Séculos depois das práticas de eliminação de crianças “disformes”, como referiam os pensadores da Grécia Antiga, e do cenário medieval que tratava diferenças físicas, sensoriais ou mentais como castigo divino, o trabalho do pesquisador Vinícius Gaspar Garcia defende um amadurecimento das civilizações e o avanço dos temas ligados aos direitos humanos como consequência das grandes guerras.
Dados recentes, no entanto, ilustram que as desigualdades ainda são consideráveis. Segundo o último relatório do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, publicado em dezembro de 2022, o risco de pobreza ou exclusão social em Portugal é de 18,7 % para agregados familiares de pessoas sem deficiência, enquanto chega aos 26,5 % para as famílias com pessoas com deficiência moderada. A percentagem é ainda maior, de 34 %, quando se trata de agregados de pessoas com deficiência grave.
“Além de valores e atitudes que as desqualificam, as pessoas com deficiência enfrentam barreiras arquitetónicas e comunicacionais, obstáculos no acesso aos transportes, ausência, insuficiência ou inadequação do apoio no sistema regular de educação, critérios excludentes para o acesso ao emprego”, lê-se num artigo do investigador Bruno Sena Martins.
Quem se deve adaptar?
Ao passo que a acessibilidade já começa a ser uma prioridade para o setor cultural, por exemplo, casos como o de Francisca Tralhão continuam a denunciar problemas com a questão da mobilidade reduzida noutras áreas. A estudante de Jornalismo, que se desloca numa cadeira de rodas, teve o seu estágio adiado devido a uma avaria no elevador de um edifício da Câmara Municipal de Coimbra, ocorrido que relatou publicamente.
Na ausência de uma solução da autarquia, o trabalho teve de ser adaptado, sendo realizado à distância e, quando encontros presenciais são necessários, em locais com acessibilidade para cadeirantes. A adaptação, explica-nos Francisca, é uma inevitável parte do seu quotidiano. Sobre o preconceito, afirma não se importar com o que as pessoas à sua volta pensam, mas sublinha o facto de a sociedade estar formatada para os corpos sem deficiência. “Eu devia ter acessos em qualquer sítio. Eu não deveria ser obrigada a ligar muitas vezes para os restaurantes e a dar-me ao trabalho de perguntar se eles têm acessos. Acho que esta cidade [Coimbra], e arrisco-me a dizer o país, devia ter acesso em todos os sítios, quer sejam públicos ou privados”, diz ao Gerador.
Para Raquel Banha, criadora do blogue Chairleader, empresas que se adaptam à realidade dos empregados são “como se uma luzinha ao fundo do túnel se acendesse para nos dizer ‘há esperança, nem tudo está perdido’”. Numa publicação da sua página, a ativista anticapacitista narra o episódio em que viu, pela primeira vez, alteradas as funções de uma vaga para a qual se candidatou, depois da dificuldade que tem na comunicação oral ter sido levada em conta pelos recrutadores. “Se calhar, só se calhar, nem sempre somos números e há empresas que nos veem enquanto indivíduos singulares que somos”, conta-nos, não sem deixar de pontuar que acredita na raridade de casos similares.
Pensado como incentivo para a comunidade, o sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência, existente na função pública em Portugal desde 2001, deixa Francisca dividida. Por um lado, a estudante considera que a iniciativa pode ter impactos positivos, mas, por outro, pensa ser mais uma forma de discriminação. “Por que razão eu não posso ser tratada da mesma forma que outra pessoa que não tem deficiência? Porque é que eu tenho de ter uma vaga especial?”, questiona. Desde 2019, a lei foi alargada ao setor privado com um período de transição, variável consoante o número de empregados. A 1 de fevereiro deste ano, a norma passou a ser obrigatória para empresas com mais de 100 trabalhadores.
Raquel, por sua vez, defende que a regulamentação vem acelerar e tornar obrigatório um processo de evolução: “No mundo da fantasia, não precisaríamos do código da estrada, porque todas as pessoas teriam bom senso e uma condução segura; no mundo da magia e unicórnios, não era preciso uma lei que criminalizasse o homicídio ou a violação, porque ninguém iria cometer tais atos. O mesmo se aplica às quotas no mercado de trabalho, quer seja relativamente à deficiência ou a outros grupos sociais.”
