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Catarina Gomes: “Fazer jornalismo de histórias de pessoas exige tempo e disponibilidade emocional”

Esta semana, partilhamos contigo a conversa que tivemos com a Catarina Gomes, jornalista freelancer. Esta…

Texto de Andreia Monteiro

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Esta semana, partilhamos contigo a conversa que tivemos com a Catarina Gomes, jornalista freelancer. Esta entrevista, conduzida no dia 15 de abril de 2021, foi uma das que fizemos aquando da investigação que deu corpo à última edição da Revista Gerador (maio) para explorar a problemática do jornalismo lento.

Catarina Gomes trabalhou cerca de 20 anos, como jornalista, no Público. Passados esses anos, percebeu que o que mais gosta de fazer é escrever histórias de vida, o que, muitas vezes, fica fora daquilo que os órgãos de comunicação mainstream consideram noticiável. Em 2017, decidiu, então, sair da redação e tornar-se jornalista freelancer, de modo que pudesse investir o seu tempo na procura e atenção por estas histórias. Desde então, já escreveu três livros, que resultaram de investigações jornalísticas. O seu primeiro livro intitula-se Pai, tiveste medo? (2014, Matéria-Prima Edições) e reúne doze histórias sobre a experiência da Guerra Colonial vista pelos olhos de filhos de ex-combatentes. Seguiu-se Furriel não é nome de pai — Os filhos que os militares portugueses deixaram na Guerra Colonial (2018, Edições Tinta-da-China), uma investigação que decorre da do livro anterior e que fala de histórias de filhos que os militares portugueses tiveram com mulheres africanas durante a guerra e que deixaram para trás. Em 2020, publicou o seu terceiro livro, Coisas de Loucos — O que eles deixaram no manicómio (Edições Tinta-da-China), em que encontramos histórias de pessoas forçadas ao confinamento, mas que, antes disso, tiveram família, amores, trabalho e planos de futuro. Esta investigação começou quando Catarina encontrou, acidentalmente, uma caixa de cartão com objetos de antigos doentes do primeiro hospital psiquiátrico português — Miguel Bombarda.

É ainda coargumentista do documentário Natália, a Diva Tragicómica, produzido pela RTP2 e pela Real Ficção, e que fala da história de uma mulher, Natália de Andrade, que acreditou, durante toda a sua vida, que era uma diva de ópera.

Ao longo do seu percurso, já viu algumas das suas reportagens serem premiadas, como é o caso do Prémio Gazeta Multimédia (2014), o Prémio AMI-Jornalismo contra a Indiferença (2015) e o Prémio Literário Orlando Gonçalves (2016). A nível internacional, foi finalista mundial do Prémio de Jornalismo Iberoamericano Gabriel García Márquez (2015 e 2016), na categoria de texto, e, em 2015, foi galardoada com o Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha.

No seu site, em que lança o repto pela procura de “vidas particulares”, podemos encontrar informações sobre os trabalhos que realizou, assim como reportagens divididas naquilo que denomina de “os meus temas”: interiores, mudanças, mentes, séries, perdas e outros.

Esta é a nona entrevista da rubrica Entrevistas com Jornalistas, que se debruça sobre os grandes desafios que a profissão continua a enfrentar.

Gerador (G.) — Foste jornalista do Público durante 20 anos. O que te levou a sair de lá para ser jornalista freelancer?

Catarina Gomes (C. G.) — A falta de tempo, a impossibilidade de praticar jornalismo lento num espaço de redação. É quase uma impossibilidade nos tempos que correm. Quando entrei no jornalismo, tinhas uma edição diária, escrevias um artigo que sairia no dia a seguir, podias estar ao mesmo tempo a preparar uma coisa para sair ao fim de semana, uma coisa mais profunda. Com a entrada do online, que é uma máquina, um frenesim de constante produção de notícias, não podes parar. E, no Público, começou a haver turnos. Numa altura da vida, em que estava bem instalada nos meus 40 anos, com quase 20 anos de prática jornalística, em que tinha ganhado um espírito crítico, uma capacidade de escrita, uma abordagem, se calhar, uma voz, e em que podia dar ao jornalismo algo mais, senti que estava a regredir. Ou seja, que me estavam a pôr a fazer coisas que eu devia fazer há 20 anos. Nem é uma questão de estatuto. Acho que ninguém começa pelo jornalismo lento. O jornalismo rápido é aquilo que te forma, aquilo que te dá, muitas vezes, a finitude. Mas já queria fazer coisas diferentes e, para ser justa, no Público consegui, nos últimos anos, fazê-lo. Mas o jornalismo lento, e foi no Público que descobri e mostrei essa minha outra vertente, ia sendo cada vez mais difícil. Ia sendo possível, mas era uma coisa que saía, muitas vezes, do meu tempo pessoal e não acho isso um preço justo.

No fundo, estava na profissão certa, no sítio certo — um lugar que admiro e continuo a admirar — mas, aquilo que acho relevante e significativo enquanto jornalismo, estava, cada vez mais, a perder espaço – que é o espaço de reportagem, o espaço de sair, do tempo, de falar com as pessoas, dar-lhes atenção. Isso, por força da crise económica do jornalismo, do frenesim do online, estava a perder espaço e eu senti que era como se eu tivesse um desencontro de tempos. Aquilo que queria fazer, naquele momento, não era o que o jornal queria de mim. Podia fazer isso de vez em quando, mas era uma coisa muito [rara]. É melhor do que muitas pessoas, é verdade, mas eu queria mais. Quero passar tempo em torno de coisas que, às vezes, podem parecer acessório. Dar às pessoas tempo, ouvi-las, ter vagar para as ouvir. Saí, porque o jornalismo de redação, de um jornal diário, tem cada vez menos tempo para o jornalismo lento, de profundidade, de imersão. E senti que era isso que queria fazer nesta altura da minha vida profissional.

