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Camboja aka Chelas: o cimento onde nasceram flores

Eu posso começar a falar da minha infância e a história até ser bonitinha. Consigo…

Opinião de Nuno Varela

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Eu posso começar a falar da minha infância e a história até ser bonitinha. Consigo romantizar a coisa, afastar muitos momentos complicados, dramáticos e a coisa até fica com bom ar, ou posso vasculhar mais a fundo e ir buscar algumas coisas muito muito más e dramáticas da minha vida e de muitos amigos.

Hoje vou abordar um tema que não me traz boas recordações, e que ainda é muito presente na minha vida - o Bairro onde cresci, a minha escola primária e alguns nomes que, passados mais de 30 anos, ainda estão na minha memória.

Atenção, não quero com este desabafo falar mal ou deixar uma má imagem do "Camboja", antigo Bairro do Relógio em Chelas. Mas sei que me afetou de maneira diferente porque, passados mais de 30 anos, ainda é tudo muito presente na minha memória.

Vamos lá, então.

Para começar, eu detestei andar naquela escola e as razões são muitas. Fiz boas amizades, tenho boas memórias, mas as más têm um impacto muito maior em mim que as boas.

Já ouviram falar do Casal Ventoso e dos milhares dos toxicodependentes que lá andavam todos os dias?!

Pois, antes do Casal Ventoso houve o "Camboja". Nos anos 80 e 90 era uma das zonas com maior número de toxicodependentes e traficantes de droga e nós, crianças, conviviamos com esta realidade todos os dias.

Era normal que eu com 7 ou 8 anos já tivesse visto pessoas a injectarem-se à minha frente; overdoses, cenas de pancadaria, pessoas em modo zombie, carros luxuosos e montes de dinheiro.

Era uma realidade que afetava a minha escola, a Escola 117. Costumo dizer que quem sobreviveu àquela escola consegue sobreviver a tudo.

Ainda me recordo de estar contente por lá ter um primo a estudar e pensar: "Bem, se algo me acontecer ou alguém se meter comigo, o meu primo vai ajudar-me." Das primeiras coisas que ele fez foi meter-me a lutar com um rapaz cigano. Lembro-me de ter lutado. Não me lembro se ganhei, mas provavelmente não. Sempre fui bom a negociar e não a lutar.

Nunca mais vi esse primo, mas espero que tenha apanhado uma tareia depois disso. Não interessa se foi com 15 ou 40, fiquei assim um bocado traumatizado.

Em relação à minha escola e ao "Camboja", toco em coisas que muitas pessoas se vão identificar e deixo aqui uma pequena lista de coisas que me recordo.

  • Colegas de escola consumidores de heroína;
  • Rusgas durante os intervalos com pessoas de fora da escola a correr pela escola;
  • Professoras muito más que claramente estavam frustradas por estar numa escola tão complicada;
  • Toxicodependentes a serem espancados;
  • Ver diariamente pessoas a injectarem-se na rua;
  • Facilmente passávamos por um sítio e alguém dizia "Aqui morreu um drogado, ontem, com overdose".

Era uma realidade muito complicada e, depois de falar com algumas pessoas, vejo o estrago que a heroína fez ali. Na maior parte dos casos, foi por falta de informação. As pessoas não sabiam o que era a heroína, por isso arrasou tantas famílias.

Falando com um amigo que esteve anos "agarrado", ele diz que consegue dar 30 nomes de amigos que faleceram. Em Chelas são raras as pessoas que não conseguem contar um caso de alguém que, ou era bom aluno ou era trabalhador e caiu nas teias da heroína.

Talvez se fosse hoje em dia, com tanta informação, fosse mais fácil deixar as pessoas alerta e conscientes do mal que a droga faz.

Aproveitei e escolhi duas pessoas que cresceram no "Camboja" comigo e que também andaram na Escola 117, e fiz algumas perguntas sobre o bairro e sobre a escola.

Edgar Aka Adegas
37 Anos

- Como foi para ti crescer no "Camboja"?

