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Clothilde: “Eu não consigo deixar-me ficar na circularidade das coisas”

Clothilde estará no Festival MUPA – Música na Planície, em Beja, no dia 23 de junho, para nos levar, através das suas máquinas e sintetizadores modulares, por paisagens ainda por descobrir.

Texto de Patrícia Nogueira

©Nuno Martins

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Sofia Mestre, mais conhecida por Clothilde, estreou-se na música aos 40 para nos mostrar que a música é um parque de diversões que nos pode transportar para onde a nossa imaginação quiser. Clothilde não se encaixa em caixas de música, ou no rótulo que mais se assemelha ao que faz – música eletrónica –, leva-nos sim por paisagens por descobrir através das suas máquinas e sintetizadores modulares criadas pelo seu companheiro de vida, Zé Diogo, HOBO, e poetizadas por si. É num sistemático exercício de coragem e exposição real, que sai música com muita fundura humana melódica, construída, que, do início ao fim, puxa a nossa atenção.

Deu-se a conhecer com “Birdwatching”, tema que integrou o primeiro volume da compilação que a Labareda editou em 2016, inteiramente focada no feminino, mas o seu álbum de estreia, Twitcher, foi lançado (também pela Labareda), em 2018. Em 2020, centrou-se nas bandas sonoras de A Importância de ser Alan Turing, de Miguel Bonneville, e Os Princípios do Novo Homem, de Pedro Saavedra. No dia 23 de junho, estará no Festival MUPA – Música na Planície, em Beja, no Salão da Santa Casa da Misericórdia, pelas 19h00.

Em entrevista ao Gerador, Clothilde conta como tudo começou, qual o seu processo de criação e ainda o que podemos esperar do seu concerto no MUPA.

Fotografia de Eyesofmadness

(G.) — Como é que começou esta viagem na música, enquanto Clothilde?

(C) — A minha viagem na música começou precisamente como Clotilde. Eu nunca tinha feito absolutamente nada. Foi através de um desafio da Sonja, da Labareda, que era DJ (a Sónia Câmara). Nós somos amigas há muitos anos, e ela, pelos vistos, conhece-me melhor do que eu própria e, na altura, ela lançou o álbum duplo de eletrónica no feminino, só mulheres, e convidou-me. O Zé Diogo, o meu companheiro, namorado, marido, amigo, já estava a começar a construir máquinas, e ela desafiou-me a fazer uma faixa para esse álbum só de mulheres. Eu desatei-me a rir na altura, porque ouvido para a música é uma coisa, mas nunca tinha feito música na vida, e ela, na altura, disse-me: “Eu tenho quase a certeza de que vais fazer uma cena fixe.” E este é o meu feitio, de entrar nos projetos e pensei que não iria ficar o resto da vida a pensar como seria, iria trabalhar para não envergonhar nem quem me convidou nem a mim, e pronto, a partir daí não parou… Foi então em 2016 que fiz a primeira música da minha vida.

G. — Mas nunca, na tua vida, tinhas feito algo relacionado com música?

C. — Sempre tive ouvido para a música. O meu avô era baterista, tinha uma banda jazz, o meu tio tocava tudo, era incrível, nunca foi músico, mas sempre teve os seus teclados, animava as festas de família. Por isso, se calhar, isto está aqui qualquer coisa dentro. A música sempre esteve na minha vida, mas como ouvinte, agora fazer é outra coisa. A vida é uma loucura. Depois dos 40, vim a descobrir uma coisa que eu acho que nunca nada me satisfez tanto.

G. — E porque é que escolheste logo com máquinas?

C. — O desafio partiu exatamente daí. O Zé já estava a construir máquinas, ele desafiava-me, dizia para eu experimentar, era eu e ele, em vez de sairmos à noite, bebíamos uns copos em casa, eu lembro-me de que até punha o telefone a gravar, e ficava, deslumbrada, mas de uma forma completamente infantil e inconsequente. Na altura, a Sónia nunca tinha ouvido nada. Não me lembro bem de quando foi, mas houve uma altura em que (eu faço parte da Fungo e às vezes lançávamos podcast) conheci a Rubina e o André, e propusemos-lhe estarmos os 4, numa jam, de umas 8 horas seguidas, no covil deles que é feito de máquinas. Nós levámos as nossas caixinhas e tivemos os quatro uma noite inteira a tocar. Mas isto foi algo completamente inconsequente, e até depois foi a própria da Rubina a convidar-me para o primeiro concerto, porque gostou muito da minha faixa “Birdwatching”. Mas mais engraçado ainda é que eu tinha feito duas músicas e mandei a errada, enganei-me. Meti o nome na errada e ficou a errada. Eu queria entrar de pantufas e entrei ao pontapé, e se calhar, foi o melhor que eu fiz.