G. — Como definirias o conceito de jornalismo lento?

C. G. — Não lhe chamaria propriamente lento. Sou adepta do jornalismo narrativo, literário. Ou seja, no sentido em que quero contar histórias com os instrumentos da ficção. Tudo isso leva tempo. Para as personagens, as pessoas que conheces, ganharem complexidade e densidade, tens de as conhecer. Se isso é jornalismo lento? O jornalismo narrativo, que é aquele que procuro, exige tempo. Mas também fiz coisas muito giras em jornalismo rápido. Às vezes, as reportagens mais giras que fiz foram coisas que me pediam para o dia e em que não tinha sequer tempo para me dispersar. Às vezes, a lentidão até pode ser uma ratoeira, porque podes fazer tanta coisa que te dispersas. Mas o jornalismo narrativo que me interessa, de facto, presume lentidão e dedicação. Não é ser lenta. A lentidão não é um valor por si mesmo. Tens de ter prazos à mesma. Não me oriento sem prazos. Sei que aquilo que quero fazer não dá para fazer em cima do joelho.

G. — Que função consideras que o tipo de jornalismo que fazes cumpre no jornalismo e na sociedade?

C. G. — Nuances. Ou seja, o que senti, muitas vezes, foi que as melhores histórias estavam escondidas no meio das histórias que eu ia fazer. Por exemplo, vais cobrir uma conferência sobre psicologia e, lá no meio, percebo que a história mais gira foi-me contada no intervalo, mas não foi para isso que ali fui e não é isso que me pedem no jornal. Aquela história que me contaram, nunca vou poder pegar nela, porque não tenho tempo. Isso acontecia-me muitas vezes. Aquilo que achava que era essencial era um parêntesis daquilo que me pediam e eram exercícios de frustração diários. Quase como se te tivesses de formatar a uma coisa que te pedem. Ir a uma conferência e dizer – olha aquilo foi superchato, falei com um senhor interessantíssimo no intervalo e vou fazer uma entrevista. Isso, acho que era mais fácil de se fazer há 10 anos do que é hoje. Como hoje tens de vomitar uma coisa qualquer para o online, ninguém te pede para estares a pensar no lado B da realidade. É o lado A e tem de ser rápido, de preferência no espaço de meia hora, ou uma hora.

G. — Já referiste que o que te levou a sair da redação foi, acima de tudo, falta de tempo, mas que outras derivações pode ter essa falta de tempo no que diz respeito, por exemplo, a falta de meios financeiros, se isso também conduz a uma falta de compaixão, empatia, a possibilidade para realmente ouvir a história, ir aos sítios. O que sentias na redação?

C. G. — Saí do jornal no ano em que aconteceu o Congresso dos Jornalistas e decidi intervir com uma pequena participação que li nesse congresso. O meu título era: “As redações, inimigas da compaixão”.

A minha comunicação ao 4.º Congresso dos Jornalistas
As redações, inimigas da compaixão

“Bem-vindo. Para um melhor atendimento, por favor, escolha a opção pretendida: para contacto com a administração, marque 0; para a redação, marque 1; para compra de publicidade e de classificados, marque 2; para questões sobre assinaturas e pontos de venda, marque 3; para assuntos administrativos e financeiros, marque 4.”

Premi 1: “O número para o qual ligou não tem voicemail ativo, por favor, tente mais tarde.” Quando se liga para o número de telefone de um jornal tentando falar com um jornalista, “a redação” surge como uma entidade coletiva abstrata na qual não parecem trabalhar indivíduos, seres chamados jornalistas. Eu tentei falar comigo e não consegui. Não é suposto. Os persistentes cidadãos que conseguem chegar à fala comigo ou com qualquer um dos meus colegas jornalistas por essas redações fora, e que querem contar a sua história, são passados de telefone em telefone, ficam em espera. Ninguém os quer atender. São vistos como empecilhos, uma perda de tempo numa rotina de trabalho desenfreada que inclui, cada vez menos, conversar com pessoas. Se não se tiver de antemão o contacto de um jornalista é muito difícil chegar à fala com um destes seres.

Houve um tempo em que era frequente ouvir-se nas redações um “está lá em baixo uma pessoa que quer falar com um jornalista”. E algum jornalista, por norma, descia umas escadas e ia ouvi-lo, depois havia um editor que perguntava se tinha valido a pena. Muitas destas histórias autopropostas não davam em nada, muitas outras justificavam um trabalho jornalístico. Hoje, a imprensa escrita está em crise e os jornais foram deslocados, por causa dos elevados custos de renda nos centros das cidades, para zonas periféricas, tornando os jornalistas, também geograficamente, cada vez mais inacessíveis.

