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Bruno Amaral de Carvalho: “É profundamente antidemocrático acharem que um jornalista deve esconder as suas convicções”

Bruno Amaral de Carvalho é um dos poucos jornalistas portugueses a cobrir a atual guerra na Ucrânia no outro lado, o lado da Rússia. Oito meses depois de ter estado na região do Donbass, o jornalista freelancer regressou a Portugal e deu uma entrevista ao Gerador, na qual falou dos desafios do jornalismo de guerra, dos perigos que enfrenta ao acompanhar o conflito e de como é ser alvo de crítica social permanente, tendo mesmo chegado a ser considerado pró-russo por manter uma posição crítica relativamente aos ataques ucranianos.

Texto de Mariana Moniz

Bruno Amaral de Carvalho. Créditos: David Cachopo

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Na sociedade ocidental, os órgãos de comunicação social têm marcado a sua posição enquanto defensores da Ucrânia, apresentando apenas a visão dos civis e dos exércitos que se mantêm na linha da frente do país invadido. Bruno Amaral de Carvalho destaca-se como o primeiro jornalista português que optou por revelar o lado do agressor, cobrindo a guerra na região do Donbass. Atravessou diversos territórios separatistas pró-russos, como Donetsk, Mariupol e Luhansk, e procurou “dar voz” aos civis dessas cidades, que também sofrem com o atual conflito.

Após frequentar a Escola Superior de Comunicação Social (ESCS) , o jornalista freelancer tem vindo a trabalhar em vários meios de comunicação nacionais e internacionais, desde a Voz do Operário, onde decorreu a nossa entrevista, o jornal Público, o jornal galego Nós Diàrio e a CNN Portugal, onde publica a maioria dos seus artigos sobre a guerra na Ucrânia.

Para além dos artigos que escreve, Bruno Amaral de Carvalho também partilha a evolução do seu trabalho nas redes sociais, nomeadamente no Telegram, onde os leitores podem ter acesso às diversas atualizações da guerra e do que se passa na região do Donbass.

O repórter, que é também deputado municipal no concelho da Amadora, tem sido alvo de várias críticas e de julgamentos sociais por desenvolver o seu trabalho numa região pró-russa. Ainda assim, garante-nos que as suas convicções pessoais não devem ser colocadas em causa, tal como a seriedade do seu trabalho enquanto jornalista.

Bruno Amaral de Carvalho. Créditos: David Cachopo | GERADOR

O que te trouxe ao jornalismo de guerra?

É um processo. Sempre tive um grande interesse em dar voz às lutas de resistência, à resistência dos povos, dos trabalhadores… dar voz a quem não costuma ter voz nos grandes meios de comunicação social. Comecei por trabalhar em meios alternativos, mais pequenos, em Portugal e noutros países. Meios que tivessem uma linha editorial mais aproximada a essa realidade, seja a luta das mulheres, a luta contra o racismo, contra o fascismo, a luta por melhores condições de vida. Parecendo que não, uma coisa leva a outra. Por exemplo, fui à Colômbia e acompanhei o processo de paz, estive num acampamento das FARC [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] durante um mês. Também estive várias vezes no País Basco, na Síria, na Venezuela, em Cuba. No fundo, o que me atrai é a beleza dos povos que lutam e poder retratar isso mesmo.

E dirias que essa também foi a tua motivação para cobrires a guerra no Donbass?

Sim. Ou seja, quando fui em 2018, havia um grande desconhecimento sobre o que se passava. Tinha lido todas as notícias em 2014, altura em que se deu todo o processo de levantamento popular, para uns, golpe de Estado, para outros, em Kiev. Senti-me logo tentado a perceber melhor o que estava a acontecer. Queria ir lá, mas não tinha grandes contactos. Em 2018, já em plena guerra civil, surgiu essa oportunidade e fui, consegui entrar [no Donbass]. Conheci e contactei com várias pessoas, com civis, com soldados e, com isso, também consegui contactos que me permitiram regressar várias vezes [à região]. Nestas correrias que vamos tendo pelo mundo, de fazer trabalhos aqui e ali, vamos sempre conhecendo alguém que conhece outra pessoa. Acabamos por ficar com uma carteira de contactos que nos permite chegar a todo o lado.