G. — Ouvindo a tua música é quase como se tivesses num laboratório. É isso que fazer música é para ti?

C. — O processo é mesmo esse, não é por acaso que é chamada música exploratória. Tens de explorar muito, procurar muito, o trabalho de procura é imenso, demora muito tempo, embora cada vez encontre coisas com mais facilidade. Mas o interessante aqui são as ligações que podes fazer e os resultados que podes ter. Portanto, essa parte de pesquisa e de laboratório, sim, é fundamental e depois é trabalhar, trabalhar, trabalhar, estar à vontade, experimentar, juntar, e depois ir compondo, mas eu componho sempre ao vivo, mesmo os meus álbuns, as músicas não são editadas posteriormente, são todas um take.

G. — Nos espetáculos vais improvisando?

C. — Não dá para fazer uma música igual à que ouves num álbum, podes andar perto, podes repetir uma melodia, uma linha de baixo, mas aqui não dá. Por exemplo, eu crio o principal, o patch, a forma como estão todas criadas entre elas, depois é ensaiar. Já fiz um bocado de tudo, e, neste momento, faço o que me ajuda à minha saúde, confesso, porque, por exemplo, eu experimentava tudo, ao tentar fazer quase sempre a mesma coisa, e tocar algo quase igual, e o resultado aí não é que não tenha sido bom, mas a tua cabeça está tão agarrada ao que estás a fazer… Aqui tens de ouvir as máquinas e o que elas te estão a dar para responderes e ires atrás, é algo muito sensorial. Tu és a máquina e a máquina és tu. Eu pelo menos tenho uma relação mega íntima com elas, com as minhas meninas. A própria Rubina, disse-me uma vez: “Não toques as máquinas, deixa que elas te toquem a ti.” E eu achei isto superlindo. Depois tive situações em que estudava muito o meu patch, todos os sons de frente para trás e escolhia a forma como ia começar, e correu muito bem, mas fez-me muito mal fui para o palco em pânico e não me faz bem. Agora o que faço é o patch, tenho mais ou menos uma sequência que gosto, onde é que eu começo e onde quero chegar e por onde vou passar, mas acho que também já ganhei um à vontade diferente, porque ainda agora, entre fevereiro e março, dei cinco concertos todos com o mesmo patch. E percebi que o espaço influenciou em todos eles. Perceber o que o espaço te devolve também é importante, ou é mais seco ou tem mais reverberação, isso altera muita coisa. Houve uns muito mais psicadélicos, mais fora, outros mais doces, aqui andou sempre no mesmo registo, e foi bonito e deu-me muita calma.

G. — As máquinas que usas, são construídas pelo Zé ao longo do tempo?

C. — Constantemente. Ele está constantemente a inventar coisas novas. Há algo que para mim é quase um problema, que é mesmo as que já existiam ele decide alterá-las. E depois há coisas que eu queria, que tinha, e que já não se encontram. Mas elas estão -sempre- cada vez melhores. Ele vai sempre melhorando a qualidade. Há coisas que eu comento que sinto falta, que gostava de ter, há algumas que ainda não chegámos lá, outras que ele aparece, então vou aprender, ouvir, explorar, e é assim, muito orgânico.

G. — De certa forma vieste criar um novo caminho na música eletrónica…

C. — O meu caso é muito recente, eu tenho seis anos a fazer música, sou uma criança ainda, há miúdos que têm já a vida toda de música, eu sou uma criança. Quando comecei a fazer isto, acho que a ignorância jogou a meu favor, porque não abordei as máquinas, ou seja, tenho lido o que têm escrito sobre mim, dizendo que eu não tenho o registo que é usual em quem toca este tipo de instrumentos, e é verdade, há sempre uma circularidade e eu não consigo tocar assim, eu fico cansada. Quando fiz o álbum, não foi a pensar como quero que seja, eu pus-me a tocar e depois ouvi o que saiu. Acho que a idade joga a favor, já não penso que tenho de provar algo a alguém, estou a fazer porque é um desafio. Mas eu não sabia qual era a minha música, que estilo… eu sou doida por eletrónica, mas eu ouço tudo, podia ser mais noise, mais ambiente, mais psicadélico, e a minha cena não é nada disso, e acho que é curioso, por ser sem querer, por não saber. Tenho uma forma muito minha de abordar estes instrumentos, que é o que faz que aquilo que eu faça não seja tão comum.