Poder-me-ão dizer que todos os jornalistas agora têm emails para os quais podem ser contactados, que agora há comentários online aos artigos que escrevem, que basta clicar no rato para sugerir correções, que os jornalistas têm páginas de Facebook. Podem também dizer que os sites dos jornais vêm disponibilizando fotografias dos jornalistas e os seus perfis, e que isso também é personalizar o jornalismo, aproximando-os do seu leitor, que até lhe pode conhecer o rosto, já não é só um nome. E que agora os jornais até têm “gestores de comunidades”. E podem dizer que tudo isto tornou os jornalistas mais próximos das pessoas, e isso é verdade, em certa medida. Mas não é a mais importante. A dificuldade em chegar à fala com um jornalista é uma face do problema. A outra, mais grave, é o facto de ser cada vez mais difícil um jornalista sair da redação para ir à procura de “histórias”.

As redações estão transformadas em bunkers onde dificilmente se entra e de onde se sai cada vez menos. As pessoas não conseguem vir ter connosco e nós não conseguimos ir ter com elas. Uma tese de doutoramento na Universidade de Coimbra sobre a autorregulação profissional do jornalismo, do investigador João Miranda, revela que cerca de 20,5 % dos jornalistas inquiridos raramente sai da redação e 3,7 % nunca a abandona em reportagem. Acredito que os números dos jornalistas sedentários na imprensa escrita sejam ainda maiores e estejam a aumentar.

Há uma nova geração de jornalistas online reclusos nas redações. São jovens a quem é pedido que escrevam sobre os mais variados assuntos (da pobreza ao futebol, do teatro às taxas de juro) sem quase lhes ser permitido que saiam. Que trabalham por turnos para alimentar a nervosa máquina de produção de conteúdos jornalísticos que são os sites de jornais. E que desconhecem que o jornalismo não é bem só aquilo que os deixam produzir. A ideia de perder tempo a ouvir uma pessoa que depois pode não resultar numa peça jornalística é hoje uma prática à qual um jornalista da imprensa se pode, cada vez menos, dar ao luxo. Não há tempo a perder a ouvir, quanto mais a escutar. Se é para pôr os pés fora da redação é para voltar, rapidamente, e escrever… o que quer que seja.

Do jargão jornalístico fazia parte uma expressão que se usava quando se saía da redação para ir conversar com alguém e depois se voltava dizendo: “Não deu nada.” Hoje isso é quase impossível, cada saída tem de “dar alguma coisa” e, por isso, arrisca-se menos. Sabe-se com o que se vai voltar antes de sair, quando o mais importante pode estar a acontecer mesmo ao lado. Não há tempo/dinheiro para a imprevisibilidade. Reduzir essa imprevisibilidade tem como consequência uma forma de fazer jornalismo que significa: estar sentado numa cadeira a receber emails e a fazer telefonemas que permitem, sem custos de deslocações e perdas de tempo, elaborar uma peça de tipo jornalístico – ou, de preferência várias — considerada suficientemente satisfatória (e a exigência é cada vez menor) para alimentar uma homepage que precisa de ser constantemente “refrescada”.

O contacto pessoal com as pessoas está em vias de se tornar anacrónico, dispensável, acessório, numa profissão que devia ter a saída da redação e o contacto com cidadãos comuns como o centro do seu trabalho. Porque é a ouvir histórias de pessoas, a saber como vivem, quais os seus problemas — que muitas vezes são tão diferentes dos nossos, jornalistas, dos nossos amigos e da nossa família que nem os conseguimos imaginar — que podemos manter algum tipo de sintonia com o mundo que é suposto reportarmos. Como é possível que se possam passar semanas sem se sair de uma redação e escrever-se notícias sobre o que se passa “no mundo”? Pergunto-me se os jornalistas que escrevem sobre o distanciamento entre a política e os eleitores, que repetem expressões como ‘a política está de costas voltadas para os cidadãos’, que ‘os políticos vivem numa bolha longe dos país real e não conhecem os problemas do cidadão comum’, se apercebem da enorme incoerência que é estar a criticar uma forma de funcionar que é uma fiel descrição do estado do jornalismo atual. A diferença é que nós não somos eleitos nem escolhidos por ninguém para representarmos as pessoas.

O jornalismo aponta aos outros, mas não olha para si mesmo. Tem a faca e o queijo na mão, o poder de decidir o que está ou não na agenda mediática. E a qualidade do jornalismo e o debate sobre os rumos que está a tomar não estão seguramente na agenda do jornalismo. Os jornalistas vivem numa bolha de onde cada vez menos saem. Neste jornalismo de redoma é legítimo perguntarmos: que mundo nos trazem? Que mundo representam? Além do empobrecimento de conteúdos, acredito que os jornalistas que raramente põem os pés fora das redações são necessariamente profissionais mais pobres, mais indiferentes ao sofrimento sobre o qual é pedido que escrevam, porque não lhes é dada a oportunidade de o conhecerem de perto. Que envolvimento emocional pode, por exemplo, um jornalista ter com os problemas da habitação social se apenas escreveu sobre o tema através de estudos, estatísticas ou comunicados institucionais que lhe chegam via email? Se nunca entrou num bairro social, se nunca se sentou no sofá da sala de um destes lares, se nunca conversou com pessoas que habitam estes espaços.