- Morar no "Camboja", até aos meus 9/10 anos foi positivo e negativo. A creche, jardim de infância e escola primária foi tudo passado no "Camboja", era tudo perto da minha casa, o que me dava a sensação de segurança. Brincava na rua com os meus amigos, sem problema. Lembro-me que, entre os meus vizinhos, havia uma entreajuda enorme e passava muito tempo na casa de alguns enquanto os meus pais trabalhavam. De negativo, as drogas e o tráfico delas. Aprendi cedo o que eram. Algumas vezes estávamos a brincar na rua e vimos perseguições e tiros, os toxicodepentes a injetar, mas acho que o que presenciei nessa altura me preparou para a vida, de alguma maneira.

- Qual foi o impacto da droga na comunidade?

- O impacto das drogas na comunidade do "Camboja", a meu ver, foi enorme. Muitas famílias destruídas pelo consumo ou pelo tráfico, filhos toxicodependentes que assaltavam as casas dos pais para ter dinheiro, crianças - alguns até meus amigos - que cresciam sem o pai ou a mãe ou às vezes ambos, por estarem presos por tráfico.

- Pontos positivos sobre a vida no "Camboja"?

- As amizades que fiz nessa altura, algumas ainda mantenho hoje; a entreajuda que havia entre os vizinhos, pelo menos na minha rua; as associações que existiam na altura como o ATL da Santa Casa da Misericórdia, que era como um refúgio para as crianças e jovens, onde podiam fazer coisas novas e diferentes do que estavam habituadas: passeios, teatro, carpintaria, entre outras coisas; e a preparação que o "Camboja" deu a todos os que cresceram lá, pelo que viveram e presenciaram. Acho que, por um lado, foi positivo para não cairmos nos erros que vimos outros a fazer.

Carlos Aguiar
50 anos

- Como foi para ti crescer no "Camboja"?

- Morar no "Camboja" foi uma experiência mista com várias fases e experiências diferentes. A infância foi tranquila e com brincadeiras próprias de bairro - jogar ao pião, berlinde, carrinhos de rolamentos e muitas outras coisas que os putos de agora já nem conhecem. Depois veio a adolescência e juntamente as drogas que chegaram ao bairro naquela época e aí a experiência começou a mudar! Jovens e amigos a experimentar e a maior parte a ficar dependente delas e muitos a morrer delas. Todo o ambiente do bairro mudou.

- Qual foi o impacto da droga na comunidade?

- O impacto da droga foi muito grande. Como já disse, mudou todo o ambiente do bairro, com muitos jovens a cair em desgraça juntamente com as suas famílias, mas para outros foi a oportunidade de ganhar dinheiro e enriquecer. Quando falo em ganhar dinheiro, falo em sacos do Pão-de-Açúcar (sacos de plástico) que era o supermercado que havia na altura, cheios de notas de 5 000 escudos. Resumindo foi desgraça para uns e riqueza para outros.

- Pontos positivos sobre a vida no "Camboja"?

- As Casas tinham um quintal grande, tipo uma vivenda. Pessoalmente, não gosto de morar em prédio. A convivência entre vizinhos era muito melhor. Rendas de 300 escudos… 😂

-Sobre Nuno Varela-

Nuno Varela, 36 anos, casado, pai de 2 filhos, criou em 2006 a Hip Hop Sou Eu, que é uma das mais antigas e maiores plataformas de divulgação de Hip Hop em Portugal. Da Hip Hop Sou Eu, nasceram projetos como a Liga Knockout, uma das primeiras ligas de batalhas escritas da lusofonia, a We Deep agência de artistas e criação musical e a Associação GURU que está envolvida em vários projetos sociais no desenvolvimento de skills e competências em jovens de zonas carenciadas.Varela é um jovem empreendedor e autodidata, amante da tecnologia e sempre pronto para causas sociais. Destaca sempre 3 ou 4 projetos, mas está envolvido em mais de 10.

O Nuno Varela é formador do curso de 9h “Introdução ao movimento Hip-Hop”, que decorre de 9 a 11 de agosto na Academia de Verão do Gerador. Se te interessas por este tema clica aqui para saberes como podes assistir.

Texto de Nuno Varela
Fotografia de Pedro Vaccaro

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