G. — A tua música como que incomoda, faz-nos sempre querer saber o que vem a seguir.

C. — A mim tem-me dito que é muito exigente. Mas acho que é isso que estás a dizer, é para ouvir, mesmo, e depois é muito imprevisível. Eu não consigo deixar-me ficar na circularidade das coisas, ao fim de um bocado, eu sinto a necessidade, quase como um relógio biológico que tenho aqui dentro, que tem de fazer entrar um elemento ou tirar outro, eu estou sempre a mexer, não paro quieta. Aquilo não está só com a vida própria que pode ter, eu estou para que aquilo me soe bem a mim também.

G. — Lançaste primeiro o Twitcher e depois Os Princípios Do Novo Homem, criado para teatro, o que mudou de um para o outro?

C. — Eu acho que a principal diferença, e que acho que é curioso porque acabou por influenciar muito todos os gigs que fiz, porque ainda levei algum tempo a pensar e a fazer essa banda sonora, foi a minha contenção. Primeiro, estás a trabalhar para outra pessoa, é o teu trabalho, foi-me dada toda a liberdade do mundo, mas não é um álbum para mim, é o que tenho de fazer, é para uma peça em que eles não se calavam, um texto maravilhoso. E a segunda peça, a República Alexandrina, também do Pedro Saavedra, ainda tive de me conter mais, foram exercícios de contenção em que tive de encontra o lugar, mas em que continuo a ser eu. Obviamente que tive um briefing do ambiente, mas eu aqui tive de ser muito mais contida…

G. — Estás habituada a criar as paisagens para nós, sem guião, e de repente tens uma paisagem quase criada…

C. — Sim, e com a preocupação de que a minha música não se podia sobrepor ao que estava a acontecer e ao texto, eles não se calam a peça toda, não há silêncios praticamente. Depois também havia essa questão. Eram oito princípios, o Pedro pediu-me quatro faixas para quatro princípios, porque os outros que eram mais intensos não iriam ter nada, e há aquela que eu fiz, que fui eu que sugeri ao Pedro, as pessoas entravam na peça com aquele som, que essa base está em todas as faixas. Gostei muito porque trabalhei muito concetualmente o todo, e adorei fazer isso. Foi também muito bom porque os meus nervos e inseguranças também faziam com que fizesse tudo super-rápido, e acho que ao fazer essa banda sonora aprendi a respirar e ter mais calma, porque era mesmo preciso, tinha de ter calma. Aprendi muito a conter-me, a ter mais calma, a deixar as coisas respirar, a ser menos ‘panquito’, sabes, mais quietinha, e adorei.

G. — Quais são as tuas referências que te levam para o que fazes hoje?

C. — Muito sinceramente, referências conscientes, para aquilo que faço, não tenho. Eu não me inspiro minimamente naquilo que ouço, o que acho é que quando levas uma vida inteira, e eu levo mesmo, completamente fanática por música e a ouvir muita música, de todos os espectros, algo fica. E foi o Nuno Patrício que, no meu segundo concerto, me disse: “Vais ver que tudo o que ouviste até hoje está dentro de ti.” E eu acho que é isso. Tu acumulas muita coisa, e eu não consigo dizer-te que ouço isto ou aquilo e me inspira, jamais. Inspira-me mil vezes mais uma fotografia (eu venho da imagem), emoções, coisas que sentes, que vives… isso inspira-me mil vezes mais do que a música. Porque depois eu ouço tanta coisa, tão diferente, que não é por aí.

G. — Que paisagens levas para o MUPA?

C. — Ainda não sei. Eu vou ter alguns concertos antes do MUPA e serão todos, incluindo o do MUPA cedo, é de tarde, não de noite, eu gosto mais de tocar à noite, depois de jantar, já bebeste um copinho de vinho, então já vou mais relaxada. Porque ando com vontade de fazer coisas mais dinâmicas. Mas não sei, são coisas que sinto aqui, eu sei o que me apetece, mas não sei se vou guardar isso. Eu tenho de começar a mexer, sei que tenho uma máquina nova por explorar, e a primeira coisa que vou fazer é agarrar nela e ver o que tiro de lá, depois é começar a explorar.

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