A promessa parece ser clara. A matéria em torno da canábis vai aquecer todos os lugares da Assembleia da República. Mas, afinal, o que é a canábis? Henrique Prata Ribeiro, médico psiquiatra, explica-nos que «quando falamos em canábis, falamos em dois componentes maioritariamente, o tetra-hidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBF). O THC é adultério para o cérebro, mas é o que dá «moca». Tendencialmente, as pessoas procuram ervas que tenham alto teor de THC porque dão mais moca, digamos assim». Já as formas em que a canábis se pode apresentar são três: óleo, resina – habitualmente chamada haxixe – ou herbácea – comummente designada como marijuana/erva.
Nos estudos sobre o consumo da substância, os portugueses destacam-se a nível europeu, e os dados do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência mostram que Portugal é o segundo país, na Europa, onde há maior prevalência de uso diário de canábis. Segundo os dados do estudo, 2,97 % dos portugueses, na faixa da população adulta, consomem pelo menos 20 vezes por mês, valores superados apenas por Espanha (3,72 %). No caso português, o panorama eleva-se se olharmos para a faixa entre os 15 e os 34 anos, em que a percentagem sobe para 4,16 %. Na forma de consumo, destaca-se a marijuana/erva (88 %), seguindo-se em forma de resina (64 %).


Dos motivos enunciados pelos portugueses para o consumo da substância, salta à vista a motivação para reduzir o stress/relaxar (84 %). Segue-se a diversão (60 %), o querer melhorar o sono (52 %) e o tratamento da depressão/ansiedade (40 %) como os principais motivos. Sobre procurar na canábis um tratamento para a depressão e a ansiedade, Henrique Prata Ribeiro respondeu, prontamente, que é «totalmente falso». O psiquiatra afiança que «todos os estudos científicos apontam que haja um aumento de ansiedade com o consumo, que, no momento agudo, no momento em que a pessoa está a consumir, é aliviado, mas, depois, no longo prazo vai agravar».
O médico aponta que as pessoas, «no momento em que fumam, sentem que estão a aliviar esses sintomas, mas, na verdade, aquilo que é o científico a longo prazo aponta para o contrário. Não é um tratamento para nenhuma dessas perturbações».


O Bloco de Esquerda (BE) e a Iniciativa Liberal (IL) têm estado na frente para legalizar a canábis e apresentaram, na anterior legislatura, duas propostas que viram a votação adiada. O BE não quis comentar a matéria sem a tomada de posse por parte da nova Assembleia da República, enquanto Bernardo Blanco, deputado da IL, considera importante a legalização, logo à partida, porque «as pessoas têm o direito de poder tomar as suas próprias decisões sobre a sua vida, o que inclui o direito de decidir sobre consumos de substâncias. As pessoas são politicamente soberanas e, por isso, não cabe ao poder político substituir-se de forma paternalista à autonomia individual; apenas cabe mitigar os riscos que daí possam resultar para terceiros.» Bernardo Blanco assegura que «com a proposta de liberalização responsável, a IL pretende legalizar o negócio da canábis, reduzir a criminalidade, reduzir o consumo de drogas pesadas e promover que o consumo seja livre e responsável, consciente e informado».
Por sua vez, Paula Santos, deputada do Partido Comunista Português (PCP), considera esta «uma matéria que suscita múltiplas questões e preocupações e que deve ser olhada nos seus diversos ângulos. A pergunta que se coloca pode ser neste sentido, ou seja, quais é que são as soluções mais adequadas com o objetivo de reduzir o consumo de canábis».
Henrique Prata Ribeiro não tem uma posição nem contra nem a favor, mas revela algumas preocupações. «Tem de se procurar informação científica. Acho que tem de ser levada, a informação, às pessoas, e as pessoas têm de perceber o risco que a canábis tem no desenvolvimento de psicose, que são doenças psiquiátricas graves», revela o médico psiquiatra. Bernardo Blanco acredita que a «liberalização da canábis reconhecerá que, numa sociedade livre e politicamente saudável, convivem pessoas diferentes, devem poder coexistir diferentes estilos de vida, e as pessoas devem poder fazer escolhas livres e responsáveis.»
A proposta da IL tem como objetivo legalizar o cultivo, até seis plantas por habitação própria e permanente, recorrendo a sementes autorizadas para o efeito, a transformação e a distribuição. A comercialização, a aquisição e posse não poderão exceder a dose média individual calculada para 30 dias para consumo pessoal sem prescrição médica. Além disso, Bernardo Blanco acrescenta que o projeto tem «como objetivo criar um mercado livre, aberto e concorrencial de bens e serviços baseados na canábis não-medicinal.»