Quais eram as tuas expectativas quando chegaste ao Donbass em 2018? E o que é que encontraste?

Esperava encontrar uma situação muito complicada. Aquelas pessoas já estavam em guerra civil há quatro anos! Portanto, encontrei gente muito martirizada pela guerra, sobretudo os civis, naturalmente. Esses não escolhem. Encontrei pessoas que lutavam pela sua independência, pela separação da Ucrânia. [Deparei-me com] uma população muito russófona, muito pró-russa e que sentia que não tinha nada que ver, politicamente, com o que se passava do outro lado. Sentiam vontade de romper com a Ucrânia. Foi isso que acabei por testemunhar. Muitas pessoas só descobriram que havia uma guerra, quando a Rússia despoletou aquela escalada no ano passado. Também foram enganadas, porque grande parte dos meios de comunicação social deu a entender que a guerra tinha começado [nessa altura], quando a guerra já existia desde 2014. Muito menos percebiam como é que um povo, que está em territórios da Ucrânia, não quer fazer parte da Ucrânia, mas sim da Rússia. Às vezes parece que as pessoas não aprendem com a história. Se pensarmos no que aconteceu no Kosovo [1998-1999], grande parte das pessoas posicionou-se do lado dos kosovares, pelo seu direito à autodeterminação e por não quererem fazer parte da Sérvia. A NATO também escolheu fazer isso. Entrou em socorro do Kosovo e justificou a sua intervenção militar contra a Sérvia para defender uma população que não queria fazer parte desse país. No fundo, a Rússia fez a mesma coisa. A Rússia justifica a sua intervenção para defender o Donbass. Também fala da desnazificação, mas o principal argumento é a defesa da população russófona do Donbass, que está em guerra desde 2014. A Rússia escolheu o mesmo caminho que a NATO tinha feito anos antes, quando decidiu intervir na Sérvia e, antigamente, na Jugoslávia.

Entrevista a Bruno Amaral de Carvalho. Créditos: David Cachopo | GERADOR

Na tua opinião, esses são os fundamentos que estão por detrás desta guerra entre a Rússia e a Ucrânia?

São os argumentos que Vladimir Putin apresenta para entrar na Ucrânia, nomeadamente, a desnazificação, defender a população do Donbass e evitar que a Ucrânia entre na NATO. Estes são os três grandes argumentos. Nós podemos duvidar das palavras do Putin, se o que ele quer é genuíno ou não. Podemos considerar que, de facto, o que ele quer é invadir a Ucrânia e ocupar aquele território. Mas, duvidar das palavras do Putin, não significa que deixe de existir uma realidade à priori, que é a de que, de facto, aquela população já vivia uma guerra civil desde 2014. Tinha sido reprimida pela sua cultura russófona. Aliás, isso aconteceu em toda a Ucrânia, a proibição da língua russa nas instituições, a proibição de partidos políticos, a integração de batalhões nazis no exército regular ucraniano. Tudo isto são factos. Se Putin utiliza esses factos a seu favor, para justificar a sua intervenção, não significa que esses factos deixem de existir. Eles existem. E é isso que nós temos de saber distinguir quando fazemos uma análise sobre o que se está a passar.

Nas vezes que foste ao Donbass, o que mudou?