É suposto que o que vamos conhecendo enquanto jornalistas ao longo da nossa carreira nos torne mais humanos, nos alargue mundividências. Só sentindo empatia é que podemos tentar que o leitor a sinta através do nosso trabalho, que seja capaz de se sentir mais próximo do outro que não conhece, que lhe é socialmente distante, mas que o jornalismo é suposto aproximar. É uma das suas funções de mediador. Como é que é suposto que eu, enquanto jornalista, me compadeça com um qualquer dos dramas sociais sobre o qual estou a escrever, se o acesso a essa realidade está limitado ao que outros escreverem sobre o assunto (via telexes de agências noticiosas e notícias de outros jornais que se imitam) e a uns quantos telefonemas?

Além da dessintonia com o que se passa fora da redação, acredito que este distanciamento tem efeito na qualidade humana dos que reportam e da forma como o fazem. Se falar com pessoas cara a cara se tende a tornar dispensável, então corre-se o risco de os jornalistas se tornarem em seres cada vez mais distantes. Sem tempo para a compaixão. Os números dos jornalistas sedentários tenderão a aumentar porque se acha que o telefone ou email são mais eficientes. Ao correio eletrónico chegam-nos a qualquer hora, prontos a transformar em notícias “novas”, estudos, estatísticas, relatórios, comunicados. E, é um facto, falar com pessoas não é “eficiente”, exige tempo, dedicação, porque as pessoas não são lineares, não fornecem títulos e leads em duas penadas, têm um discurso oral naturalmente desorganizado; é preciso darmo-nos a conhecer para que alguém se nos dê a conhecer. É preciso estabelecer relações de confiança.

As condições de trabalho que existem cada vez mais nas redações de jornais em Portugal e em todo o mundo têm tudo para tornar o jornalista num ser esquivo, impaciente, superficial, cínico e francamente desumano, porque não tem tempo nem disponibilidade emocional para funcionar além de um regime de “toca e foge” com as raras pessoas com quem consegue chegar à fala ao vivo. Quando é estando com as pessoas cara a cara que nos podemos deixar afetar, que nos podemos sentir comprometidos com o sofrimento por que estão a passar e que podemos tentar compreendê-lo, para depois melhor o tentar transmitir. É das histórias que nos envolvem que sai o melhor jornalismo, que é também o que mais cativa o leitor, o que faz aumentar o engagement junto dos leitores, um termo tão em voga no jargão do jornalismo digital. Sair da redação, falar com pessoas provoca-nos sentimentos, ficar na redação dessensibiliza-nos, distancia-nos do sofrimento. O jornalismo de rabo sentado na secretária corre o sério risco de estar a criar zombies emocionais que produzem o que se lhes pede, enlatados jornalísticos, de forma desafetada. Se não conheces as pessoas, não sabes para quem estás a escrever, porque estás a escrever, o teu trabalho perde significado. Perdes o norte.”

Catarina Gomes, 14 de janeiro de 2017

No fundo, o que eu dizia era que essa rapidez mata a empatia e a compaixão. Se te pedem uma coisa para ontem, sobre depressão, por exemplo, achas que vais verdadeiramente ouvir a pessoa com depressão com algum tempo de empatia? Sentia que me estava a dessensibilizar, a tornar pior pessoa, e, se me torno numa pior pessoa, torno-me numa pior jornalista. O jornalismo rápido de rabo sentado na cadeira não é um jornalismo empático, é um jornalismo burocrático, de telefone, de auricular. Se saíres, tens de apanhar táxi, tens de combinar com a pessoa que depois chega atrasada, tens de dar tempo à pessoa para se dispersar, porque as pessoas dispersam. Tens de estar a ouvi-la e a palha emocional faz parte de qualquer conversa relevante. As conversas não são só sumo, tens de te dar a conhecer. Isso acontece no cara a cara e acontece cada vez menos porque sai caro — implica deslocação, disponibilidade de tempo, perder tempo.

Acho que, neste momento, as redações já não têm tempo a perder. Há 15 anos, ia a uma coisa qualquer e dizia que aquilo não deu nada, não disseram nada interessante. Isso, hoje, já não existe. O não dar nada? Não. Saíste, chamaste um táxi, gastaste dinheiro, não estiveste na redação a fazer coisas, tem de dar alguma coisa, tens de parir um texto. Pode ser a coisa mais irrelevante, mas dás a volta. Ou seja, existe essa ideia do apresentar serviço, já não há tempo a perder.

No jornalismo tem de haver tempo a perder, porque o jornalismo com alguma profundidade é feito de desperdício. Falas com duas pessoas que interessam para o trabalho e uma que não interessa e, se calhar, perdeste uma tarde inteira com essa pessoa que não te disse nada de jeito e vais ter de deixar de fora. Não é desperdício, é uma mais-valia — aquela pessoa que, à primeira vez não te diz nada de jeito, à segunda, conta-te a sua história. Quando queres fazer jornalismo de pessoas, de histórias de pessoas, que é o que me interessa, não é um jornalismo burocrático ou de denúncia, isso exige tempo e disponibilidade emocional. A ideia é entregares-te também e dizeres – ah que engraçado, também já senti isso, e isso significa tempo, lentidão.

G. — Disseste que a falta de tempo te tornava menos empática e isso te tornava uma pior pessoa e, por isso, também uma pior jornalista. Qual que é o papel do jornalista no que diz respeito a este processo de criação e tratamento das histórias, que função cumpre na sociedade? O jornalista acaba por ter também um papel psicológico nas entrevistas que conduz e na sua investigação?