A ativista destaca ainda ações complementares que partem de organizações não-governamentais, como o projeto Destino: Emprego, da Associação Salvador (AS), que desenvolve habilidades voltadas ao mercado e apoio na procura de oportunidades. “A AS trabalha diretamente com as empresas e com as agências de recursos humanos com vista à integração e não segregação”, salienta ao garantir que “não pode haver inclusão plena se para lá chegarmos temos de guettificar (guetto) as pessoas”. “Porquê criar uma agência só para pessoas com diversidade funcional se se pode ir educando e incentivando o mercado laboral a, por si mesmo, incluir as pessoas com deficiência?”, conclui Raquel.
O poder da palavra
Ao Gerador, a autora do Chairleader explica que despertou para a luta contra a discriminação no início da sua vida adulta, enquanto se conectava com a comunidade dos seus pares. Só mais tarde, há cerca de três anos, é que ouve falar no termo capacitismo e escreve um artigo no qual reúne a sua definição e uma série de premissas, suposições e termos negativos. “Quando descobri o seu significado e decidi pesquisar mais sobre ele, foi como se uma espécie de minirrevolução se tivesse dado dentro de mim. Muitas das coisas com as quais me sentia desconfortável, mas em que eu não tinha coragem para me chegar à frente de forma a travá-las, tinham agora um nome”, revela-nos, confessando, inclusive, que passou a reconhecer um preconceito internalizado que lhe fazia “encolher os ombros e aceitar inúmeras situações”.
Francisca concorda que é importante falar sobre o “novo” conceito e aponta igualmente a contradição entre a ideia da incapacidade das pessoas com deficiência e a sua constante marginalização social. Para a estudante, uma alteração de cenário está obrigatoriamente ligada à mudança de mentalidade daqueles que perpetuam uma noção de normalidade funcional. “Não vivo a minha vida muito à volta do capacitismo ou [do facto] de ter uma deficiência. Claro que me irrita, às vezes, querer ir a sítios e não poder, mas contorno [a situação] – o problema não é meu, é da cidade”, assegura.
Com o pensamento de que o preconceito tem um peso maior na juventude, dada a falta de “ferramentas e consciência” dos mais novos, Raquel reconhece a importância da crescente onda de influenciadores digitais que discutem os interesses das pessoas com deficiência: “Deixou-se de dar tanto palco à lengalenga da inspiração, da caridade e dos coitadinhos. Mais pessoas com diversidade funcional têm encontrado a sua voz e a força que faltava para bater o pé e reclamar direitos que são, e sempre foram, nossos”, diz ao citar também a relevância do ativismo pioneiro de Jorge Falcato, presidente da associação Centro de Vida Independente, assim como de Eduardo Jorge, conhecido pelos seus protestos em forma de greve de fome e de uma pernoita numa jaula em frente à Assembleia da República.
Da mesma forma, evidencia o trabalho de longos anos de dois movimentos informais, os (d)Eficientes Indignados e o Sim, Nós Fodemos. Sobre sexualidade, tema que levou à fundação do segundo grupo mencionado, Raquel reforça a opinião que partilhou num texto do seu blogue ao afirmar que “as pessoas com deficiência continuam a não serem vistas como seres românticos e sexuais”. “Quando suscitamos [atração], somos objetificados – há uma enorme fetichização do nosso corpo – ou temporários – pelo menos na minha experiência como mulher sexual e com deficiência, bem como naquilo que vou observando dentro da minha comunidade, há uma grande curiosidade em ‘experimentar’ pessoas diferentes”, relata ao Gerador.
Seja no público ou no privado, com ou sem referências ao conceito de capacitismo, a necessidade da luta pela visibilidade da diversidade funcional mantém-se ao longo da história. Nas palavras do pesquisador Bruno Sena Martins, “importa reconhecer as experiências e aspirações das pessoas com deficiência não apenas para o desenho de políticas sociais que lhes sejam diretamente dirigidas, mas para o desenho de uma nova sociedade que necessariamente terá de se libertar de uma normalidade capitalista, patriarcal, heterossexista, racista e capacitista”.