Acho que mudou muita coisa. O grau de guerra intensificou-se, mais mortes, mais ataques. A violência desta guerra é muito mais brutal. Simultaneamente, quando lá cheguei no final de março do ano passado, havia uma grande expectativa por parte da população. Muitas das pessoas com quem falei diziam que, de facto, esperavam que a Rússia resolvesse finalmente acabar com a guerra, viver em paz e empurrar as tropas ucranianas para fora do Donbass. Essa esperança dava-lhes algum ânimo. Depois disso, vim para Portugal em maio e regressei no princípio de junho. Fiquei no Donbass cerca de quatro meses e meio e, ao longo desse processo, foi-se sentindo um grande desânimo por parte da população. Aquela intitulada operação especial russa já estava a durar muito tempo e parecia que a esperança se estava a desvanecer. Ao mesmo tempo, havia a sensação de que esta guerra há de durar ad eternum e que não se vai resolver. Isso gera, naturalmente, uma grande angústia. Morreram muitos mais civis. Estão a morrer muitos civis no Donbass e isso acontecia esporadicamente durante a guerra civil, em 2014 e 2015, mas depois, com os acordos de Minsk, as coisas acalmaram. Foi partir de 2022 que o número de mortos disparou brutalmente em várias cidades do Donbass. A população está farta da guerra. Tu vais a um supermercado, podes morrer. O teu dia a dia acontece debaixo dessa sombra permanente da morte. As pessoas, quando saem de casa, despedem-se e não sabem se vão voltar. Existe, de facto, um sentimento de grande angústia, de falta de expectativas, de falta de perspetivas de futuro.

E agora, quando regressaste em 2023, a situação mantinha-se?

Mantinha-se, mas, no centro da cidade melhorou um pouco. Eu estive muito tempo em Donetsk, aliás, estive em muitas cidades, mas estava centrado, sobretudo, em Donetsk. Nos últimos meses do ano passado, os ataques eram permanentes. Havia mortos todos os dias. Agora acalmou um pouco, o centro da cidade continua a sofrer ataques, mas, se calhar, sofre uma vez por mês. Antes era todos os dias, eu vi situações absolutamente terríveis no centro da cidade.

Entrevista a Bruno Amaral de Carvalho. Créditos: David Cachopo | GERADOR

Consideras que a posição da Rússia é bem interpretada pelo Ocidente?

Não e não vai ser, por várias razões. Não sou advogado de defesa da Rússia, mas parece-me que o Ocidente não quer olhar para as suas próprias responsabilidades nesta guerra. Não quer olhar para o conjunto de factos que, tal como disse há pouco, existem, independentemente de Vladimir Putin os enunciar ou não. De qualquer forma, não era preciso que o Ocidente concordasse com Vladimir Putin para encetar um processo de paz. Choca-me muito que a Rússia seja o país que mais vezes tem falado de abertura para o diálogo e receba uma recusa permanente por parte da Ucrânia e dos Estados Unidos da América em aceder. Vejamos, se Putin estiver a mentir quando apela ao diálogo, é responsabilidade da Ucrânia e dos Estados Unidos mostrar que ele está a mentir. Então vamos para a mesa de diálogo e mostrar quem é que quer paz. Mas a resposta da Ucrânia e dos Estados Unidos é sempre “não”. Dizem que não estão reunidas as condições, que um processo de paz significaria beneficiar o agressor, portanto não saímos deste beco sem saída que é o facto de os países ocidentais estarem a financiar e a enviar armas permanentemente.

E qual é a tua opinião relativamente à cobertura mediática ocidental?

Acho que nunca assistimos a um processo de desinformação e de propaganda como estamos a assistir nesta guerra. Todas as guerras têm desinformação e têm propaganda. É um pilar para qualquer guerra, faz parte. Os estados em guerra precisam da desinformação, porque precisam de convencer que estão a ganhar, de convencer que o inimigo é mau. Isso faz parte de qualquer guerra. Mas os meios que estão envolvidos, as ferramentas que temos hoje em dia, sejam as redes sociais, a televisão, até as ferramentas que usamos no terreno, como os drones, criam vários problemas. Nós achámos que, em 1991/1992, quando foi a invasão do Iraque, que a guerra estava a acontecer em direto, porque tínhamos jornalistas a filmar os bombardeamentos com uma câmara. Mas não. A guerra em direto é o que está a acontecer agora. Temos drones a filmar, enquanto está um soldado numa esquina a disparar com uma metralhadora. Vemos pessoas a morrer em direto. Agora, se há uma avalanche de informação, como acontece com a internet, precisamos de quem consiga filtrar e explicar essa informação. Essa é a grande responsabilidade do jornalismo e os jornalistas não estão a fazer isso. Muitas das vezes estão a replicar aquilo que os estados querem, sejam os comunicados de imprensa dos ministérios de defesa da Ucrânia ou da Rússia, seja não olhar acriticamente para imagens sem primeiro tentarem perceber se aquilo que estão a ver é verdade ou não. Portanto, tem havido um desequilíbrio brutal em relação a outras guerras. Também existe outro desequilíbrio evidente, sobretudo no Ocidente, que é termos uma cobertura da guerra absolutamente condicionada e desequilibrada. O facto de eu ter sido, durante oito meses, o único jornalista português do outro lado, mostra a pouca ou nenhuma vontade que os órgãos de comunicação social têm em mostrar o que se passa do outro lado. Fui o único português durante oito meses, mas, em determinados momentos, eu era o único jornalista ocidental em toda a região do Donbass. Chegámos a ser três ou quatro jornalistas a trabalhar para meios ocidentais, enquanto que no outro lado havia sempre uns 500 jornalistas a fazer o mesmo trabalho.

Porque achas que isso acontece?

Acontece, porque os órgãos de comunicação social não querem mostrar o que se passa do outro lado. Da mesma forma que os estados decidiram proibir os canais russos deste lado, porque achavam que promoviam a desinformação. Mas isso cabe ao telespectador ou ao leitor determinar e fazer essa avaliação. Hoje em dia, todo este desequilíbrio favorece apenas a propaganda pró-ucraniana. Existe esse objetivo, não é uma coisa casual. Acontece, porque há uma vontade redobrada de mostrar aquilo que favorece a Ucrânia. Muitos podem considerar que a Ucrânia é o agredido e não o agressor. Então, expliquem-me, porque é que quando os Estados Unidos são o agressor – e isso é muito frequente – a comunicação social está sempre do seu lado? Porque é que está sempre do lado do agressor e, desta vez, está do lado do agredido? Se fosse esse o critério, então a comunicação social estaria sempre do lado do agredido. Mas não. Tão simplesmente é, porque neste momento, o Ocidente está com a Ucrânia. Tal como noutras vezes, o Ocidente esteve contra o Iraque, contra o Afeganistão, contra a Líbia. 

Entrevista a Bruno Amaral de Carvalho. Créditos: David Cachopo | GERADOR

Uma vez que estiveste na região do Donbass, tens conhecimento de histórias que não tenham sido transmitidas nos media ocidentais?

Sim, existem histórias que não chegaram cá, naturalmente. Muitas histórias que eu próprio tive dificuldade em vender, porque não interessavam, porque chocavam demasiado com a construção mental que nós temos daquilo que existe no terreno. Sinto-me agradecido à CNN [Portugal], porque me deu uma oportunidade e sei que essa não foi uma decisão fácil.

Mas foste tu que pediste para viajar para o Donbass ou foi uma sugestão que partiu dos próprios meios de comunicação?

Quando fui no final de março (2022), fui por iniciativa própria. Na altura, estabeleci um acordo verbal com o Público para escrever três reportagens. O Público foi um dos meios que optou por não comprar algumas das histórias. Tínhamos esse acordo, mas, rapidamente começaram a ser pressionados e atacados nas redes sociais. Chegaram a dizer-me que não iriam publicar um determinado artigo sobre Mariupol pois, segundo as suas palavras, “era mais do mesmo e eu não mencionava o outro lado”. Eu estava numa cidade em guerra, numa batalha, mas eles acharam que aquilo era jornalismo simples, como se estivesse a noticiar um acidente de carro e tivesse de entrevistar ambas as partes. Portanto, achavam que eu tinha de passar para o outro lado da linha da frente, como se isso fosse uma coisa normal. E só a mim é que exigem isto. Não pedem aos jornalistas que estão do lado da Ucrânia para entrevistarem os russos. Felizmente, comecei a trabalhar na CNN e isso permitiu alargar o meu trabalho, fazer mais coisas. Também trabalhei com outros órgãos de comunicação social, mas é mais fácil trabalhar com meios que tenham uma predisposição editorial para tal. Admito que dentro da própria CNN também existam tensões por eu estar a trabalhar com eles, mas tenho de agradecer ao diretor de informação, Nuno Santos, porque foi graças a ele que pude realizar estes trabalhos. Ele defendeu-me quando fui alvo de ataques e isso também foi importante. Mas é como digo, a verdade é que a maioria dos órgãos de comunicação social tem uma linha editorial que não se compagina com a ideia de ter um repórter que, numa guerra, possa mostrar o outro lado.

