Tínhamos um vizinho que nunca tirava a boina da cabeça.
Em 34 anos que levei de convivência com aquela vizinhança não me lembro de ter visto cabelo ou careca ao vizinho, que obviamente tinha por alcunha "o Bóino".
Nas primeiras vezes em que meti pés e cabeça na aldeia não percebi bem a alcunha. E recordo-me de ter perguntado à minha mulher:
- "Porque é que lhe chamam "o Bósnio"? Passam fome lá em casa? É por ser magro?"
Estávamos na época do grave conflito nos Balcãs, da guerra civil, o que talvez perdoasse a minha confusão.
- "Não é Bósnio! É Bóino!!"
- "Bóino?? De boina?"
- "Sim, parece que saiu da barriga da mãe com ela já enfiada na cabeça. Nunca a tira. Nem entra na igreja para não ter de a tirar."
O "vizinho Bóino" tornava-se, assim, mais uma estranheza da província para o imberbe sulista, a juntar à mania de "beber um branquinho antes do almoço, porque o tinto de manhã fazia mal".
Para não falar da lenda local que era o “Tio Zé da Viúva”, endireita da aldeia que aparentemente sabia mais de ossos a dormir do que os médicos todos do hospital, juntos e acordados. E, à conta disso, já proprietário de vários terrenos e vinhas…
Quem pensa e diz que a boina é adereço provinciano e de gente ignorante corre algum risco, não vá dar de frente com quem tivesse sido militar em certas forças especiais ou com algum amigo basco, gascão ou beirão...
Nesses locais do mundo, a boina é uma “gravata” agrícola de honra, um substituto proletário do chapéu de feltro dos proprietários rurais ingleses.
Uma boina no Norte de Espanha é um símbolo de resistência. Para já não falar das aplicações castrenses em vermelho, verde, castanho ou preto.
E, em mais do que um sentido, antes quero eu levar a orgulhosa boina empoleirada no cocuruto do que um “barrete” enfiado até às orelhas.
Lembrei-me hoje desta história do nosso vizinho "Bóino", porque se tomou um mau hábito julgar cada um pelo adereço (a boina) atribuindo-lhe mais importância do que o fundamental (a cabeça e os seus conteúdos).
Tenho já lido críticas de restaurantes que se espraiam pelas generalidades supérfluas, enchendo o espaço croniqueiro com frases como:
- "Uma casa muito bem decorada, cheia de luz e de bom gosto. Excelentes copos e demais atavios sobre as mesas. Clientela bonita (seja lá isso o que for). Um must para ver e ser visto!"
Continuando com mais uns parágrafos neste tom.
"E sobre a comida?" Perguntarão vossas mercês.
Pouco. Pouquíssimo. Apenas umas franciscanas frases:
- "É uma casa ainda em processo de crescimento, tem amplo espaço para melhorar. A vontade de experimentação do jovem chef terá resultados garantidos dentro de pouco tempo."
Para quem lê nas entrelinhas, nesses restaurantes investiu-se demasiado na "boina" e um pouco menos nos "miolos". Poucas palavras sobre o serviço, quase nenhuma sobre a confeção e sobre o que se serve mesmo à mesa.
Trata-se, portanto, de uma crítica sobre a decoração de interiores.
Parece existir uma falácia quando se investe no ambiente, na decoração, nos atavios de mesa e sala, mas há quem se esqueça de investir em bons e seguros profissionais, de mesa, de copa e evidentemente de cozinha.
Já para não falar da matéria prima que deveria ser a primeira preocupação do “quartel-mestre general” que comanda estas tropas.
Hoje, com a crise funesta que atravessamos, este amadorismo na restauração deve estar a acabar lentamente.
Mas foi chão que deu uvas por algum tempo, sobretudo fazendo-se valer naqueles nichos de mercado para quem o restaurante não era tanto um local onde se vai comer bem, mas antes um adereço de moda onde certa elite procurava desfrutar de uma “experiência”, tal e qual como se fosse a um espetáculo de “performance”.
Quem via passar o nosso vizinho na rua dizia: -"Lá vai o Bóino".
Antes isso do que dizer: - “Mas que grande barrete”.
-Sobre Manuel Luar-
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.