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Celina da Piedade: “As pessoas no Alentejo estão atentas”

Nos palcos, abunda a música. De Ponte da Barca ao País Basco, do Alto ao Baixo Alentejo, Celina toca e canta o seu último álbum, Ao Vivo na Casinha, e celebra a música tradicional alentejana.

Texto de Redação

©Rita Carmo

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Nos campos, sopra o silêncio. Pelo Alentejo fora, as monoculturas intensivas calam os insetos, os pássaros e as gentes.

Celina da Piedade, música, compositora e investigadora de património cultural no Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa, fala-nos apaixonadamente sobre o cante alentejano, e como muda ao compasso das mudanças na relação com a terra.

Num Alentejo cada vez mais desertificado em nome do agronegócio, numa sociedade a colapsar em nome do consumismo, que lugar pode ter o cancioneiro tradicional na nossa reconexão com a Terra e na nossa reconexão enquanto comunidades?

Gerador (G.) – Vives no Alentejo e cantas Alentejo fora. Como vês as mudanças provocadas pela expansão das monoculturas intensivas?

Celina da Piedade (C. P.) – A paisagem tem mudado imenso. Vivo aqui em Beringel há quatro anos e notamos estender-se de dia para dia o olival intensivo, o amendoal, e já há nogueirais, mesmo até à beira das estradas. Vemos surgir olivais intensivos onde havia oliveiras antigas. A praia fluvial dos Cinco Reis, inaugurada recentemente, tem olival intensivo quase até à água. Para além de não nos parecer nada saudável, é um bocado perturbador. Notamos um processo acelerado de mudança do ambiente visual.

Entretanto, a paisagem que a geração da minha mãe associava ao Alentejo também é uma paisagem falsa. Porque essa planície de cereais já nasceu da mudança perpetrada pelo homem. Se não, seria tudo montado, haveria mais árvores, mais florestação.

G. – Que sentimentos desperta esta mudança?

C. P. – Um sentimento dúbio, agridoce. Toda a vida me deixou triste ver os campos abandonados e saber que havia falta de trabalho, que a agricultura não valia a pena no Alentejo. Como o cante diz: “Tanta terra abandonada. Devia ser cultivada.” Ouço as pessoas mais velhas, como a minha mãe, que nasceu aqui em Baleizão e vem de uma família muito pobre, que sempre trabalharam no campo, e para elas é uma alegria imensa ver o Alentejo a ser cultivado.

Por outro lado, sinto que é um extremo. Uma agricultura intensiva que vai esgotar os solos, esgotar os recursos, poluir os lençóis freáticos, provocar danos no ecossistema. Deixa-me muito triste e zangada. Também perceber que não havia trabalho, e, afinal, é preciso tanta mão de obra que é trazida de fora e recebida de forma tão pouco clara...

Este outro lado da moeda é muito pesado. É um preço muito caro que se paga a nível humano e ambiental.

G. – Falaste desse lamento, “tanta terra abandonada”. Como descreverias o tipo de relação com a terra que é cantada pelo cante?

C. P. – O cante canta o território antigo. É uma relação que talvez hoje em dia já seja um bocado distanciada.

O cante passou de ser uma prática musical espontânea e feita na comunidade, para ser folclorizado durante o Estado Novo e se ter institucionalizado nos grupos corais.

Apesar dessa formalidade toda que ganhou, sempre se continuou a compor coisas novas, a criar novas melodias, novos poemas. Hoje em dia, há jovens compositores de cante alentejano. Mas quem compõe e cria já não o faz a partir desse olhar de quem trabalhava a terra e sentia as durezas de viver da agricultura e de depender da terra para viver. Era a experiência de vida das pessoas que depois espelhava na música.

As coisas mudaram muito com a mecanização da agricultura, e depois com o abandono dos campos.

©Rita Carmo
G. – As letras do cante parecem evocar um respeito, uma relação umbilical entre ser humano e natureza mais do que humana. Haverá aqui algo de mais universal, que ainda vale hoje em dia?

C. P. – Não foi por acaso que o homem alentejano criou um dos ecossistemas mais perfeitos que existem, ecossistemas criados pela mão do homem, que é o montado. O montado tem um equilíbrio tal que se autossustenta, que se autorregenera. Isso tem muito a dizer sobre esta ligação com a Terra e a natureza, este respeito intrínseco que estaria na génese da cultura do povo alentejano.

Vejo-o na minha mãe. Ela recicla tudo, sem saber que o que está a fazer realmente é reciclagem. Aproveita as cascas dos ovos para a terra, os restos de comida para as galinhas da vizinha, tem toda uma rede de vizinhos com quem troca o máximo de alimentos. Sem ter de ir ao supermercado comprar tomates que vieram da Argentina... coisas que não deveriam fazer sentido em lado nenhum do mundo. Estamos também a falar de gerações que passaram fome, e isso era necessário para a sobrevivência do dia a dia.

Há também o aceitar que todas as coisas têm o seu tempo. Não podemos ir trabalhar ao sol, nem à noite. Aceitar os ritmos. Visto dessa perspetiva, esta agricultura intensiva desrespeita todo esse ritmo, esses ciclos, essas lógicas naturais que demonstravam um grande respeito pelo ecossistema.

©Rita Carmo
G. – Esse processo de folclorização e institucionalização do cante durante o Estado Novo, de que falavas, continua nos nossos dias, com a classificação como Património Mundial e a passagem cada vez mais aos palcos, festivais, museus? Isto enquanto as aldeias se foram desertificando, e a apanha da azeitona, que outrora se fez cantando, hoje se faz com máquinas?

C. P. – O cante passou por muitas mudanças. Sem essa capacidade plástica, dificilmente sobreviveria. Um equilíbrio entre a resistência à mudança e a adaptação à mudança – o cante e as práticas musicais mostram-nos sempre isso.

Não podendo nós reescrever a história, mal ou bem os grupos corais acabaram por ser os grandes portadores do cante alentejano até ao pós 25 de Abril e aos nossos dias. Não sabemos o que teria acontecido se não se tivessem criado estes grupos formais, cheios de regras, onde não era permitido às mulheres cantar (as mulheres sempre cantaram, mas não dentro dos grupos).

Apesar de serem uma espécie de produto da cultura do Estado Novo, curiosamente depois do 25 de Abril houve um grande boom de grupos corais. Foram criados muitos grupos mistos, finalmente com homens e mulheres lado a lado, e, a partir de 1979, começaram a surgir os grupos femininos.

Nos anos 80, a sociedade no Alentejo estava desencantada com o cante, talvez porque representava um passado de fome e dureza, que era necessário ultrapassar e esquecer.

Muitos jovens, o caso dos meus pais, foram morar para a área metropolitana de Lisboa. E foi aí que nasceram muitos grupos corais nos anos 70 e 80.

Nos anos 90, houve a ascensão do que se etiquetou “world music”. Começa a borbulhar o interesse em torno dessa coisa da tradição. O fado deixa de ser uma coisa caduca e passa a ser moderna. A Dulce Pontes faz uma parceria com os Ganhões de Castro Verde. O Festival Sete Sóis Sete Luas, por exemplo, faz atividades no Alentejo e as pessoas veem a música tradicional tocada de outra maneira. Veem pessoas de fora ouvir cante e a ficar maravilhadas.

A candidatura do cante a património mundial trouxe mais visibilidade e mediatismo, que foi essencial para uma nova visão e aceitação do cante dentro do próprio Alentejo. Depois do reconhecimento da UNESCO em 2014, os municípios começaram a dar mais atenção e apoio aos grupos corais.

A Associação PédeXumbo também começou a trazer grupos corais ao festival Andanças e a implementar algo novo, as oficinas de cante. Essas experiências vão gerando ideias.

O projeto Cante nas escolas começou em Almodôvar há já 15 anos. Teve tanto sucesso que hoje em dia acontece em grande parte dos municípios do Baixo Alentejo.

Trabalho aqui no Cante nas escolas em Beja. É um projeto incrível: leva o cante a todas as crianças do pré-escolar e do primeiro ciclo. Em Castro Verde, por exemplo, consegues sentir o impacto a longo prazo que tem na relação com o cante destes miúdos, que depois se tornam jovens. Eles são uns pequenos grandes especialistas em cante, aprendem muitas modas. A ideia não é criar cantadores. É criar naquelas pessoas, naqueles cidadãos, naqueles pequenos alentejanos, muitos deles filhos de pais estrangeiros, uma ligação profunda ao lugar, uma noção clara do que é a cultura daquele sítio onde estão. É muito interessante como a música pode fazer isto. A mensagem é clara: isto faz parte da tua cultura, da cultura deste lugar, é importante aprender. E eles levam-no consigo o resto da vida. Quando terminam a escola muitos integram grupos corais. Tem um impacto gigantesco porque mexe com toda a família. O repertório que as crianças aprendem na escola é levado para casa, os pais cantam. E os grupos corais locais começam a incluir as músicas aprendidas na escola pelas crianças, que são os netos, os sobrinhos, os vizinhos. Tem impacto em toda a comunidade.

Hoje em dia, o cante representa muito o Alentejo, e não foi sempre assim. Houve também o sucesso do Vitorino, e de outros artistas como o António Zambujo ou os Tais Quais. E agora jovens que vão aos programas de televisão como o Luís Trigacheiro ou o Buba Espinho, e levam a ideia de que o cante pode ser interessante para um artista a solo.

Nós não controlamos nada disto, estas coisas vão resultar noutras. É interessante observar como o cante se vai alterando.

©Rita Carmo
G. – Com a expansão do agronegócio, os insetos e as aves dos campos do Alentejo estão a desaparecer a um ritmo vertiginoso. Quando as vozes dos outros animais se calam, que mensagem cabe aos artistas cantar?

C. P. – A música e a prática do cante podem ter um papel preponderante na educação ambiental, na própria ligação à terra. Para estas novas gerações, para quem já não existe aquela ligação que existia quando o trabalho era manual, podem criar um caminho, um elo com o meio ambiente, e criar alertas.

Acredito que mais autores e criadores vão falar mais e mais sobre estas questões. Sempre fez parte da prática criativa do cante falar sobre as questões da terra, as questões que afligem o quotidiano e a vivência de quem canta. Será cada vez mais natural surgirem forças de expressão musical que falem disso e sejam armas poderosíssimas de sensibilização e consciencialização.

Como a “Moda dos enjeitados”, dos Tais Quais. Há uma frase que mexe comigo: “agora só nos visitam para filmar a desgraça”. É um problema do interior: só vêm aos sítios quando há um incêndio devastador, um crime hediondo. Mas nós não passamos silenciosos a observar tudo isto. À minha volta, vejo muita gente preocupada e sensibilizada, e se puderem fazer alguma coisa farão. E também gente a sentir-se muito impotente. As pessoas no Alentejo estão atentas.

Dou um exemplo: eu e a Ana Santos fomos convidadas pelo projeto Jardins Terapêuticos, em Mértola, para ensinar temas do cancioneiro alentejano que falem só sobre o que a natureza dá. O objetivo é sensibilizar para as questões da falta de água. Que a música provoque um elo, um reconhecimento, um pensar sobre a natureza, aquilo que a terra nos dá e o que podemos fazer para que não deixe de dar. Qual pode ser o nosso papel como intermediários? Já que destruímos, como podemos regenerar? Já há vários projetos como os Jardins Terapêuticos a usar o cancioneiro tradicional como leitmotiv para pensarmos a terra, o lugar em que vivemos, a partir do saber tradicional.

É assim por estas bandas
Onde o comboio já não passa
Agora só nos visitam
Para filmar a desgraça
Campos à volta da vila
Nem papoilas nem trigais
E o olival moderno
Avança cada vez mais
Homens e Mulheres
Não deixarão de cantar
O rouxinol também canta
Por mais que o queiram calar

"Moda dos enjeitados", Tais Quais
G. – Para além da reconexão com a terra, tens procurado na música um meio de reconectar a comunidade, apoiando as pessoas mais vulneráveis.

C. P. – Em março, começou o Projeto Musical Intergeracional e Multicultural, dinamizado pela Associação Rota do Guadiana e o centro Musiberia, em Pias, Vale de Vargo e Serpa. Pretende envolver migrantes e as suas famílias, incluindo as crianças, num projeto musical, para tentar encurtar as distâncias entre estes trabalhadores e as suas famílias e as comunidades locais. Através da música, da festa, da gastronomia, conhecer melhor estas comunidades, despistar problemas, poder e fazê-los sentir-se mais acolhidos.

Durante o encontro de culturas em Serpa, fizemos um dia de encontro com a comunidade imigrante, com momentos de música e de dança com crianças.

Tem havido muitos participantes, mas não tantos como gostaríamos. Há uma grande dificuldade em chegar às pessoas migrantes. A maior parte são homens sozinhos a fazer um trabalho temporário, vivem uma vida de trabalho duro e horários difíceis, e muitas vezes vivem muito isolados nas próprias herdades e montes. Pelos trabalhos, pelas empresas, falta esse espaço público de encontro. Temos tido muita ajuda da Solidariedade Imigrante (@solidariedade.imigrante).

O nosso sonho seria criar uma pequena orquestra multicultural e multigeracional que incluísse migrantes e pessoal local, cruzasse os repertórios destas pessoas, e que todos nós aprendêssemos uma música do Bangladesh ou do Paquistão.

Temos também muitos trabalhadores rurais a morar aqui, em Beringel, onde vivo. Alguns, sobretudo os que vêm do leste da Europa, têm família. Depois há muitos vindos do Bangladesh ou do Paquistão. São moços e moças iguaizinhos aos outros e merecem ser muito bem acolhidos. Temos de ser todos bons vizinhos e pormo-nos na pele dos outros. Encurtar as distâncias. Porque o medo, a diferença, está completamente na nossa cabeça.

Também com a nossa cooperativa Chão Nosso, em Beringel, estamos a tentar fazer mais atividades de âmbito comunitário, que apoiem a inserção social de grupos que possam precisar. Como a população mais idosa, com quem trabalhamos as questões de memória, ou a comunidade cigana, sobretudo as mulheres e as crianças, com quem trabalhamos as questões de literacia, de geração de renda. Estamos ainda a tentar reavivar a prática em torno dos mastros de fita, que se fazia por todo o Alentejo e se deixou de fazer há décadas. É uma excelente forma de ligação intergeracional. É fácil juntar gente de todas as idades para dançar juntas em torno desse pau de fitas!


Texto de Francisco Colaço Pedro

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