A empatia e solidariedade não deviam de vir de um lugar utilitário.
Não é preciso que seja sobre nós. Não é preciso que seja sobre a nossa própria libertação. Embora eu acredite que a liberdade de todos os povos, de todas as pessoas, é também a nossa própria libertação e a única que faz sentido.
Neste caso, acredito com convicção que a Palestina vai, sim, libertar-nos a nós.
É importante, para contexto, deixar escrito que anti-sionismo não é a mesma coisa que anti-semitismo. A propaganda do Estado de Israel tenta muitas vezes colar ou misturar os dois conceitos. Ser anti-semita é o preconceito, hostilidade ou discriminação contra judeus. No entanto, o projecto sionista (implementação do Estado de Israel) não é sobre religião. É um projecto imperialista e capitalista.
Ser anti-sionista, na sua génese, nem sequer é ser anti-pessoa-israelita, mas sim contra o Estado de Israel. Parece complicado, mas historicamente, não é assim tanto. Há israelitas judeus anti-sionistas por reconhecerem como foi o surgimento do Estado de Israel e aquilo a que se deve o seu crescimento.
Não sou anti-semita, nem é aquilo que vejo na maioria dos movimentos anti-sionistas. A maioria das pessoas que falam em anti-sionismo falam sobre o Estado israelita (a propaganda do Estado, as políticas do Estado, etc.) e não sobre as pessoas israelitas, ou judeus, enquanto indivíduos.
Aliás, aqui entre nós: parece-me um bocado óbvio que a maioria destas pessoas (que lutam pela libertação de um povo) não são pessoas xenófobas, e que isto não é sobre religião. Podemos querer comprar esse discurso para as descredibilizar? Podemos, e é isso que a propaganda israelita tem feito.
Vivendo em autênticas prisões a céu aberto, sendo-lhes roubada a àgua para depois lhes ser cobrada, apagando os seus arquivos, limitando o acesso aos seus recursos naturais, prendendo e torturando as suas pessoas sem critério, sendo subjugados a técnicas de humilhação, sem acesso às plantações que são suas só para que depois tenham de comprar - ao seu colonizador - aquilo que foi produzido nas suas terras.
«Não precisamos de falar do nosso direito de resistir, porque não é um direito, mas uma forma de ser e de sobreviver para os palestinianos. […] A resistência, em todas as suas manifestações e formas, não precisa da pré-aprovação de leis e códigos internacionais estáticos. Os oprimidos não precisam de reivindicar autoridade sobre a sua própria opressão, os acontecimentos contínuos da história – a nossa história – é o que nos permite essa autoridade. [...] É nosso dever registar este momento não como vítima, mas como as pessoas que o recordarão, registarão, sobreviverão e resistirão.» – Sindicato dos Professores e Funcionários da Universidade de Birzeit, Palestina Ocupada
Estes anos (2023/2024) vão ficar registados historicamente como as datas em que os palestinianos enfrentaram – corajosamente – o fascismo colonial e gritaram em defesa das suas casas, da sua humanidade e da sua vida. Fazem-no com a preocupação de que as suas histórias não sejam apagadas. Conseguiram, com muito sacrifício, amplificar as suas vozes ao mundo. Fazem-no para que possamos construir uma memória colectiva. E ao fazerem isso, fazem-no também por nós.
A perspectiva palestiniana é intersecional com todas as lutas que atravessamos. A resistência palestiniana põe em causa o real poder das organizações internacionais (como as Nações Unidas, ou o Tribunal Internacional de Justiça), a noção de respeito pelas leis e os contratos que construímos enquanto sociedade (como limites pelos direitos humanos em estratégias de guerra e a aplicação de sanções caso não sejam cumpridos), ou a real diplomacia e democracia quando dois ou três países têm o poder de vetar decisões globalmente votadas.
A brutalidade monstruosa de um genocidio que tenta apagar completamente a memória da existência de um povo: queimando e destruindo tudo o que são provas materiais, e - enquanto deixa que os mais velhos morram por consequente falta de acesso à saúde e comida - fazendo dos principais alvos médicos, hospitais, jornalistas, mulheres, e crianças para não permitir o crescimento de novas gerações… torna-nos, a nós (reforço propositado), todos, as suas únicas testemunhas.
A resistência palestiniana reforça que o feminismo só faz sentido se for anticolonial, que ser-se anti-racista é sobre a libertação de todos os povos, que não existe «orgulho» LGBTQIA+ sem o direito à autodeterminação, que a luta de classes é de mãos dadas com todos os trabalhadores imigrantes que fogem de opressão nos seus países.
As raízes de tudo o que está errado, na base de todas estas lutas, são denunciadas quando aprofundamos a história da resistência palestiniana, e – por outro lado – reforçadas por uma ocupação genocida que está a acontecer à vista de todos.
Um ativista no Egipto publicou recentemente nas redes sociais: «Não estamos a libertar a Palestina. A Palestina está a libertar-nos. Os protestos são completamente proibidos no Egipto. É graças ao povo da Palestina e de Gaza que podemos saborear este pouco de liberdade. Devemos-lhes tudo. Tudo.»
Palestina livre. Sempre.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre a Carolina Pereira-
É ativista na área dos direitos humanos, feminismo e media, tanto no terreno, como fazendo uso das histórias para motivar a mudança e organizar movimentos grassroot. É fundadora da HUMAN (dontskiphumanity.com) –, centrada em mobilizar e capacitar uma nova geração de ativistas através de impact storytelling, e co-directora da Sathyam Project (Índia) – trabalhando na educação de raparigas para quebrar ciclos de pobreza nas suas famílias.