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Braga em Obras: uma volta artística à cidade bimilenar

Bracara Romana foi fundada pelo imperador César Augusto, por volta de16 a.C., e construída no…

Opinião de Helena Mendes Pereira

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Bracara Romana foi fundada pelo imperador César Augusto, por volta de16 a.C., e construída no lugar de um povoado anterior de origem celta e após a pacificação definitiva da região. Durante dinastia Flávia (69 a 96 d.C.), Bracara Augusta recebeu o estatuto municipal e foi elevada a sede do convento, tendo tido funções administrativas sobre uma extensa região e, a partir da reforma de Diocleciano, que governou o império de 284 a 305, passou a ser a capital da recente província da Galécia, ou seja, a região que, sumariamente, enquadraríamos na ação geográfica do Eixo Atlântico, cuja cultura celebramos neste ano de 2021.

Maio de 2021 foi o mês escolhido para a publicação de Braga em Obras, que se inaugura, em imagens, com MOVIMENTO PERPÉTUO, de 2000, da autoria de Pedro Cabrita Reis (PT, 1956), obra que celebra a cidade bimilenar. Pedro Cabrita Reis é um nome maior da arte contemporânea nacional e tem na pintura o seu espaço de criação privilegiado, Mas, quando a sua genialidade invade o espaço público em verdadeiros monumentos a três dimensões, o artista capta a semiótica das formas, relacionando matéria e lugar, simbologia e estética. Nesta obra, que lembra um aqueduto romano interrompido, em arco de volta perfeita, há uma irregularidade intencional na estrutura, que intensifica a visão poética que o artista coloca na forma como se relaciona com os lugares através da obra que pensa para o espaço público. Este seu gesto ininterrupto assinala a fundação romana do território e está implementado na denominada Colina da Cividade, onde se encontram diversos vestígios romanos.

A escolha desta obra como inicial deste livro cumpre, assim, um duplo objetivo: reforçar o espetro temporal que é a História de Braga, evidenciando sua antiguidade e importância; e, por outro lado, afirmar que este é um território onde a vanguarda e o contemporâneo também são marca, elegendo um artista como Pedro Cabrita Reis como exemplo do que melhor se faz em Portugal no campos das artes plásticas e visuais. Ainda, a subtileza de esta publicação ser também o compromisso de um movimento que se pretende perpétuo: o de continuar a dotar o espaço público de obras de arte, acreditando que este é um dos canais que mais promove a democratização do acesso à arte e à cultura, que consideramos como bens essenciais e os únicos capazes da construção de uma sociedade mais livre, solidária e justa, com igualdade de oportunidades para todos, independentemente do credo, género, orientação sexual, contexto geográfico, social e/ou familiar. O contacto quotidiano com a arte e com a cultura é promotor de conhecimento, que combate a ignorância, a indiferença e os fanatismos. Contacto quotidiano com a obra de arte pode ter o poder de aproximar os cidadãos do elevador social. Contudo, não basta que se implementem novas obras de arte em espaço público. É preciso que se inventarie, investigue e divulgue as que existem, estando certos de que, ao fazê-lo, estamos a transformar os territórios em autoestradas de estórias e de História, em pontes de uma mega narrativa identitária, em rotundas de excitantes e permanentes desafios de descoberta que nos fará querer ficar, saber mais e gritar aos quatro ventos sobre tudo aquilo que o espaço público, comum, democrático, de todos, tem para nos contar.

O projeto Braga em Obras, que abreviamos para BeO, parte deste sonho de, em ano de Capital da Cultura do Eixo Atlântico, fazermos do território um imenso museu. O projeto consubstancia-se, assim, com a publicação de um livro com imagens e textos sobre a totalidade de obras de arte em espaço público no concelho de Braga, numa extensão cronológica que vai do século XIX à atualidade, com todos os seus conteúdos em três idiomas: português, inglês e galego; e, ainda, com a colocação de sinalética em todas as obras, tomando o tal museu vivo, em algo dinâmico e dotando-o de ferramentas para que todos os públicos o possam desvendar. Cada obra conta uma história: a do seu autor e a do seu propósito, contexto ou homenageado. Braga, cidade milenar, revela-se e deixa-se descobrir. BeO, nomenclatura que brinca com a fama da cidade como cluster da construção civil, é, assim, sobre outras obras, sobre outras construções: as simbólicas e as transcendentais. É sobre a Arte que indaga, democraticamente, o espectador que vagueia, passeia ou labuta, desafiando-o a saber mais, a não ser inerte ou indiferente, mas curioso, atento, sedento de conhecimento. Todos reagimos ao estético e todos compreendemos na História a perceção dos ciclos que nos moldam no presente e nos aludem de futuro. Como escreveu Juan Carlos Román em Los 100 problemas del arte contemporâneo: “Muitas vezes falamos sobre arte, como se fosse um conceito que se derrama igualmente por todas as sociedades, da mesma forma que se apresenta a água ou o sol. Em qualquer parte do mundo, a água molha e o sol aquece. Mas a arte não é um bem terrestre, mas sim uma construção simbólica que adaptamos às nossas necessidades de significado tribal.”

