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Coimbra e os estudantes: A integração tem de passar pela praxe?

Casa da universidade mais antiga do país, Coimbra recebe milhares de novos estudantes anualmente. Para muitos jovens, o arranque do ano letivo é sinónimo de adaptação a uma rotina diferente, responsabilidade que se soma à necessidade de inclusão na academia. Tantas são as tradições que alguns sentem-se forçados a participar das famosas praxes para evitar o isolamento. Mas há de ser a integração no ensino superior um dilema?

Texto de Analú Bailosa

Ilustração de Marina Mota

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O mês de setembro volta a trazer movimento para a cidade dos estudantes, que, depois da quietude do verão, tem novamente as suas ruas preenchidas pelas capas negras do traje académico. Cânticos que ecoam das avenidas às salas de aula durante todo o período letivo marcam a longa tradição dos rituais praxísticos, hoje perpetuados nas várias instituições locais, com o intuito de dar as boas vindas aos caloiros. Jantares, jogos e desfiles são apenas algumas das atividades organizadas para conhecer os novos colegas.

No entanto, regida pela ideia de hierarquia entre os estudantes, a cultura da praxe é constantemente alvo de críticas e já protagonizou diversos episódios de violência divulgados na comunicação social.  O estudo A Praxe Como Fenómeno Social, encomendado pela Direção-Geral do Ensino Superior (DGES) e publicado em 2017, cita denúncias de casos de homofobia, agressões físicas, uso de linguagem sexista e abuso de bebidas alcoólicas. Mais recentemente, a ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Elvira Fortunato, repudiou as práticas de integração “humilhantes e abusivas”.

Entrevistadas pelo Gerador, representantes do Órgão Máximo de Praxe do Instituto Superior Miguel Torga (ISMT) afirmam que a estrutura hierárquica é essencial para garantir a conservação das tradições académicas e negam que a finalidade da dinâmica seja maltratar alguém. “É da mesma forma que existe uma hierarquia dentro de uma sala de aula: há um professor que não está lá com o intuito de humilhar os alunos. Somos um grupo de pessoas que está num patamar acima, que já passou por aquilo que eles [os caloiros] estão a passar, com o intuito de ser como um manual de normas”, explica a secretária, Rita Esteves, assegurando que as diferentes classes deixam de existir noutros contextos.

Apologista da praxe, Natália Patrocínio, estudante de Direito, defende que os ocorridos violentos das notícias são casos raros e que deturpam o fundamento das atividades. “Acho que a praxe devia ser extinta a partir do momento que faz alguma cena discriminatória. A praxe é exatamente o contrário disso, é integrar todo o tipo de pessoas”, diz.

Na análise de Lara Ximenes, finalista no curso de Jornalismo e Comunicação, existem dois tipos de praxes: as que efetivamente integram os alunos e as que os alienam e não são “o mais humanas possível” – estas comandadas por pessoas que “não sabem lidar com o poder” e o exercem de forma “nefasta e tóxica”, quer para quem está na mesma linha de hierarquia, quer para quem está abaixo dela.

Além de Natália e Lara, recolhemos testemunhos de outros quatro universitários da cidade de Coimbra, que manifestaram as suas experiências e opiniões positivas e/ou negativas com relação ao momento de chegada e adaptação ao ensino superior.

O peso da tradição

Uma conclusão parece unânime: apesar de não serem a única forma de integração, os rituais praxísticos têm muita adesão e podem ajudar na ambientação dos caloiros. A maioria concorda, porém, que muitos jovens se sentem pressionados a seguir os passos tradicionais devido a uma ideia preconcebida de que a praxe é a melhor maneira de fazer novas amizades e à errada noção de ser um requisito para vestir o traje ou marcar presença na festa da Latada ou da Queima das Fitas. “Isso é muito pouco nobre e acaba por encostar os calouros à parede e tirar-lhes a liberdade de escolha”, constata Lara.

Para Isabel (nome fictício), matriculada em Direito, o fator determinante está na personalidade de cada um e uma pessoa mais extrovertida tem mais chances de gostar das atividades que costumam ser propostas. Ainda na sua opinião, o funcionamento diferenciado das práticas do seu curso torna o ambiente mais tenso. Dada a grande quantidade de alunos aprovados todos os anos, são organizados grupos menores, as tertúlias, que, segundo a estudante, trabalham para procurar o maior número de integrantes possível e, assim, continuar a existir. Ao clima de rivalidade soma-se uma relação “muito mais pessoal”. “Tudo o que se diz acaba por afetar mais do que quando se está escondido no meio de cem pessoas”, relata.

O atual gosto e sentimento de pertença de Isabel pela sua tertúlia não veio sem dificuldades. “Vamos conhecendo os nossos colegas e dá aquela pena em desistirmos, mas, inicialmente, acho que o que nos prende à praxe é mais o medo de não sermos incluídos na vida académica do que propriamente a tradição”, confessa. Receosa de não conseguir um suporte a nível social e escolar, observar que a desistência era encarada negativamente fez-lhe concluir os rituais, mesmo depois de chegar a casa a chorar inúmeras vezes.