C. G. — Há uns tempos, saiu uma notícia a dizer que um algoritmo tinha conseguido produzir uma notícia. Não sei se isso vai ser possível, ou não, mas aquilo que produzo não é possível fazer com algoritmos. Ou seja, uma reportagem não se produz por algoritmos. Este jornalismo mais profundo e de maior ligação à pessoa nunca poderá ser feito por um algoritmo, porque é pessoal, subjetivo. Se houver, um dia, um algoritmo que diga que houve um acidente na A1 por causa dum buraco, não me choca, porque isto é quase robótico. Se calhar, na verdade, muitas vezes já estamos a fazer quase um jornalismo robótico, de picar o ponto, e isso não me interessa. Tem de ser feito por alguém, mas este jornalismo é o jornalismo mais humano e, para isso, tens de te colocar lá. Já não me basta fazer notícias, estava a tornar-se árido. Mas sei que é um luxo, obviamente, porque temos de fazer de tudo um pouco na nossa prática diária, ainda para mais neste contexto. Sou uma privilegiada.

G. — No teu caso, surge também o formato de livro, para além do espaço normal de reportagem. Já tens três livros editados. O que te levou a escolher este formato enquanto jornalista freelancer?

C. G. — Tinha um ficheiro, que era o “ficheiro de ideias”. Funciono a longo prazo. Mesmo no jornal, como não tinha muito tempo, tinha de me organizar. Escrevi sobre os filhos que os militares deixaram na Guerra Colonial e aquela história já andava comigo há um ano, antes de eu a conseguir escrever, mas tive de me organizar. No caso deste meu último livro, Coisas de Loucos, quatro das reportagens saíram no Público, que foram as financiadas pela bolsa da Gulbenkian, e foram elas que, depois, chamaram leitores para o livro porque, queira-se, ou não, os jornais são mais lidos do que os livros. Gosto dessa interação, mas depois de escrever as reportagens para o jornal, aquilo que deixei de fora pode entrar no livro.

Aquilo que pode ser palha em termos de jornalismo, para mim, pode ser uma coisa muito deliciosa em termos narrativos, a que um leitor com outra disponibilidade vai dar valor e que, se calhar, um jornal corta-me. Então, o livro dá-te essa liberdade de entrares pelo acessório, na perspetiva de um jornal que tem escassez de espaço. A minha escola foi o papel, por isso também gosto de pensar em finitude. Mas sei que há coisas que ficaram de foram e, então, essas vão para o livro. Não vão todas, mas as que acho que têm uma mais-valia literária. O livro dá-te essa liberdade.

G. — Quais são as principais diferenças que identificas, neste teu papel de escritora/jornalista, na tua forma de escrever e tratar os temas quando a investigação vai dar origem a um livro?

C. G. — Quando escrevi o meu segundo livro, Furiel não é Nome de Pai, pela primeira vez, fi-lo na primeira pessoa e, quando essas reportagens tinham saído no Público, escrevia na 3.ª pessoa. Pela primeira vez, pude usar o eu e, logo aí, foi uma enorme libertação. Claro que o eu existia, sempre existiu, mas ali podia assumi-lo e dizer o que sentia. Supostamente, num espaço de reportagem até podes deixar transparecer o que sentes e imaginas, aliás é bom que assim seja, mas não podes dizê-lo com todas as letras e aqui há uma liberdade de o eu entrar por ali. Não deixas de ser jornalista e há uma série de fronteiras em que não podes sair dali, mas podes dizer o que sentes, encher aquilo de parêntesis e dizer — eu chorei, ri —, não há problema.

No caso do segundo livro, essa diferença era muito nítida. No terceiro já não era, ou seja, aquilo que escrevi para o jornal já tinha o eu e o eu limitou-se a escrever mais longamente num livro. Ou seja, estou a construir uma voz que, no início, era muito envergonhada — o jornalista não é suposto ser um autor, é um escriba, um proletário da escrita — e, agora, vagarosamente, posso ir assumindo-a de forma mais pessoal e sem complexos.

G. — Também falaste de limites. Independentemente da maior liberdade para incluíres o eu, não deixam de existir limites, porque continuas a ser jornalista e o livro é um trabalho também jornalístico. Onde se verificam estes limites?

C. G. — Por exemplo, pegando neste meu último livro — Coisas de Loucos —, estava tentar reconstituir a vida de pessoas que morreram há 30, 40, 50 anos com base em objetos, ou seja, é mais aquilo que eu não sei do que aquilo que eu sei. Fui eu que cosi aqueles pedaços todos e, no meio desses buracos que ficaram, entra muito a minha imaginação. Posso imaginar, mas, ao fazê-lo, tenho de dizer que estou a imaginar com base em determinada coisa. Por exemplo, quando faço a pergunta: depois de 30 anos num manicómio, como é que a Leopoldina se terá transformado? Era este o rosto — e mostro a fotografia —, ela era assim, como se teria tornado? E não tenho a fotografia dela depois de 30 anos de internamento, mas tenho fotografias de mulheres, mais ou menos com a idade dela, mais ou menos da mesma altura. E posso dizer – será que o cabelo terá ficado branco? Será que ela usaria um destes uniformes que parecem dum campo de concentração? Ou seja, posso imaginar, mas tenho de dizer que estou a fazê-lo. Não posso ficcionar. O meu limite é a ficção. Posso especular, mas tenho de o fazer de forma informada e dizer ao meu leitor que estou a fazê-lo com base em determinada informação. E também posso dar espaço para o leitor imaginar, mas tenho de lhe dar estes dados, não posso fazê-lo no vazio e tenho de assumir que, em determinada fase, estou eu a perguntar. Não posso dizer que morreu de forma dolorosa e solitária, porque não o sei. Posso apenas imaginá-lo.