No espaço e no tempo, a estória deste BeO escreve-se no caminho simbólico entre os dois dos arquitetos que orgulham a urbe: André Soares (1720-1769) e Carlos Amarante (1748-1815). A rua do Raio herda o nome do palácio, também conhecido como “Casa do Mexicano” e que se constitui como um dos mais notáveis edifícios de arquitetura civil da cidade, em estilo barroco joanino. Obra de André Soares. A zet gallery fica nesta mesma rua, do Raio. A Câmara Municipal de Braga tem grande parte dos seus serviços no antigo convento do Pópulo, um dos primeiros projetos de Carlos Amarante e inserido no contexto da renovação urbana da cidade de Braga, que vinha sendo empreendida pelos Arcebispos. Neoclassicismo, desta vez, que se evidencia no desenho da fachada e na própria estrutura.

Entre o Raio e o Pópulo, pontos fronteira, dir-se-ia, da cidade bimilenar, ocorreu-nos a importância e urgência de olharmos o concelho para lá dos seus patrimónios arquitetónicos, dos seus edificados classificados, inventariados e referenciados. Mas como proporcionar esse olhar aos públicos, proporcionando-lhes informação, em objetos que contêm factos, sobre o tudo que vaguear pelas ruas nos pode aproximar do conhecimento sobre nós e o contexto que habitamos? Como sermos mais que cidade bimilenar? Como sermos também a evidência da vanguarda e o provarmos? Entre o Raio e o Pópulo, propusemo-nos responder a estas perguntas com um projeto concreto que é também exemplo da boa cooperação, a todos os níveis, entre os setores públicos e privados. Só foi possível a publicação deste livro e a colocação de toda a sinalética, porque todos os colaboradores envolvidos, quer da zet gallery e do dstgroup, como da Câmara Municipal de Braga, a ele se dedicaram como quem se dedica a uma missão de vida. Percebemos, cedo, que nos movíamos todos pela vontade de mudar o mundo e não apenas por nele existirmos a cumprirmos tarefas.

A cidade de Braga, que tem esta marca secular das grandes obras, das grandes construções, é também conhecida por um tecido empresarial muito concentrado na área da engenharia e construção. A fama terá retirado magia à realidade e pouco contribuído para a perceção de um espaço público que é muito mais que um amontoado de blocos, mas antes um verdadeiro museu vivo que nos conta histórias cruzadas, nos induz caminhos e nos incentiva à descoberta. A rua do Raio, a tal, tem mais do que o Palácio do Raio, marca do barroco, ou a Fonte do Ídolo, monumento que remonta à época romana. Talvez a rua sintetize, na zet gallery, o papel que a indústria e o desenvolvimento industrial têm, sempre tiveram, na transformação da cidade, sendo (ou por homenagem a personalidades ou pelo mecenato) grande parte dos motivos das obras de Arte presentes no espaço público desde final do século XIX, superiorizando-se à força e importância de marcas como a de “cidade dos Arcebispos” ou “capital da Semana Santa”. Decidimos, por isso, fazer de uma aparente fraqueza, ao nível da visão que está construída sobre a cidade, uma força e contar a história de Braga em Obras, mas, desta vez, de Arte, fazendo do espaço público o maior construtor de identidades e de sentidos de pertença para quem está, passa, vem, fica.

O dstgroup e a zet gallery têm, ao longo do século XXI, dado um contributo para dotar Braga da presença do contemporâneo e da vanguarda, não sendo por isso estranho que, na cerca de meia centena de obras de arte em espaço público enquadráveis das linguagens mais contemporâneas, a sua maioria é propriedade do dstgroup ou tratou-se de iniciativa do dstgroup a sua implementação no espaço público. O livro contempla, no total, cerca de uma centena de obras das quais, como se disse, pouco mais de metade definiríamos como contemporâneas em termos de linguagem. 21 correspondem a propostas bidimensionais, ou seja,  painéis de azulejos (três) e pinturas sobre mural (ou a dita “arte urbana”). Uma parcela de cerca de 35%, da totalidade, diz respeito ao campo da estatuária (com bustos e vultos redondos), bem como outros elementos que enquadramos nas homenagens a instituições e individualidades. Temporalmente, interessa ainda referir que cerca de 17% datam do período pré 25 de Abril de 1974 e as demais como iniciativas após a Revolução dos Cravos. É apenas estatística mas tem relevância porque há uma constância de, excluindo as propostas que enquadramos no contemporâneo, de se referenciarem figuras da Igreja e do mundo dos negócios, o que reforça o peso da religião na cidade, por um lado, também a nível simbólico, e o papel meritório da indústria e dos seus impulsionadores. O centro histórico e as freguesias adjacentes concentram a maioria dos elementos inventariados, ainda que o Sameiro, margens do rio Cávado e Palmeira sejam, por exemplo, polos a merecer visita atenta.

