando exemplos de alguns peixes que nós conhecemos. As pessoas podem pegar nas suas conclusões e, a partir daí, podem decidir se querem pescar com uma rede, com uma cana, como preferirem. E temos visto que esta abordagem é muito mais efetiva do que dar uma cana de pesca, com instruções de como se pesca um determinado peixe.”

Porque “não há um caso igual” nem existe um “manual de instruções”, Paula conta que na AIA, por decisão da equipa, entenderam que não devem utilizar “um único modelo de atuação”. “Isso exige uma flexibilidade muito grande da nossa parte, mas é o que faz mais sentido. Eu costumo utilizar esta expressão que é: eu trabalho com crianças e jovens do Espectro do Autismo todos os dias e tenho a necessidade de me reinventar todos os dias”, diz a psicóloga.  Na AIA, além do apoio que dão a Autistas, há também uma atenção especial dada aos pais — não tivesse a associação sido criada por um grupo de pais de crianças Autistas, em 2009 — , que resulta não só em dinâmicas que os tornam co-terapeutas, mas também em reuniões de partilha.

“É interessante os pais comunicarem ao mesmo nível e trocarem experiências, e muitas vezes darem soluções uns aos outros. A última reunião em que estive foi muito interessante, porque se falou de sexualidade — de eles terem o seu momento íntimo, de se masturbarem, que são coisas naturais. É natural e é normal que isso aconteça. É muito interessante os pais perceberem isso a conversar uns com os outros; não é alguém com algumas credenciais que vem dizer ‘isto é assim, isto é assado’”, conta Eduardo Ribeiro.  

Carolina conta que quando algumas pessoas neurotípicas percebem que está numa relação há três anos, ficam muito surpreendidas — “Quando eu digo às pessoas que tenho autismo e tenho namorado, elas ficam tipo — ‘como assim?’ ”. Sara, que é bastante vocal no seu trabalho ativista quanto a questões de relacionamento e sexualidade, diz que “o autista precisa de uma educação sexual atípica”, visto que tem “necessidade de informação que as pessoas não autistas não precisam, desde como se flirta, a como lidar com hipersensibilidade ao toque na intimidade”. 

Ainda que existam muitos casos como o de Carolina, com uma relação estável há três anos, em que é “muito feliz”, Sara começou a perceber que muitas mulheres autistas, assim como pessoas não-binárias e Trans, tinham histórias de violência que se repetiam. “Os resultados confirmaram isso, com 81% das pessoas a dizer que tiveram um relacionamento abusivo. Ao pesquisar sobre investigação na área, descobri alguns artigos sobre como a mulher autista tem mais experiências sexuais negativas do que homens autistas, mas nada sobre o porquê. Daí, nasceu a ideia de tentar compreender melhor o quão mais expostas a violência as mulheres autistas estão, e como podemos ajudar.” A partir daí, surgiu a oportunidade de organizar webinars de Sexualidade e Consentimento, na Associação Portuguesa Voz do Autista, que integra, cujo foco é “colmatar alguma da falta de informação atual, assim como providenciar apoio”. 

Neste processo de emancipação coletiva, Sara conta que já recebeu “ameaças, difamações, e até uma situação num colóquio de mulheres autistas, em que colocaram música e som de animais”, para as “silenciar”. “O maior desafio é ignorar e continuar a fazer o nosso trabalho, enquanto estas situações acontecem. Cada vez que falo sobre ser queer, recebo mensagens muito pouco simpáticas. Infelizmente, as redes sociais tendem a proteger mais a liberdade de expressão dessas pessoas do que a nossa segurança, e tem-se falado bastante na necessidade de um maior controlo e responsabilização de pessoas que fazem bullying online. Penso que todos os ativistas que conheço já as receberam, principalmente quando falamos contra o mercado do Autismo (a imensidão de banha de cobra vendida para nos curar, que alguns já colocaram autistas em hospitais, ou até os matou).”

Fazer muito com pouco: desafios numa sociedade (ainda) pouco consciente

Carolina estuda, neste momento, Ciências da Comunicação, na Universidade do Porto. A experiência tem sido “muito boa” e não poupa elogios ao Núcleo de Apoio à Inclusão. “É bom saber que é uma experiência personalizável e não algo como ‘se tens autismo, é isto a que tens direito’”, conta. Já Sara, que continua a viver no Reino Unido, onde trabalha na área de investigação e dados, recorda que, ainda que essa adaptação já exista, em Portugal “temos apenas 2,66% de pessoas com deficiência na administração pública, quando somos [pessoas com deficiência] 18% de Portugal”. 