G. — Embora haja essa maior liberdade, esses três livros não deixam, então, de ser jornalismo?

C. G. — Sim. São o que entendo como jornalismo narrativo ou literário. No sentido em que quero contar uma história e vou gerir a narrativa com base factual, mas a construção é minha. Estou a recriar a história. E, neste caso das Coisas de Loucos, o terreno ainda era mais pantanoso, porque estou a escrever sobre pessoas que já morreram, não podem falar de si mesmas, então ainda mais cuidadosa tenho de ser. Tens de documentar sobre a época em que aquelas pessoas viveram, mas sempre dizendo ao leitor que não sabes o que se passou, eu descobri isto e isto, mas não descobri isto e isto. Se calhar, é uma coisa que não se faz no jornalismo mainstream que é dizer ou assumir a ignorância – isto aqui, eu não sei. O jornalismo tem um lado muito arrogante – “eu sei”. E eu gosto desse lado de humildade de “não sei”, “não saberei, “não conheci estas pessoas”. Assumir essa humildade, incluí-la no jornalismo e dizer que numas coisas sei mais do que vocês e noutras sei tanto como vocês, leitores.

G. — Enquanto jornalista freelancer que aposta neste tipo de jornalismo literário, é importante haver este tipo de bolsas de jornalismo, como a que recebeste da Gulbenkian, para conseguires fazer o teu trabalho?

C. G. — Sou uma pessoa sozinha, mas existem alguns projetos como o Fumaça, a Divergente, vários projetos independentes a surgirem que vão buscar bolsas internacionais para se financiarem enquanto projeto, e isso é bom de se assistir. Individualmente, vão existindo algumas bolsas, mas é um pouco como os atores — têm uma peça e, depois, têm de arranjar dinheiro para viver no tempo em que a peça não está em palco. Tens de fazer médias, uma ginástica financeira. Só pude sair do jornal, porque me preparei financeiramente para essa saída, com todos os riscos que ela acarreta e sabendo ser um caminho de incerteza, mas pesei os meus deves e haveres. Mas é muito difícil viver da escrita de freelancer. É isso que, neste momento, estou a fazer. Tenho outros projetos, mas tens de ter sempre uma almofada. É uma ilusão pensar que podes viver dos teus projetos sem outras coisas, sem outras ajudas, não é possível, não existe isso. Não quero criar em ninguém essa ilusão.

G. — Olhando para a composição das redações duma forma geral, como achas que a sua falta de diversidade afeta o tipo de jornalismo feito em Portugal e de que forma é que isso influencia, ou não, também a tua decisão profissional?

C. G. — Em termos de composição das redações, acho que as mulheres já estão em maioria. As redações do Público e as pessoas com quem me cruzava eram sobretudo mulheres. O que acontecia era que as chefias eram homens, e isso é, obviamente, significativo. Teres poucas diretoras e teres poucas mulheres nas chefias intermédias, embora ache que isso está cada vez mais diferente, reflete-se duma forma brutal nos conteúdos. Também tenho um colega negro de origem africana, mas não tens mais. Mas acho que isso é uma coisa que vai começar a mudar vagarosamente, porque todos trazemos a nossa bagagem e, nesse aspeto, há alguma homogeneidade. Acho que as redações portuguesas ainda são muito homogéneas.

G. — Essa foi uma das razões que te levou a sair da redação? Sentias-te limitada por esse contexto em que as histórias que se contam espelham essa homogeneidade?

C. G. — Tinha a liberdade de contrapropor. Essa é a beleza de ficares muito tempo no mesmo sítio — começas a poder dizer que não. Já tinha alguma liberdade com os meus editores para dizer que determinado assunto não interessava nada e propor outra coisa e, muitas vezes, ouviam, e isso é reconfortante. Tinha alguma liberdade para propor. Tinha de fazer o que eles pediam, mas também algumas coisas que propunha. Acho é que, assimilando com a ligação de recursos, ter menos pessoas, a necessidade de alimentar o online, essa falta de diversidade e alargamento do leque de temas não tem somente que ver com a origem social das pessoas jornalistas. Tem que ver com ter de se ir ao essencial e a manta não estica. Depois, parece que é acessório, quando, na verdade, acho que muitas vezes é mais essencial do que aquilo que fazes porque achas que tens de fazer, a agenda institucional.

Mais do que a questão da origem social, acho que o que pesa mais são as restrições financeiras, de crise económica e falta de recursos nas redações que estão muito restritivas para que depois possas ter mais liberdade de escolha dos temas. Mas vai-se fazendo. Por exemplo, em pessoas que estão há muito tempo no mesmo jornal, vais vendo o que aquela pessoa gosta. No Público, isso é muito notório. Tens uma jornalista como a Ana Cristina Pereira com as pessoas mais marginalizadas, as pessoas de rua, os sem abrigo. A Joana Gorjão Henriques escreve muito sobre a questão do racismo. Ou seja, elas vão-se especializando, porque aquilo é a sua área de interesse. Eu, por exemplo, fui escolhendo a área da saúde mental.