Do ponto de vista dos autores, o território também nos escreve sobre a História da Arte portuguesa, ao longo dos séculos XX e XXI. Entre os que dominam no período pré 25 de Abril de 1974 e que marcam a estatuária, de temática civil ou religiosa, interessa citar António de Azevedo (PT, 1889-1968), nome incontornável da primeira fase do modernismo português; e três nomes indissociáveis do segundo modernismo, todos participantes na grande Exposição do Mundo Português de 1940: Salvador Barata Feyo (AO, 1899-1990), Leopoldo de Almeida (PT, 1898-1975) e Raúl Maria Xavier (MO, 1894-1964). Em contexto de Liberdade, o concelho apresenta, em catálogo aberto, para além do já citado Pedro Cabrita Reis, autores de reconhecido mérito tais como José Rodrigues (1936-2016), Clara Menéres (PT, 1943-2018), Paulo Neves (PT, 1959), Isaque Pinheiro (PT, 1972), Miguel Palma (PT, 1964), Rui Anahory (PT, 1940), Vhils (PT, 1987), Alberto Vieira (PT, 1956), Alberto Péssimo (MZ, 1953), Rute Rosas (PT, 1972), Volker Schnüttgen (DE, 1961) ou Francisco Vidal (AO/PT, 1978), não sendo extensa na seleção, não querendo excluir ou incluir por qualidade, mas apenas por relevância em termos de um quadro referencial mais alargado.

Maio foi, por isso, o mês para nos sentirmos gratos por ter sido possível levar a cabo este projeto, em primeiro lugar, por tudo o que aprendemos sobre o território a que chamamos casa e, em segundo lugar, porque nos permiti fazermos parte deste tempo futuro que só o será na consciência do passado agora escrito.

-Sobre Helena Mendes Pereira-

Helena Mendes Pereira (n.1985) é curadora e investigadora em práticas artísticas e culturais contemporâneas. Amiúde, aventura-se pela dramaturgia e colabora, como produtora, em projetos ligados à música e ao teatro, onde tem muitas das suas raízes profissionais. É licenciada em História da Arte (FLUP); frequentou a especialização em Museologia (FLUP), a pós-graduação em Gestão das Artes (UCP); é mestre em Comunicação, Arte e Cultura (ICS-UMinho) e Doutora em Ciências da Comunicação (ICS-UMinho), com uma tese sobre a Curadoria enquanto processo de comunicação da Arte Contemporânea. Atualmente, é diretora geral e curadora da zet gallery (Braga) e integra a equipa da Fundação Bienal de Arte de Cerveira como curadora, tendo sido com esta entidade que iniciou o seu percurso profissional no verão de 2007. No âmbito da educação e mediação cultural orienta, regularmente, visitas a exposições e museus de Arte Contemporânea, tendo já lecionado o tema em várias instituições de ensino. Integra, desde o ano letivo de 2018/2019 o corpo docente da Universidade do Minho Leciona, desde setembro de 2018, na Universidade do Minho, nomeadamente no Instituto de Línguas e Ciências Humanas (Mestrado em Tradução e Comunicação Multilingue) e na Escola de Arquitetura (Licenciatura em Artes Visuais), como Professora Convidada. É formadora sénior e consultora nas áreas da gestão e programação cultural. Publica regularmente em jornais e revistas da especialidade, tais como o quinzenário As Artes entre as Letras, nas revistas RUA e MINHA. Com mais de 13 anos de experiência profissional é autora de mais de 80 projetos de curadoria, tendo já trabalhado com mais de 200 artistas, nacionais e internacionais, onde se incluem nomes como Paula Rego (n.1935), Cruzeiro Seixas (n.1920), José Rodrigues (1936-2016), Jaime Isidoro (1924-2009), Pedro Tudela (n.1962), Miguel d’Alte (1954-2007), Silvestre Pestana (n.1949), Jaime Silva (n.1947), Vhils (n.1987), Joana Vasconcelos (n.1971), Helena Almeida (1934-2018), João Louro (n.1963), entre tantos outros. Tem larga experiência em estudos de coleções, produzido e publicado extenso trabalho crítico sobre arte e artistas contemporâneos, onde se incluem catálogos e outros resultados de investigações mais profundas sobre artistas e contextos de curadoria. É membro fundador da Astronauta, associação cultural com sede e Guimarães. Tem publicados dois livros de prosa poética: “Pequenos Delitos do Coração” e “apenas literatura e não outra coisa qualquer”.

Texto de Helena Mendes Pereira
Fotografia de Lauren Maganete

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