A proposta não fica por aqui e a IL rejeita que o Estado obrigue a qualquer registo no ato de compra, e pretende, através do projeto apresentado, «criar um enquadramento legal favorável a mercados livres, ao empreendedorismo económico e social, à inovação comercial e comunitária. Pretende-se fomentar uma coexistência vibrante de organizações da sociedade civil, pequenos negócios familiares e comunitários, grandes interesses corporativos, a concorrer e colaborar para fornecer uma oferta diversificada de bens e serviços para todas as preferências».
Dentro dos aspetos económicos, a IL quer um «mercado de preços livres, onde os agentes económicos têm a máxima liberdade económica possível, quer ao nível do desenvolvimento dos produtos, incluindo as formas bebível e comestível, quer ao nível da sua comercialização, podendo fazer promoções e vender outros produtos no mesmo estabelecimento».
Paula Santos não tem dúvidas em afirmar que o consumo de canábis é preocupante. A deputada do PCP atira ainda que, se as pessoas procuram ajuda, é porque «efetivamente consideram que há ali um problema». Paula Santos aconselhou que se deve voltar o olhar para as experiências já feitas em outros países e analisar «todas as dimensões, sobretudo no plano da saúde pública». O PCP apresentou, na legislatura anterior, um projeto de resolução com um conjunto de recomendações aprovadas e publicadas em Diário da República, das quais se destacava a atualização dos estudos científicos sobre os efeitos de consumo da canábis e que essa informação fosse pública, e ainda, um investimento na área da prevenção com medidas específicas dirigidas a cada grupo populacional.
A deputada considera que «é necessário um investimento nas diferentes vertentes, na prevenção, dissuasão, redução de riscos, minimização de danos, tratamento e reinserção». Paula Santos critica, ainda, o investimento que tem «ficado muito aquém» do necessário e a extinção do Instituto da Droga e Toxicodependência. A deputada afirma que «toda a intervenção no terreno ficou sobre a alçada das administrações regionais de saúde» o que cria um conjunto de dificuldades e constrangimentos na intervenção.
O PCP propõe uma «estrutura única com todas as vertentes de intervenção para que haja coerência em todo o processo». Por fim, a deputada critica o investimento na prevenção, considerando que tem sido o parente pobre. «É preciso ter meios para o tratamento, é preciso ter meios para a redução de riscos, mas precisamos muito que haja uma intervenção forte para reduzir, de facto, este consumo. Parece-nos que seria aqui uma prioridade a esta matéria», atira Paula Santos.
Henrique Prata Ribeiro atenta para a falta de «noção das pessoas, especialmente para as mais novas, dos riscos de consumo de canábis» e de uma base científica que permita dizer se se é a favor ou não da liberalização do consumo. O médico psiquiatra afirma que se deve «analisar o impacto da liberalização na saúde mental e o impacto da doença mental» nos locais onde o consumo se encontra liberalizado.
As preocupações do psiquiatra giram, especialmente, em torno da canábis de alta potência. «Ervas com alto teor de THC têm um risco muito elevado, ou melhor, para pessoas que tenham predisposição genética, pode ser um fator de gatilho para o desenvolvimento de uma psicose», completa Henrique Prata Ribeiro. O médico explica que as psicoses são quebras de contacto com a realidade e acontece «tendencialmente em pessoas numa faixa etária muito específica, entre os 15–25/30 anos».
O THC é uma preocupação transversal a todos. Bernardo Blanco afirma que, na proposta levada pela IL, o «Estado deve poder limitar a venda destes produtos, em função da sua dose ou concentração de THC». Paula Santos revela preocupações em torno deste componente da canábis, e sinalizou que deve haver um reforço «no âmbito das forças de segurança», assim como na «área das dependências e do comportamento aditivo».
Em Portugal, o consumo de canábis é maioritariamente acentuado em idades mais jovens, com a faixa etária dos 18 aos 24 anos a corresponder a quase 50 %. A percentagem de consumidores vai diminuindo conforme aumenta a idade, sendo que, segundo o especialista, o grupo de maior risco corresponde a 79 % dos consumidores.
A idade média de início de consumo de canábis ronda os 17 anos. Henrique Prata Ribeiro aponta como uma das principais razões o facto de ser «uma fase em que as pessoas dentro dos grupos começam a experimentar coisas que não conhecem». Além disso, o médico psiquiatra acrescenta que se «fala hoje também de uma eventual desregulação dos circuitos de dopaminérgicos do cérebro, portanto, da via da recompensa, o que pode fazer com que as pessoas procurem mais facilmente um fumo de erva como forma de compensar alguma desregulação que existe. As pessoas que tenham predisposição para desenvolver doença psiquiátrica grave, não só através do fumo de erva, potenciam o aparecimento dessas doenças como aparentemente esse estado de risco já pode fazer com que tenham tendência a ser fumadores, consumir as substâncias».
A par da legalização da canábis, a IL traça também o plano para o investimento na sensibilização, prevenção e fiscalização. Bernardo Blanco prevê «que parte da arrecadação fiscal da canábis seja utilizada para precaver e mitigar problemas sociais derivados do consumo e abuso da canábis.» O deputado da IL acredita que «a normalização legal da canábis acabará com uma importante fonte de financiamento de atividades criminosas». Se o PCP vinca a ideia de que há necessidade de haver um reforço dos meios, a IL acredita que a «liberalização libertará muitos recursos policiais e judiciais, que poderão assim focar-se no combate a verdadeiros crimes».
Sobre o tema, o deputado finaliza o parecer dizendo que «será, ainda, uma fonte de receita fiscal». No plano da proposta, a IL afiança que «neste setor se tem registado um investimento em toda a cadeia de valor, muita atividade económica e comunitária, gerando receitas fiscais que financiam a prevenção e os tratamentos de toxicodependência, saúde mental, investigação em medicina e em tecnologia.»
A tentação de comparar a canábis ao álcool ou ao tabaco é um erro, para Henrique Prata Ribeiro. Segundo o psiquiatra, «a grande questão aqui é o efeito cumulativo». O médico acrescenta que «é preciso beber álcool ou fumar tabaco durante muito tempo, de forma repetida, para a maior parte das consequências para a saúde se manifestarem. No caso da erva, estamos a falar de pessoas que podem fumar uma ou duas vezes e desenvolver uma doença psicótica para o resto da vida delas».
A IL tem outra visão nesta comparação das substâncias, e Bernardo Blanco crê que «a canábis não é categoricamente mais perigosa para a saúde do que estas substâncias – álcool e tabaco». Além disso, o deputado volta a sublinhar a liberdade para manifestar, na sua visão, a importância da liberalização da canábis. «O consumo de tabaco ou álcool é uma questão de liberdade pessoal. A sociedade aprendeu, e continua a aprender, a lidar com o seu consumo e abuso, dentro do respeito pela autonomia das pessoas. Analogamente ao tabaco ou ao álcool, a canábis deve ser liberalizada», completou Bernardo Blanco.
Como se tem dado conta, a canábis levanta uma série de preocupações e questões, e o mercado negro é mais uma deste leque. A IL, no seguimento da proposta, assevera que a «proibição não eliminou as drogas leves». Bernardo Blanco fala quase até de um efeito bola de neve e afirma que a «proibição financiou o narcotráfico internacional, a corrupção de agentes públicos e a criminalidade organizada. Potenciou também um mercado clandestino de drogas duras, o qual destruiu muitas vidas, pela toxicodependência, pelo crime violento a elas associado e pela industrialização do sistema judicial-prisional. Todo este processo aumentou a insegurança, perturbou a ordem pública, degradou o espaço urbano e a qualidade de vida, fomentou a exclusão social e reduziu a mobilidade socioeconómica. Ao mesmo tempo que, como se referiu, exauriu recursos públicos e sobrecarregou as polícias e os tribunais.»
Para a IL, o proibicionismo «resultou em menos segurança e menos informação sobre a compra e o consumo, expondo-os ao submundo criminoso, às drogas pesadas e à canábis adulterada». Bernardo Blanco não quis encerrar o tema sem antes advertir que «sem um mercado realmente aberto a todos, isto é, existindo apenas um mercado legal “oficial” do Estado como alguns propõem, continuará a haver um mercado negro muito forte, como já se viu noutros países».
E na Europa?
Na Europa, entre 2009 e 2019, o número de apreensões de canábis herbácea aumentou em 72 %, segundo dados do Relatório Europeu sobre Drogas. Em contrapartida, as apreensões de resina canábis teve uma quebra de 19 %, em 2019, em comparação com 2009. A canábis esteve presente em 74 % das apreensões de Droga na União Europeia, em 2019.
Em 2001, Portugal foi considerado pioneiro pela descriminalização da canábis. Na legalização, os portugueses já não vão assumir esse lugar, e numa altura em que por toda a Europa se debate o mesmo tema, Malta foi o primeiro a dar o passo. Em dezembro de 2021, os malteses passaram a poder consumir e produzir para uso pessoal, dentro dos limites legais impostos pelo país.
As últimas notícias dão conta de que o Luxemburgo poderá passar a ser o segundo país da Europa a dar o passo e a Alemanha já anunciou uma iniciativa que pretende estabelecer um mercado regulamentado. Nos Países Baixos, há as conhecidas coffee shops. Nestes estabelecimentos é permitido adquirir até cinco gramas por dia, mas, fora isso, todas as drogas estão proibidas.
Em Portugal, houve já uma carta aberta assinada por mais de 60 personalidades, como o ex-ministro Correia Campos, a já candidata a presidente da República Ana Gomes, ou o ex-diretor geral da saúde Francisco George, a defender uma regulação da canábis.