G. — Associas o problema da desinformação, inclusive das fake news, à forma como se pratica jornalismo hoje em dia ou achas que é um problema paralelo que o jornalismo pode/deve combater?

C. G. — Neste momento, o facto de teres este jornalismo frenético, em que tens sempre de estar a parir — acho que produzir é pouco — regurgitar conteúdos, e aqui digo a palavra conteúdos duma forma propositada, é amigo do erro. A precipitação é amiga do erro e, se o jornalismo, neste momento, já tem algumas fragilidades na opinião pública — esta precipitação que muitas vezes conduz a que a pessoa publique, para ser o primeiro, mas, depois, afinal, está errado e tem de se corrigir —, isso ajuda a minar a confiança, que é o mais importante que o jornalismo tem.

A descida de qualidade do produto jornalístico ajuda a que as pessoas ponham os jornalistas todos no mesmo saco, quando o jornalismo de qualidade continua a existir, mas acho que se deve fazer o esforço de se saber o que se quer – é ser o mais rápido ou ser o melhor a dar? E, depois, ter de encarar, de assumir, que não fomos os primeiros, fomos os terceiros, mas o nosso é melhor. Temos de assumir isso, que não queremos necessariamente ser os mais lidos, queremos ser aqueles que se pautam pela qualidade, as pessoas vêm aqui porque confiam em nós. Tem de se escolher. É quase como uma marca que tem de se posicionar. Não podes chegar a todo o lado nem a toda a gente, tens de escolher. E acho que, muitas vezes, há esse medo da escolha. Quer chegar-se a todo o lado ao mesmo tempo e isso não é possível.

G. — Hoje ouvimos ou lemos uma notícia e questionamos a sua veracidade. Enquanto houver medo de fazer a escolha de que falavas, achas que isso continua a afetar a credibilidade do jornalismo, acabando por afetar todo o seu modelo de negócio, porque as pessoas já não acreditam no trabalho jornalístico?

C. G. — Existe essa descrença, porque, de facto, ao quereres ser rápido, isso, muitas vezes, vai penalizar a qualidade, mas esse lado de descrença tem um lado positivo. Antes as pessoas só tinham a RTP, agora a multiplicação de acesso a fontes de informação também te ajuda a ser mais crítico. Sei que isto nem sempre é usado no bom sentido, porque as pessoas podem ir buscar a informação onde querem, mas se estás a ver uma coisa que acontece nos Estados Unidos, sabes ler em inglês, e vais ler uma notícia ao The New York Times, isso é bom.

Depois, tem o lado perverso que é achares que é tudo falso e achares que todo o jornalismo deve ser encarado com ceticismo, o jornalismo é todo igual e os jornalistas são todos iguais. Há um lado bom de as pessoas se tornarem mais críticas, terem acesso a mais fontes de informação. Acho que hoje os portugueses têm mais espírito crítico do que tinham há 20 anos, em que comiam aquilo que lhes davam, porque não havia mais nada. Não é só olhar para o lado negativo, há mais jornalismos também.

G. — Olhando para a perspetiva do leitor, inclusive em relação aos meios jornalísticos que vivem na Internet, como vês a relação do jornalismo com a sua literacia mediática e digital? Existem barreiras, facilidades?

C. G. — O Sindicato do Jornalistas está a fazer um trabalho de literacia mediática nas escolas, que é ensinar aos miúdos a distinguir o trigo do joio. E, se calhar, não sei se consegues fazer isso em adultos que já têm as suas crenças. Mas, nos miúdos, é eles perceberem que olham para uma informação e têm de ir ver de onde vem, se a fonte é interessada ou desinteressada, se aquilo parece demasiado estranho, ou seja, dar-lhes instrumentos para eles poderem identificar se aquilo que lhes estão a dar é verdadeiro ou não. Acho que isso é essencial. Se não o podes fazer com adultos, fazê-lo, pelo menos, com miúdos que crescem com redes sociais e que põem tudo no mesmo nível. Tens de ensiná-los a hierarquizar, mas acho que isso está a acontecer.

Vês como o The New York Times teve uma afluência brutal no tempo do Trump, porque as pessoas precisavam de um porto de abrigo, dum sítio em que sentissem que ali lhes iam dizer a verdade. Acho que se tem de transmitir essa ideia de que o jornalismo pode ser um porto de abrigo, tens é de saber distinguir as coisas e não equiparar uma laracha dum Facebook, ou uma imagem do Instagram, e achar que aquilo é verdade e não precisas de saber mais nada. Tens de saber ensinar os miúdos sobre contexto, técnicas básicas de verificação. A pessoa que está a assinar aquilo existe mesmo, é jornalista? Claro que no dia a dia não se dão ao trabalho, mas, em coisas importantes, deve-se verificar.