Entrevista a Bruno Amaral de Carvalho. Créditos: David Cachopo | GERADOR

Do que presenciaste neste cenário de guerra, houve algum momento significativo que gostasses de partilhar?

Foram oito meses de tensão absoluta. Lembro-me de ter sugerido, uma vez, que dormíssemos em Mariupol, coisa que os jornalistas não faziam. Normalmente, dormíamos em Donetsk. Íamos e vínhamos todos os dias, e isso fazia-nos perder imenso tempo, pois eram duas horas de viagem para ir e voltar. Então, sugeri que dormíssemos em Mariupol e o jornalista que estava comigo concordou com a proposta. Também era pouco louco como eu [risos]. Descobrimos uma família que estava abrigada numa cave de um hotel completamente destruído e que aceitou que lá dormíssemos. Nós levávamos água, comida e partilhávamos com eles. Ao longo do tempo, fomos acompanhando a história daquela família. Isso foi uma história que me marcou bastante. Simultaneamente, trabalhar nas ruas daquela cidade completamente destruída, como se fosse uma cidade da Segunda Guerra Mundial, corpos na rua. Marcou-me muito ver corpos enterrados nos canteiros, nos parques infantis. As pessoas enterravam os corpos para não serem comidos pelos animais, para lhes dar alguma dignidade também. Lembro-me de conhecer uma família, um pai com uma criança que tinha o braço partido devido a um bombardeamento, que teve de enterrar a filha e a mulher com a ajuda dos vizinhos, em frente à sua própria casa. Pensa bem nisto, enterrares um familiar teu. É muito duro, é uma coisa muito bruta. Outro momento que me marcou foi o dia em que bombardearam o centro de Donetsk. Era uma zona de comércio, com vários meios de transporte, mas, naquele dia, havia 16 pessoas mortas, duas crianças e havia pedaços de corpos por todo o lado. Cabeças, um corpo cortado ao meio, enfim… custa muito mais do que ver um soldado, porque o soldado está a combater. Um civil é um civil. E aqueles civis, meia hora antes, estavam todos vivos, a fazer as suas coisas. Houve de tudo. Juntamente com um outro jornalista, cheguei a ter de colocar um torniquete na perna de uma mulher que tinha pisado uma mina em Mariupol. São oito meses de histórias, de todo o tipo, e que podia passar horas e horas a contar.

Como lidas com o facto de algumas pessoas considerarem que és pró-russo?

Penso que tenha que ver com a quantidade de vezes que surjo na televisão. Quando apareço mais, sou mais atacado, quando apareço menos, sou menos atacado. E tem que ver com uma intenção óbvia de que eu não apareça e de calar o lado que mostra o que está a acontecer no Donbass. Primeiro, essa ideia de que eu sou pró-russo é falsa. Não me identifico com o regime russo, não me identifico com Vladimir Putin. Para além disso, tentam usar as minhas escolhas políticas pessoais para tentar pôr em causa o meu trabalho enquanto jornalista. Na minha opinião, é profundamente antidemocrático acharem que um jornalista deve esconder as suas convicções e que, ao fazê-lo, será mais neutro e mais imparcial. Isso não é verdade. Conheço um conjunto de jornalistas que não mostra as suas convicções, mas nós conseguimos ver quais são através do seu trabalho. No fundo, qualquer jornalista tem de usar as ferramentas jornalísticas para fazer o seu trabalho da melhor maneira possível e sem se deixar condicionar pelo seu pensamento. Todos nós temos um clube de futebol, gostos literários ou musicais, e não é por isso que alguém vai deixar de ser jornalista desportivo ou vai deixar de escrever sobre música. É absurdo, não tem sentido nenhum. Então um jornalista não pode ter atividade social e política, ou seja, eu não posso participar na vida do meu bairro ou participar numa candidatura para melhorar a vida do bairro? O que têm de escrutinar não é a minha atividade política, é a minha atividade enquanto jornalista.

