Na edição do semanário Expresso do passado dia 4 de dezembro deparei-me com uma entrevista da pianista Maria João Pires e, designadamente, a afirmação que profere a páginas tantas e que transcrevo: “Não vale a pena mentir e dizer que Belgais está aberto, que vai fazer coisas, que Portugal está a apoiar: não, Belgais agora não está a fazer nada”.
Tive o privilégio, no início da década de 2000, de, ainda que brevemente, colaborar diretamente com o Centro de Artes Belgais. Neste sentido, a leitura da entrevista de Maria João Pires devolveu-me muitos momentos importantes de um projeto que marcou o meu percurso no setor cultural e que, hoje à distância de 20 anos, considero que me deu preparação e sensibilidade para outros que vim a desenvolver em contextos semelhantes, ou seja, localmente, longe dos grandes centros de oferta e decisão como Lisboa e Porto.
Nesta perspetiva, Belgais simboliza uma significativa viragem no meu contexto de atividade – até então tinha sobretudo colaborado em projetos ancorados em Lisboa ou com evidente dimensão internacional – e representa um papel introdutório a outros que chegariam, em breve, como a Direção Artística do Teatro em Viseu ou o Conselho Consultivo das Comédias do Minho.
Quando falo da primeira vida de Belgais, falo igualmente de um momento ímpar moldado pela indiscutível generosidade dessa personalidade única que é Maria João Pires, tanto na dimensão humana quanto artística, naturalmente.
É justo que se refira também, o pioneirismo de um projeto num país que tentava encontrar um rumo e um propósito, após a viragem do milénio e na ressaca da EXPO’98 como momento irrepetível de exaltação e júbilo, coroando um processo de afirmação cultural de Lisboa e, em breve do Porto, sem cuidar ainda, não obstante a recorrente alusão na retórica política, de um território nacional, cuja carência de infraestruturas e sobretudo de uma “superestrutura” cultural, seguia bastante atrás no processo de democratização.
Não obstante, alguns erros poderão ter sido cometidos, mas neste contexto devemos considerar as duas décadas que nos distanciam dessa primeira existência, sublinhando que, aqueles eventualmente ocorreram, sendo, porém, forçoso que sejam justamente partilhados, sobretudo num contexto em que o investimento público na cultura era considerado sob uma perspetiva totalmente distinta da que hoje existe.
Voltando à conversa de Maria João Pires e Luiciana Leiderfarb, dela decorre a urgência de nos libertarmos do chumbo que nos cerca questionando-nos sobre a importância se, para além dele, não poderemos prefigurar uma segunda vida de Belgais, reerguida nos valores originais concebidos pela artista. Uma segunda vida diferente, necessariamente, da primeira, amadurecida e integrando uma análise desapaixonada e uma profunda reflexão sobre o futuro.
O resto deveria permanecer intocável: a abrasão dos dias, a frescura das noites, a perturbadora visão sobre uma outra forma de viver escutando, a pródiga limonada sobre as mesas e o corpo de Maria João ao piano confirmando uma aliança sublime e eterna.
-Sobre Miguel Honrado-
Licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pós-graduado em Curadoria e Organização de Exposições pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa/ Fundação Calouste Gulbenkian, exerce, desde 1989, a sua atividade nos domínios da produção e gestão cultural. O seu percurso profissional passou, nomeadamente, pela direção artística do Teatro Viriato (2003-2006), por ser membro do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência – Descobrir (2012), pela presidência do Conselho de Administração da EGEAC (2007-2014), ou a presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II (2014-2016). De 2016 a 2018 foi Secretário de Estado da Cultura. Posteriormente, foi nomeado vogal do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém. Hoje, é o diretor executivo da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC), que tutela a Orquestra Metropolitana de Lisboa e três escolas de música.