Meu Caro 2020,
Começo por te dizer, com aberta franqueza, que não sinto saudades tuas, apesar de caminharmos sempre juntos.
Trouxeste à humanidade dias inesperados de tristeza, dor e solidão. Foram poucos os anos anteriores a ti que ficarão na história como tão traumáticos e ansiosos. E espero que sejam ainda menos aqueles que virão a seguir.
Foram meses intensos nos quais o egoísmo assumiu o protagonismo, quer ao nível da competição internacional por materiais e equipamentos, quer na ingénua crença que bastava a cada país fechar fronteiras para resolver tudo.
Mas a principal diferença foi a entrada no léxico corrente desse estranho conceito designado por distanciamento social. Quem diria que a humanidade, que vai buscar a sua força ao acto de dar a mão, ficasse desprovida do contacto físico e passasse a depender de videochamadas, como se, de repente, todas pessoas tivessem sido forçadas a ir trabalhar para outro país.
Porventura, foi a clarividência desses sofrimentos que obrigou as pessoas a não darem o amanhã por adquirido. Depois desta pandemia ter posto em causa a invencibilidade dos seres humanos, agora luta-se pelo dia seguinte de forma dedicada, intensa e até, nota bem, com estratégias conjuntas.
Imagino que não estejas a par de tudo o que está a acontecer por aqui, por isso tenho o maior prazer em te contar as novidades:
As Nações Unidas finalmente começaram a ser unidas. Os estados parecem hoje acreditar que faz sentido pensar no todo e estão à beira de adoptar uma nova carta de direitos humanos, que põe o combate à desigualdade e a afirmação da ciência como novos desígnios.
Para daqui a um mês está previsto o primeiro Fórum Ético Mundial. Caiu o Económico e levantou-se o Ético, suspeito que lhes devia dar jeito manter o E, por causa do estacionário. Transferiu-se para Bergamo, na Lombardia, o que também não custa muito a quem já tinha viagem reservada para Davos, a uns míseros 300 km de distância.
A União Europeia está revigorada, cheia de uma energia inusitada e recheada de decisões rápidas, daquelas sem compromissos. O Plano Vai Correr Tudo Bem foi agora aprovado por todos os estados-membros e o seu texto principal arranca com a palavra Solidariedade.
Portugal é hoje estudado por instituições de ensino disseminadas pelo mundo inteiro como um exemplo de civismo e altruísmo. Toda a população, durante aqueles inacabáveis meses, manteve-se resistente e cumpridora, não tirando o pé de casa, a não ser aquelas, poucas, excepções, relacionadas com as inevitáveis fugas para as sardinhas de junho. Até eu compreendo.
A saúde voltou a estar nas prioridades dos investimentos mundiais, com uma aposta fundamental na investigação e na equiparação da importância da saúde mental à saúde física. E até nos Estados Unidos, vê tu bem, está para breve a homologação do Universal Health Service Act, depois de um consenso alargado entre republicanos e democratas para criação de um serviço nacional de saúde gratuito.
Surpreendente é, também, a forma como o vírus contagiou o mundo a encarar o combate às alterações climáticas como uma batalha de iguais proporções e urgência. Os principais países estão, hoje, na mesma trincheira e com o desafio de assumir 100% de energia limpa até 2025.
E mesmo na cultura, meu caro, tudo está diferente. As pessoas, as empresas e o estado parece que descobriram que o usufruto da cultura e das artes é uma das razões pela qual a humanidade anda por este planeta.
Talvez tenha sido a sua ausência nos formatos habituais durante tanto tempo que empurrou o Estado a perceber que a cultura e a educação são os activos mais importantes das sociedades e que, por isso, merecem mais atenção e investimento. E esse esforço já se faz notar nos orçamentos anuais dos países.
As empresas assumiram, finalmente, diria eu, a responsabilidade social e cultural como uma obrigação de todas, o que as leva a dar mais importância ao Índice de Valores Culturais do que ao Mercado de Valores Mobiliários.
Mas o que me impressionou mesmo foram as pessoas. Se durante a pandemia ocorreram a todas as manifestações culturais por essa Internet fora, carinhosamente aparando os artistas, agora, que a cultura já saiu das casas, as pessoas continuam esfomeadas por serem desafiadas e, mais, com vontade de desafiar.
Conto-te isto porque sei que sofreste com as mágoas que percorreram as tuas veias. Mas hoje as artérias das cidades voltaram a encher-se de gente e, acima de tudo, de esperança. Fica tranquilo connosco, estamos melhores.
Uma saudação, que os abraços ainda andam um pouco enfermos, do sempre teu,
2021
Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Tiago Sigorelho-
Tiago Sigorelho é um inventor de ideias. Começou a trabalhar aos 22 anos na Telecel e, pouco depois da mudança de marca para Vodafone, resolveu ir fazer estragos iguais para a PT, onde chegou a Diretor de Estratégia de Marca. Hoje é o Presidente da Direção do Gerador, a plataforma que leva a cultura portuguesa a todos.