“Oh, mas tu és uma céptica do amor”.
Tenho um lado muito racional em relação aos sentimentos, e um lado emocional que quase sempre percebo. Já acabei relações por quebra de sentimentos, por machismo, por desgaste, por dúvidas e até por tédio. No entanto, já tive o meu coração a boiar em memórias durante meses, durante anos.
Por isso, serei mesmo céptica em relação ao amor?
O amor constrói-se, as relações constroem-se, não caem do céu. (A não ser que se tornem uma grande bosta. Aí, a metáfora com uma cagadela de gaivota vinda dos céus é mais que válida).
Desta forma, acredito no amor e defendo-o. No entanto, o amor, para mim, é um estado de apoio e carinho mútuos, com igualdade: ambas as pessoas cuidam uma da outra e ambas cuidam da relação (também válido para uma relação que envolva mais do que duas pessoas). Por isso, não, não me considero uma céptica do amor.
Se por um lado não sou céptica em relação ao amor, sou-o em relações ditas felizes puramente movidas pela comodidade. Se o motivo maior pelo qual continuam com alguém não é a paixão nem o carinho, mas sim o conforto de ser mais fácil assim, ou o medo de sair do contexto já conhecido da relação, isso já não é amor, é comodidade. Estar por estar não me diz nada, não me faz nada. É como comer por comer, ou não estimular o clitóris antes da penetração: é triste.
Deixando aqui uma metáfora para aumentar o carácter interessante do artigo, há uma cena no filme “Me and You and Everyone We know” (o meu filme favorito) que traz à baila outra vertente da questão. A dada altura, Christine, interpretada pela escritora e realizadora Miranda July, experimenta umas sabrinas numa sapataria. O funcionário, Richard, pergunta se são confortáveis. Ela responde “raspam-me no tornozelo [mostra a ferida, já antiga, que tem no tornozelo], mas todos os sapatos fazem isso”. Ao que Richard responde: ”Tu achas que mereces essa dor, mas tu não mereces”*
Ninguém merece essa dor, eu não mereço essa dor, essa comodidade que corrói.
Serei demasiado exigente?
Honestamente, quero lá saber do que é suposto eu ser ou não ser. Eu quero magia, com os pés bem assentes na terra. A comodidade, por si só, não tem faísca, não tem encanto, não tem amor; tem medo da solidão, tem medo da mudança. Por isso, não assentarei por menos do que aquela faísca que me faz tremer toda, o toque que me arrepia, a paixão, o carinho, a compreensão mútua, as coisas totós, as coisas reais, de pessoas reais. Por menos do que isso, não me apanham na rua.
*— They kinda rub my ankles, but all shoes do that.
— You think you deserve that pain, but you don’t.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Clara Não-
Clara Não é ilustradora e vive no Porto. Licenciada em Design de Comunicação, pela Faculdade de Belas Artes do Porto, e fez Erasmus na Willem de Kooning Academie, em Roterdão, onde focou os seus estudos em Ilustração e Escrita Criativa. Mais tarde, tornou-se mestre em Desenho e Técnicas de Impressão, onde estudou a relação fabular entre Desenho e Escrita. Destaca-se pela irreverência e ironia nas ilustrações, onde reivindica a igualdade, trata tabus da sociedade e explora experiências pessoais. Em 2019, lançou o seu primeiro livro, editado pela Ideias de Ler, intitulado Miga, esquece lá isso! — Como transformar problemas em risadas de amor-próprio. Nas horas vagas, canta Britney.