Pouco de mim existe longe da cidade de Lisboa, ou sem Lisboa como pano de fundo. Sólida e sonora e vasta, mas sem desconcertar ou absorver, a constante e o mote da minha identidade. A cidade que o mar pinta de azul e os jacarandás de lilás, das portas de rua bloqueadas por mãos a balançar copos de plástico cheios até ao topo de cerveja. A cidade da luz e das colinas que atraiçoam, mas sustentam a ternura e alienam quem não as entende. Não posso dizer que conheça mais nenhum lugar em que a disposição das ruas é assim: um ziguezague infinito e crescente, de tal forma desenhado que cria a ilusão de que os prédios foram construídos às cavalitas uns dos outros. Pairam sobre a cidade e sobre nós como ondas gigantes e coloridas a breves segundos de rebentar.
A minha família assentou em Lisboa depois de uma jornada migratória que transpôs décadas, gerações e continentes. E apesar da carga histórica que nos trouxe a esta terra, apesar do seu simbolismo e posicionamento no passado colonial português, numa História extensa e mortífera de devastação e roubo, poucas vezes duvidei de que Lisboa era para mim, ou de que eu era para Lisboa. Nesta cidade vivi cerca de duas décadas sem hiatos prolongados e sempre me orgulhei de a conhecer quase tão bem como a mim mesma, de saber recitar de cor as suas arestas, os pormenores e os contrassensos. Agora regresso quando é verão ou para o virar dos anos e vejo uma cidade à sombra e que nunca percorri.
Quando estou fora – cada vez por mais e mais dias e mais permanentemente, também porque em Lisboa as minhas perspetivas profissionais parecem dissipar-se gradualmente e deixa de ser possível conceber um mundo em que tenha lugar para onde regressar – sinto saudades de um lugar que, sei, não existe. Lisboa, cidade tornada parque de diversões descartável para quem pode visitar, quem pode investir, quem pouco tem a perder com o seu trespasse ou desocupação, quem tem para onde voltar quando só restar o resíduo. À beira acumulam-se os corações soltos de quem, para viver, tem de negociar a sua sobrevivência e dizer-se contente ou capaz de subsistir com uma dignidade fracionada, sem teto perante a riqueza desmedida, sem tempo e a viver para o trabalho que não paga a vida. Corações soltos com saudades de um lugar que não existe.
Queremos todos ficar. À mesa com amigos (a mesa também vai mudando: antes era a do café do bairro, ponto de encontro da comunidade local, alicerce do escasso tempo livre, agora fechado para dar lugar a hotéis de luxo onde o lisboeta não dormirá) falamos vezes e vezes, envoltos numa onda pesada de desespero e ennui, sobre como queremos todos tanto ficar (ou, agora e para mim e para muitos, poder voltar), como se estivéssemos a suplicar à cidade que nos deixe ter fôlego, que torne possível a comunidade que sonhámos edificar e manter. A cidade não nos ouve porque a cidade não tem vontade ou discernimento. A cidade é só a tela e não tem culpa da sua autodestruição. O discernimento pertence a quem a governa, mas é toldado pela ganância e a indiferença cruel de quem sabe que em crise estão os outros. Há uns dias voltei a dizer adeus a Lisboa. Em poucos anos a ir e vir, a sua transfiguração total. Agora, quando levanto os olhos, lá estão os edifícios empilhados que bem conheço, a cair sobre si mesmos, a rebentação da maré à costa. Em mais nenhum lugar encontro algo assim. Mas agora, lá dentro já não está ninguém e ao meu redor não ficou quem os ergueu. Restam-nos as ruas. Dia 30 de setembro, é lá que estaremos.
-Sobre Miriam Sabjaly-
Miriam Sabjaly é jurista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado. Foi assessora da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega).