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Brasil, vai para a tua língua!

No Gargantas Soltas de hoje Paula Cardoso reflecte sobre o ‘choque linguístico’ da presença brasileira em Portugal.

Opinião de Paula Cardoso

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Na minha infância e adolescência, o Brasil inspirava – em mim e à minha volta – sonhos de viagens idílicas que poucos podiam transformar em planos. Lembro-me de como esse fascínio era alimentado pelas novelas, tão eficazes em lançar estilos de vestir, quanto de ouvir e falar. 

Foi sobretudo a partir das novelas que me tornei fã de MPB, e que me habituei a identificar algumas variações no uso da língua portuguesa. Ônibus, geladeira, descarga, isopor, trilha sonora, ou café da manhã tornaram-se tão entendíveis quanto autocarro, frigorífico, autoclismo, esferovite, banda sonora e pequeno-almoço.

O universo Brasil levou-me, por exemplo, a pedir à minha mãe que me comprasse uma saia rodada ao estilo celebrizado pela lambada. Cresci com o privilégio de ter esse e outros caprichos satisfeitos, como a compra de cassetes – mais tarde CDs – com os grandes sucessos das novelas.

Pelo caminho, cantarolava, entre brincadeiras infantis, todas as músicas dos genéricos, a que juntava algumas expressões popularizadas por personagens emblemáticos.

Em “Vale Tudo”, por exemplo, a jornalista Solange fez-me repetir até à náusea a palavra “chérie”; enquanto “Roque Santeiro” me viciou no “Tô certo ou tô errado?”, do Sinhozinho Malta. Noveleira assumida, sempre quis saber mais sobre os actores, o que, antes da era dos motores de busca, envolveu leituras mensais das revistas “Capricho” e “Carícia”.

Acredito que, também por isso, décadas depois não preciso de uma pesquisa para saber que a jornalista Solange era na realidade Lídia Brondi (pouco depois retirada das novelas para se dedicar à Psicologia), e que Lima Duarte interpretava o Sinhozinho Malta.

Ao mesmo tempo que consumia novelas, investia parte substancial da minha mesada nos deliciosos gibis (BD) da Turma da Mônica, com os quais conheci não apenas a Mônica, como também a Magali, o Cebolinha, o Floquinho, o Cascão, a Tina, o Rolo, o Chico Bento, entre outros.

A minha proximidade com o Brasil construiu-se também a partir do futebol, que, por palavras, seguia a partir da coluna de Duda Guennes n’ “A Bola”, intitulada “Meu Brasil Brasileiro”.

Tudo isso foi acontecendo desde a minha infância, sem que alguma vez tenha sentido algum impacto negativo sobre a minha aprendizagem. 

Pelo contrário, expandi conhecimentos.

Abrir e fechar fronteiras

Custa-me, por isso, ler notícias que associam a exposição das crianças a conteúdos brasileiros a um eventual atraso no desenvolvimento de competências linguísticas, dedução que não consigo desassociar da ideia de um “português superior” em contraponto a um “português inferior”. 

De onde vem o entendimento de que há Brasil em excesso na infância em Portugal? Do acesso virtual a YouTubers brasileiros, ou da presença crescente de pessoas brasileiras no país? O problema está na língua, ou no convívio quotidiano com os seus falantes, indutor de tiques lusotropicalistas? 

Nos últimos dias, vários episódios de xenofobia plantaram em mim esses e outros questionamentos, devolvendo-me a essa notícia sobre o alegado dano do “brasileiro” sobre a fala das crianças portuguesas.

Um dos casos de ‘choque linguístico’ que testemunhei aconteceu numa sala de aula, onde o clima de tensão entre alunos portugueses e brasileiros se revelou tão acirrado quanto normalizado. Inclusivamente junto de professores, que me pareceram mais preparados para validar discursos xenófobos do que para os identificar, condenar e desmontar.

Como se não houvesse da parte de quem acolhe o dever de reflectir sobre o que isso significa na prática. Como se fosse aceitável ouvir alunos defender algo do tipo: “Portugal para os portugueses, e só no português de Camões”. Como se as sociedades não fossem organismos vivos, expostos a novos agentes e permeáveis a transformações. 

Sabemos que o são e, diante da crescente presença de alunos brasileiros nas escolas portuguesas, muitos dos quais a chegar em idades já avançadas do seu processo de escolarização, temos o dever de fazer mais e melhor.

Comecemos por reconhecer que as pessoas brasileiras falam uma variante de português, em vez de sugerirmos – e até afirmarmos – que “não sabem falar português”. 

Reflictamos sobre a urgência de humanização das nossas políticas, nomeadamente de inclusão. Porque encaminhar alunos brasileiros para aulas de “Português língua não materna” não deveria sequer ser opção. Mas garantem-me que está a acontecer. Num abrir que se revela um fechar de fronteiras.

-Sobre a Paula Cardoso-

Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.

Texto de Paula Cardoso
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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