A experiência de Francisco Maia na praxe do curso de Turismo, Território e Património foi curta, visto que desistiu ao se sentir constantemente humilhado e forçado a fazer as ações que lhes indicavam. Apesar de considerar que tais vivências influenciaram a sua decisão de deixar a licenciatura, Francisco aconselha os caloiros a experimentar as práticas pelo menos uma vez, porque acredita que variam de acordo com o curso e a instituição. Por experiência própria, sugere ainda que as opiniões sobre o momento de integração não sejam um fator de influência no percurso académico. “O teu futuro nunca vai ser a praxe, isso vai ser uma realidade pelo tempo que tu quiseres”, conclui.

Já Rhuan Lobo chegou do Brasil sem grandes expetativas. Com o arranque das aulas em Ciências Biomédicas Laboratoriais, o estudante esperava encontrar algo similar aos chamados trotes das universidades brasileiras, que, como nos explica, não costumam ultrapassar duas semanas de duração. Sem concordar com o formato da praxe por achar que é “muito tempo jogado fora”, Rhuan escolheu ser praxado apenas até conhecer a sua turma e escolher uma madrinha, que lhe apresentou a novas pessoas e acompanhou na participação em grandes festas e momentos como o batismo.

Que alternativas têm os estudantes?

Reconhecendo os benefícios do apadrinhamento, mas sem estimular atividades praxísticas, o Gabinete de Inclusão do Núcleo de Estudantes de Direito da Associação Académica de Coimbra (NED/AAC), promove, no início do ano letivo, open calls para unir pares de caloiros e veteranos. Num jantar, inscritos dos dois lados têm a oportunidade de conviver e perceber as suas afinidades antes de oficializar o vínculo. Um horário de atendimento para os estudantes é outra iniciativa pensada para colmatar as necessidades de quem não aderiu à praxe e, porventura, precisa de apoio académico, mas não sabe a quem recorrer.

Contudo, Ema Antunes, cocoordenadora do departamento, lamenta, ao Gerador, a dificuldade de fazer chegar as iniciativas ao público-alvo. “Ao fazerem parte de uma tertúlia, [os alunos] estão sempre ligados a grupos de chat, onde basta alguém mandar para lá uma mensagem que toda a gente fica a par. Quem não tem tertúlia está completamente desvinculado disso, então é difícil arranjar um meio que nos dê certezas de que a informação chega a essas pessoas”, diz, acrescentando que, mesmo presentes nas redes sociais, o alcance é limitado e o núcleo tem pensado em outras soluções.

Presidente do Órgão Máximo de Praxe do ISMT, Sandrina Costa reforça que a praxe não é obrigatória e dá exemplos de práticas de integração promovidas pela Associação de Estudantes do Ensino Superior Miguel Torga (AEISMT), como torneios desportivos, convívios e jantares.

Além das programações pensadas pelos núcleos de estudantes, os universitários consultados pelo Gerador mencionam que as atividades extracurriculares e culturais podem ser um bónus não só para o currículo, mas para a integração numa nova cidade. Enquanto Lara salienta a diversidade de organizações não governamentais em Coimbra, Jorge Correia, também matriculado em Jornalismo e Comunicação, cita o exemplo do projeto Cria’ctividade, que dinamiza a comunidade estudantil e o cenário artístico local.

Para além do contexto académico

Criado em 2014, o Cria’ctividade é um coletivo responsável pela criação de um programa alternativo à praxe. A sua missão, segundo um comunicado enviado à imprensa, é dar a conhecer outras realidades e vivências conimbricenses, uma vez que a adaptação à vida académica “não tem de obrigatoriamente ser vivida através de conhecidos rituais de iniciação estudantil”.

Jantar comunitário organizado pelo Cria'ctividade. Fotografia da cortesia de Cria'ctividade.

O grupo informal e voluntário é constituído por alunos do ensino superior, que, em parceria com repúblicas, espaços e artistas, organizam eventos como passeios pela cidade, sessões de cinema, conversas e palestras, concertos e jantares comunitários. Não se tratando de um movimento anti-praxe, a sua última edição, entre setembro e outubro do ano passado, acolheu ainda um debate sobre as tradições académicas, que contou com defensores da praxe e opositores dos rituais.

Concertos Cria'ctivos. Fotografia da cortesia de Cria'ctividade.

Em 2022, o “Cria” inovou e estendeu a programação por mais duas semanas, preenchidas com propostas da comunidade local, registadas numa open call, que obteve 60 respostas, conta-nos a representante Bruna Passas. “Queremos integrar os novos estudantes e promover e dinamizar a cultura de Coimbra”, afirma, destacando o diferencial do coletivo. “Há muitas pessoas que dão os seus primeiros concertos ou fazem as suas primeiras exposições e começam a reunir contactos a partir do Cria”, conclui.

Propagar a ideia de que a praxe não tem de ser a única forma de integração também é uma prioridade do Governo. Ao repudiar as práticas “humilhantes e abusivas”, a ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior também referiu planos para apoiar a realização de iniciativas alternativas às tradicionais, com enfoque nas áreas do desporto, da ciência e da cultura. Elvira Fortunato enfatizou igualmente o serviço da linha de apoio para reportar praxes abusivas à Direção-Geral do Ensino Superior, disponível através do número 213 126 111 ou do email praxesabusivas@dges.gov.pt.

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