“A maior diferença que sinto no Reino Unido é a consciencialização. Em Portugal, ainda temos em plena Assembleia de República, como aconteceu há pouco tempo, [pessoas] a falarem do Autismo como doença, quando é uma deficiência de neurodesenvolvimento (não é uma doença). Também é raro a inclusão de autistas nas organizações que tomam decisões por nós, assim como no governo. No Reino Unido, sou considerada pessoa com deficiência e tenho facilidade na prioridade, acesso a serviços e apoio no trabalho. Em Portugal, não tenho direito nem a prioridade, por apenas incluir pessoas com deficiência acima do 60%, e não todas as deficiências. A acessibilidade em Portugal ainda tem muito por onde evoluir, e espero que o faça. A acessibilidade passa por ter rampas [em lugares públicos], mas não só.”

A falta de acessibilidade é sintoma de um problema maior: os escassos apoios na intervenção precoce. No caso da AIA, não existe nenhum tipo de apoio estatal nesta fase de intervenção, sendo “uma parte assumida pelos pais, e outra pela associação”.“Costumamos fazer algumas atividades, nomeadamente em Braga, que também nos traz um retorno financeiro e que nos ajuda na nossa sustentabilidade, porque também estamos a praticar preços abaixo do mercado e percebemos que, muitas vezes, para um pai, mais dois euros por terapia significa menos uma terapia”, partilha Eduardo. “Aqui é que começa a haver o problema: 70% das famílias que estão connosco em terapia têm uma capacidade financeira baixa. O Estado, como tem o Sistema Nacional de Intervenção Precoce, pode parecer que já chega, mas não chega. Está muito longe das necessidades.” 

Joe Santos, responsável pelo projeto Autism Rocks!, com a chancela da Vencer Autismo, que reuniu 17 municípios da cidade do Porto e que agora se estende para a zona do Cávado e do Alto Minho, diz que também o apoio municipal nem sempre é efetivo. Neste projeto de palestras, workshops e mentoria (que será gratuita na zona do Cávado e Minho), faz um “levantamento de necessidades” que lhe tem mostrado que os municípios da Área Metropolitana do Porto estão “muito longe de perceber a realidade do autismo”. O processo com os municípios “é muito burocrático, muito lento e trava a velocidade necessária para educarmos a população para esta realidade”. 

No seu trabalho de investigação, Sara tem visto que, “por vezes, as mulheres não são incluídas nos dados”. “A explicação disto é que as fases hormonais da mulher influenciam resultados. No entanto, isto levou a que os traços típicos de Autismo, apenas estudados em homens, tenham algumas diferenças externas das mulheres, o que levou a um subdiagnóstico de mulheres autistas. Ainda hoje existem cerca de 200.000 mulheres autistas no Reino Unido que não sabem que são autistas. Eu acredito que em Portugal seja uma proporção maior. Esta falta de dados nas mulheres não impactou só as mulheres Autistas, mas muitas áreas da Saúde.”

Educar para a diversidade é um ponto primordial quando se pensa no progresso. Para pensar o autismo com todas as suas multiplicidades, Sara acredita que não só se deve educar neurotípicos para que sejam pessoas empáticas, mas também que se olhe para os dados já existentes e que se procurem as camadas ainda encobertas: “grande parte da investigação no Autismo foi direcionada para descobrir como nos tornar mais ‘normais’, mas recentemente a comunidade cientifica aliou-se aos ativistas autistas (inclusive a inclusão de autistas nos Comittees de ética começa a ser comum), para estudar o que precisamos, e muitos dados preocupantes surgiram como: apenas 16% no Reino Unido está empregado a tempo inteiro, os Autistas têm um risco nove vezes superior de suicídio que a população geral, uma em cada cinco mulheres com anorexia são autistas, entre outros. Isto permite que nos dê uma meta e um objectivo. Se não tivermos dados, como acontece em Portugal, não temos nada a resolver”. “Longe dos olhos, longe da mente.” Aproximemo-nos. 

Texto de Carolina Franco
Fotografia via Unsplash

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