Entrevista a Bruno Amaral de Carvalho. Créditos: David Cachopo | GERADOR

E enquanto jornalista, como é que se encontra um equilíbrio entre a imparcialidade e as convicções pessoais?

Isso é fundamental. Vivemos na era do individualismo, na era da não-política, nesta era da pós-verdade como gostam de chamar. Esta coisa de os jornalistas serem ativos politicamente só acontecia nos anos 70 e 80. E era uma coisa natural e saudável. Se pensares bem, nunca ninguém questionou como é que o fundador do grupo Impresa foi primeiro-ministro neste país e pode ser o militante número um do PSD. Questionam antes um tipo qualquer, que ainda por cima pertence a um partido que, infelizmente, não tem uma grande percentagem nas eleições. Esse é que eles questionam. Mas é normal, estamos a falar de meios que estão ligados aos grandes grupos económicos e financeiros. Uma das coisas que os espanta mais, é verem um outsider como eu a entrar num mundo que é deles. A romper o mundo. Muitos consideram que eu entrei no Donbass, porque tive ajuda do Putin. Não. Eu entrei no Donbass, porque tinha os contactos de 2018, neste caso, com um importante sindicato do Lugansk [cidade reconhecida internacionalmente como parte da Ucrânia, embora seja administrada pela Rússia como capital da autoproclamada República Popular de Lugansk], e porque atravessei a Rússia com um visto de turista, sendo que não ia trabalhar na Rússia, mas sim no Donbass. Portanto, como eu não fui trabalhar na Rússia, não precisei de pedir nada às autoridades russas. Claro que pedi autorização às autoridades locais para trabalhar, mas todos os jornalistas trabalham com autorização das forças que controlam determinado território numa guerra. Quando o Robert Fisk [jornalista e escritor britânico] entrevistou o Bin Laden nas montanhas do Afeganistão – algo que todos acharam incrível, e bem, porque é incrível – ninguém considerou que ele era pró-Bin Laden. Também não consideraram que ele tinha conseguido entrar com ajuda das forças talibã. Ou seja, existe muita desinformação, uma tentativa de desprestigiar o meu trabalho, lançar mentiras permanentes sobre a forma como cheguei ao Donbass ou o que fiz. Estamos a falar de um conjunto de informações que, em muitas das vezes, colocaram o meu trabalho em risco.

Como é que os civis reagiram à tua presença na região do Donbass?

Ao início, boa parte dos civis desconfiava de mim, por ser ocidental. E os ocidentais não têm propriamente boa fama na região. Recordo-me da altura do referendo que foi organizado pelas repúblicas separatistas. Eu perguntava às pessoas o que achavam do facto de o Ocidente não querer saber o resultado do referendo ou sequer reconhecê-lo, e as pessoas diziam-me: “mas tu achas mesmo que nós queremos saber do que dizem os ocidentais, quando eles nunca quiseram saber quando a Ucrânia nos bombardeou durante a guerra civil”? Esta era a grande resposta da maioria. Mas eu não tive as facilidades que as pessoas acham que tive. Não falo russo, tinha de andar sempre com um tradutor. Não tive ajuda das autoridades. Tive muitas dificuldades pelo facto de ser ocidental, tive mais dificuldades em fazer o meu trabalho do que os jornalistas russos. Portanto, vou lutando contra dois lados. Contra esta falsa ideia de que eu fui levado ao colo no Donbass.