G. — Podes descrever-me o processo de trabalho por detrás de uma das tuas investigações?

C. G. — Foram muito diferentes. No Furiel não é Nome de Pai, fui à Guiné e a Angola. No caso de Coisas de Loucos, foi uma coisa de arquivo, leitura, ir aos sítios, foi muito mais caseiro. No outro [Pai, tiveste medo?], foi falar com pessoas, descobrir pessoas que muitas vezes não queriam propriamente falar contigo, ou que achava que não o queriam. Ou seja, é entrevista pura e dura e depois a organização de informação de pessoas vivas. Um é um livro de vivos e outro é um livro de mortos, só isso muda completamente a metodologia [risos]. Porque estas pessoas estavam todas mortas, não é? Tive de as ressuscitar. Estava a escrever sobre pessoas que não podem falar sobre si mesmas e, inclusivamente, não tinham ninguém à sua volta que as tenha conhecido. O Furiel não é Nome de Pai é um jornalismo mais clássico de reportagem. Este Coisa de Loucos foi outra coisa, foi um desafio completamente diferente e, aliás, questionei-me se algum dia o levaria a bom porto. Como é que vou estar a falar de pessoas que já morreram? Não conheço ninguém, não as conheço, ninguém as conhece, os sítios onde viviam já não existem, como é que vou reconstituir estas vidas? Parecia impossível, depois lá acabou por acontecer.

G. — Quanto tempo levaste a fazer cada investigação e que etapas de trabalho tiveste?

C. G. — O da Guiné nasceu numa conversa lateral quando fiz o meu primeiro livro. O meu primeiro livro era sobre os filhos de ex-combatentes da Guerra Colonial, portugueses, e a forma como a guerra tinha chegado até eles. Houve uma rapariga portuguesa que me falou do seu pai, que tinha stress pós-traumático, e falou-me na sua irmã, que o pai havia trazido da Guiné. Ou seja, surgiu como uma conversa completamente acidental e aquilo ficou em banho-maria durante anos. Pensei — então, mas os ex-militares deixaram filhos em África? E comecei a ler. Isso demorou cerca de um ano. Ia recolhendo coisas, falando com combatentes, fazendo um telefonema. Demorou cerca de um ano até eu propor e perceber que aquilo era exequível. Depois, tentei arranjar contactos na Guiné e arranjar duas ou três pessoas que acharia que podiam falar comigo. Ou seja, até eu apresentar o trabalho sabendo que aquilo tinha pernas para andar, demorou cerca de um ano e meio. Depois, até ir à Guiné foi muito rápido, um mês e meio depois e, posteriormente, saiu no jornal — isto para falar da reportagem. Depois, para ir a Angola demorou mais dois anos. Tive oito meses só para arranjar visto e dinheiro para ir a Angola. Era preciso arranjar dinheiro para as viagens, depois tivemos de nos associar à SIC. As duas reportagens, com ida a Angola e à Guiné, demoraram uns três anos, talvez. Depois, para fazer o livro ainda mais um ano e meio em cima disso, ou seja, quatro anos e meio.

G. — Com Coisas de Loucos foi mais rápido?

C. G. — Não [risos)]. Em 2011, descobri a caixa, também por acidente. Fiz uma reportagem com os últimos doentes do Hospital Miguel Bombarda em 2011, quando aquilo fechou. Pedi para ir para o arquivo e disseram que podia ir. Foi no sótão do hospital que descobri a caixa, em 2011. Percebi que queria contar a história dos donos daqueles objetos, mas sabia que se fosse falar com algum editor meu daquela altura me iriam dizer que estava ótimo e que me davam duas ou três semanas. Então, decidi que não queria fazer aquilo pela rama, não me interessava. Queria fazer uma coisa como deve ser. Então, ao longo de seis anos, de vez em quando, ia fazendo umas coisas – como ir ao conservatório do registo civil — mas sempre nas minhas folgas. Ia para o arquivo, ia descobrindo algumas coisas muito vagarosamente e, só depois de eu sair, em 2017, do jornal, me candidatei à bolsa da Gulbenkian e dediquei-me um ano a full time a pesquisar aquilo que me faltava para escrever. Isto foi publicado em 2018/2019, portanto foram sete anos com um ano intenso de dedicação exclusiva, o resto foi nas horas vagas.

G. — Podes destacar alguns projetos de jornalismo lento, nacionais e internacionais, que te inspirem, destacando o que neles tomas como exemplo na tua prática enquanto jornalista?

C. G. — Vou lendo reportagens soltas. No confinamento tive muita necessidade de sair do país, todos os dias fazia uma ronda diária — El País, Libération, The Guardian e The New York Times. Há uns tempos, li uma reportagem muito gira no The New York Times sobre a fronteira do México e estavam a tentar encontrar os esqueletos das pessoas que tinham ficado pelo caminho a tentar chegar aos Estados Unidos. Encontrar os esqueletos e, depois, juntá-los às famílias. Parece uma história macabra, mas é fechar um ciclo, um final feliz infeliz, porque aquelas pessoas ficam com aquele buraco para sempre. Essa foi uma reportagem que me marcou muito.

Em termos de projetos em Portugal, o Fumaça, a Divergente são superinspiradores. O trabalho do Fumaça dos seguranças privados. O trabalho da Divergente sobre as alterações climáticas baseado numa aldeia da Guiné, acompanhando a vida duma pessoa em particular. E perceberes que estão a fazer isso tudo de forma independente, a angariar fundos e de forma muito transparente. E terem ganhado, nos últimos anos, prémios Gazeta é, para mim, a consagração desse jornalismo que parece que é ao lado, mas é jornalismo independente, fora dos meios de comunicação social. São uma inspiração para mim, brutal mesmo.

Texto de Andreia Monteiro
Fotografia de Daniel Rocha

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