Apesar disso, continuas a focar-te mais no teu trabalho do que na imagem que transmites.

Sim, claro. Muitos me perguntam como lido com o facto de ser constantemente atacado. Mas a verdade é que também recebo centenas de mensagens de pessoas a agradecerem pelo meu trabalho. Foco-me muito no meu trabalho, naquilo que faço, nos civis. Repara, se calhar 70 % ou 80 % do meu trabalho é dedicado aos civis e não tanto à parte militar. Esses ataques não me deitam abaixo por uma razão muito simples: eu nunca tive expectativas de ser famoso nem de agradar. Sempre tive expectativa de ser jornalista e de fazer aquilo que eu gosto. E, muitas das vezes, fazer aquilo que gosto implica confrontar o poder estabelecido dentro das redações. E eu vou continuar a ser assim. É provável que a guerra termine e eu continue a ser aquele Bruno de Carvalho desconhecido, mas eu vou estar bem com isso. Acho que os princípios são mais importantes do que a fama, do que o dinheiro, o que for. Isso não me interessa. Interessa-me estar bem comigo mesmo, porque mostrei às pessoas aquilo que se passa daquele lado, porque as pessoas ficaram mais informadas. Saberíamos mais ou menos desta guerra se Bruno Amaral de Carvalho não tivesse estado daquele lado? Acho que esta é uma questão importante que devemos fazer. O meu trabalhou ajudou ou não ajudou a dar mais pluralidade, a diversificar mais as informações? Se me disserem que “sim, foi importante”, foi um pequeno grão de areia que ajudou a entender melhor a guerra, então estou satisfeito.

Bruno Amaral de Carvalho. Créditos: David Cachopo | GERADOR

O que te apaixona no jornalismo?

Fui aluno do Óscar Mascarenhas, um grande jornalista, e ele costumava dizer que o jornalismo podia mudar o mundo. Sempre gostei muito de ler, os meus heróis eram sempre os justiceiros, os revolucionários, enfim [risos]. Portanto, quis muito fazer alguma coisa que estivesse relacionada com viagens, com literatura, qualquer coisa ligada à justiça social. E acabei por sentir que ser jornalista era também fazer isso tudo. Ou seja, dar voz a quem não tem voz e enfrentar os poderosos. Sempre tive este impulso por querer contar, por querer escrever, por querer contar aquilo que vejo e denunciar as injustiças. Acabei por ir para a ESCS, onde estive muito envolvido em atividades associativas e políticas, como a associação de estudantes. Aprendi que o jornalismo também é isso, participar ativamente na vida da sociedade. Às vezes, parece que existem jornalistas que se esquecem disso. Os sindicatos, as associações desportivas, as coletividades de bairro, as organizações feministas ou antirracistas são uma parte silenciada nos órgãos de comunicação social. Não aparecem, não são empresas, não são a confederação dos empresários, não têm nenhum agente que faça press releases para enviarem para as redações. Portanto, nós temos falta de vozes da sociedade nos jornais. Depois dizem que as pessoas leem menos ou veem menos telejornais. Claro, porque não se sentem identificadas com aquilo que leem, não encontram a história do familiar que trabalha no supermercado. Encontram as histórias dos de sempre. Acho que o futuro assenta nos meios alternativos, como a Voz do Operário ou o mesmo o Gerador. Não é que a Voz do Operário seja uma coisa nova, que não é, mas é um fenómeno que se repete atualmente. Esta ideia de um conjunto de trabalhadores que decide fundar um jornal, porque sente que não tem voz nos meios de comunicação social, aconteceu há 140 e tal anos, como poderia acontecer hoje. O futuro é as pessoas começarem a sentir-se cada vez mais identificadas com um conjunto de meios alternativos, diferentes, que correspondam a interesses próprios, da juventude, das mulheres, de grupos racializados. Acho que isso é fundamental, dar voz às pessoas.

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